19 julho 1994

Com quanta culpa se faz a modernidade

É próprio do sujeito moderno o drama entre a autonomia como traço cultural dominante e o esquecimento do passado que ela pede


Nos últimos tempos, a imprensa -americana e nacional- não pára de interrogar nosso próximo futuro: como será nossa vida nas "superhighways" da informação? E regularmente aparecem comentários humanísticos indignados: o cabo ótico estaria preparando um futuro assombroso. Por quê? O que preocupa os críticos é a expansão planetária de uma "nova" modalidade das relações, que seria necessariamente indiscriminada e superficial: todos dialogarão com todos e sem se dizer nada de essencial.

O convívio eletrônico cai sob as mesmas críticas que sua versão caipira, o Tele-Amizade, ou seu antecessor francês, o Minitel, o diálogo humano acabaria oscilando entre uma sexualidade de sauna californiana anos 70 e, do lado mais soft, uma arte de conversação digna de preciosidades molierianamente ridículas.

Essas críticas são infundadas (basta ter frequentado um pouco o Internet americano para constatá-lo). Mas importa sobretudo que a modalidade das relações tão receada não é nem mais nem menos do que a regra das trocas humanas no mundo ocidental urbano. Isso, Simmel já notou nos anos 20 e a Escola de Chicago de sociologia repetiu: o individualismo moderno produz promiscuidade (por tornar possível a grande circulação e concentração de seres juridicamente iguais, embora diferentes) e distância (pois nenhum indivíduo quer se confundir como vizinho).

O convívio eletrônico, deste ponto de vista, é solidário de nossa cultura; ele só expande a socialidade moderna além do quadro topográfico urbano; graças a ele, poder-se-á ser cidadão e citadino da urbe mundial individualista mesmo ficando na famosa ilha deserta.

Deixamos de lado o dandismo hiperindividualista de quem cultiva sua diferença até não querer trocar a pena de ganso por um 486. Resta escolher entre duas óticas: ou ficar com Bill Gates, inventando as potencialidades ainda insuspeitadas de nossa modernidade, ou então resmungar sobre a profundidade perdida das conversas de cuia-na-mão na lauda solitária. Mas qual profundidade perdida?

Grande parte dos escritos contemporâneos sobre modernidade são saudosistas. Sobretudo quando a chave de leitura é o individualismo, como traço dominante de nossa época.

Há, primeiro, um mal entendido. Uma sociedade individualista (cf. I. Dumond, "Ensaios Sobre Individualismo") é uma associação de humanos que valoriza antes de mais nada o indivíduo, sua autonomia, sua diferença. O termo não comporta nenhum juízo moral. Ora, nós sempre ouvimos "individualista" como um sinônimo de egoísta, interesseiro. E acabamos assim interrogando a modernidade a partir de um preconceito.

Mas o mal entendido não surge por acaso. Nossa cultura individualista já nasceu culpada, e continua convencida de ser uma progressiva degeneração, um declínio do que teria sido, no passado, uma idade de ouro onde o bem comum seria o supremo valor para todos.

A sociedade dos indivíduos chora a comunidade perdida (aviso: foi republicada em 93 por Transaction Pub, a excelente tradução americana de F. Tônnies, "Comunidade e Sociedade", que, seja lembrado, não queria ser um livro nostálgico). O cristianismo, por exemplo, contribuiu decisivamente à formação individualista, chamando os prosélitos a um contato direto com Deus além de seus vínculos de tradição, família e lugar.

Ora, desde os seus inícios, ele se preocupa em promover uma moral comunitária de amor para o próximo, como se quisesse prevenir os efeitos "maléficos" do laço social que ele mesmo contribuiu a instituir. Aliás, o cristianismo preservou a comunidade que ele mesmo comprometia, hipostasiando-a no reino dos céus.

Do mesmo jeito, a cada arrancada individualista da modernidade, corresponde, em poucas décadas, a um florecer de utopias comunitárias, quase compensatórias. Foi assim na Renascença, com as utopias clássicas, foi assim no século 19, depois das Luzes, com os anseios comunitários sociais.

Tudo acontece como se fôssemos membros de uma sociedade individualista, mas permeados de uma moral comunitária. Certo, uma cultura que prefere o indivíduo ao bem comum tem dificuldade em elaborar um critério ético para a conduta de seus membros. Dumkheim (na "Divisão Social do Trabalho") teria dito que uma sociedade individualista não tem "consciência coletiva".

Mas esta inevitável incerteza ética não explica por si só nosso incurável saudosismo. Poderíamos escolher o caminho razoável de uma laboriosa confrontação, delegando às vezes ao diálogo e às vezes à força a decisão –sempre provisória– do certo e do errado (Gianni Vattimo ou Habermas serviriam de guias). Mas o individualismo prefere estar com saudades: urbano por princípio, sonha com a casa de campo e a moral austera da pequena comunidade agreste. Vagamente teísta e fiel de um deus sob medida, lamenta corais de igreja. Decidido a se reinventar livre cada dia, lamenta o esquecimento das lições do passado. Americano de espírito, chora a Europa perdida ou americanizada, etc (ao ponto que, às vezes, a nostalgia força a barra, e a coisa dá em farsa ou em horror totalitário).

Otavio Souza me escreve uma carta neste sentido, comentando as crônicas americanas publicadas nesta coluna (de janeiro a março de 94). Eu descrevia os EUA como uma sociedade ligada só pelo respeito da lei positiva, em perda de ideário comum, onde as particularidades se agrupam ao redor de interesses e traços reais. Esta é, com efeito, uma boa síntese aparente de uma cultura individualista realizada. Será que implicaria explícita ou implicitamente um juízo de valor, uma espécie de lamento da era dos ideais comunitários? Provavelmente sim. Otavio tem razão.

Há uma dificuldade cultural para pensar e inventar nossa modernidade sem saudades de um velho tempo, onde, aliás, enquanto indivíduos, não aguentaríamos um segundo. Pois somos a única cultura construída ao redor da paradoxal injunção de esquecer e recusar o que nos é transmitido. Em outras palavras, somos sujeitos fundados no recalque de nossa dívida com o passado e com a tradição. A liberdade que assim ganhamos é necessariamente culpada e produz fantasmas de idades douradas onde, sem culpa, obedeceríamos a uma tradição bem regrada.

Em suma, o individualismo engendra um mal estar propriamente neurótico –que parece aumentar com seu progresso. A psicanálise, que responde a este mal estar específico de nossa cultura, já se deu conta que a saída não é a simples (ou complicada) reconstituição do que foi esquecido. Até porque o próprio do sujeito moderno é justamente o drama que se joga entre a autonomia como traço cultural dominante e o esquecimento do passado e da tradição que ela pede: querer suprimir esta tensão é tão irrisório quanto querer resolver os problemas da modernidade por uma volta à vida tribal.

Entre a posição de censor da modernidade em nome do passado esquecido e a de vira-lata do "no man's land" urbano, entre saudades e niilismo, talvez haja um caminho. Este começa constatando que a autonomia individualista, com todas as suas consequências, é nossa forma paradoxal de obediência à cultura à qual pertencemos. O que nos deixa, em lugar de uma tradição, a tarefa de ir inventando nossa história. Sem ironia mesmo: aproveitem (um pouco)!

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