13 novembro 2003

"O Presente" do MixBrasil

Começa hoje, em São Paulo, o festival de cinema MixBrasil. Na sua programação, será apresentado "The Gift", "O Presente", documentário de Louise Hogarth.

É uma obra enxuta e corajosa.

Eis o fato: na comunidade gay, sobretudo entre os jovens, a prática do sexo seguro está declinando, e aumenta o número de novas contaminações pelo vírus da Aids.
Podemos culpar as campanhas públicas de prevenção: será que não foram (não são) claras? Será que, não querendo assustar, foram omissas? Ou será que pediram demais e produziram cansaço? Depois de décadas em que até o sexo oral era "proibido" sem preservativo, talvez as pessoas achem na contaminação um pretexto para, enfim, transar livremente.

Podemos culpar o sucesso dos remédios antivirais que produziram a ilusão de que a Aids seria uma doença crônica controlada, sem perigos maiores. Hogarth mostra propagandas na imprensa americana em que os remédios anti-Aids são promovidos à força de imagens de sujeitos soropositivos francamente desejáveis. A realidade é outra: o tratamento está longe de ser definitivo, é penoso e tem riscos e sequelas.

Podemos culpar a própria comunidade. Como conta no documentário o jovem Doug, é mais fácil se sentir "in" sendo um garoto muito "cool" que transa sem perguntar e sem exigir camisinha.
Mas o impacto do filme vem de outra constatação: a contaminação pelo vírus da Aids se tornou para alguns, se não para muitos, um atrativo propriamente erótico. O "barebacking" (cavalgar sem sela, termo que designa a transa anal sem camisinha) não é efeito de um descuido acidental num transporte de paixão. Tampouco se trata de um erotismo de roleta-russa, em que o risco apimentaria os encontros. Ao contrário, a contaminação é procurada como se fosse a fonte de um gozo específico.

Desde o fim dos 90, a (crescente) comunidade de "barebackers" criou um código próprio. "O presente", "the gift", é a contaminação. Há os "bugchasers" (os caçadores de bicho, o bicho sendo o vírus da Aids) e os "giftgivers" (os doadores, que oferecem o presente). Há as "conversion parties": as festas de conversão em que um soronegativo convida uma série de soropositivos a penetrá-lo e contaminá-lo. "Charged" ou "loaded cum" é o esperma que contém "o presente".

No começo dos anos 80, na comunidade gay, circulou brevemente a proposta de tatuar os soropositivos, de forma que seus parceiros fossem imediatamente informados e tomassem as precauções necessárias. A idéia foi recusada como forma abjeta de discriminação. A ironia é que, hoje, a tatuagem volta, mas não como marca de exclusão. Ao contrário, o símbolo convencional que designa o perigo biológico de contaminação é tatuado por sujeitos soropositivos perto do púbis como um incentivo sexual. Pela mesma razão, alguns escrevem no bíceps "HIV-poz".

Outros escrevem "HIV-neg" e saem à caça do vírus para poder, enfim, barrar o "neg".

Quando começou a epidemia de Aids, minha preocupação não era só com a contaminação. Atormentava-me a perspectiva de que, para uma ou várias gerações de jovens, gays ou não, a vida sexual viesse a ser um pesadelo. Receava que a necessidade de preservar a vida acabasse com o sexo. Ou seja, que o risco epidêmico forçasse o desejo a obedecer estritamente à finalidade da reprodução: transem só para fazer filhos e casem virgens.

Mas isso não aconteceu. A preservação da vida, por mais que seja o valor dominante da sociedade moderna, não arregimentou o sexo. Durante duas décadas, inventaram-se jeitos, carinhos, situações e palavras que, mesmo evitando o risco, não desvirtuassem completamente o desejo.

Aparentemente isso não foi suficiente. Sobra hoje uma revolta que não é só contra os limites impostos pela epidemia de Aids.

Os "barebackers" proclamam que existe um presente mais importante que o famoso presente da vida. Mas eles não são apenas apóstolos da morte. Para entender sua escolha, é preciso considerar que, em nossa cultura, o ideal do bem-estar, da prevenção e de uma longa existência saudável se tornou princípio ético preponderante.

É nesse quadro que os "barebackers" descobrem e procuram um gozo desesperado no próprio ato de comprometer a vida.

Se não fosse pela vontade de festejar a abertura do festival MixBrasil e de comentar "O Presente", a coluna de hoje seria sobre "Matrix Revolutions". O curioso é que, no fundo, os "barebackers" são filhos da mesma revolta que anima Neo, Trinity & co. Eles querem transar fora da matriz: "de verdade".

PS:
1) O filme de Hogarth e esta coluna não tratam de uma realidade exótica da Costa Oeste dos EUA ou de Nova York. Escrevo na segunda, dia 10 de novembro. Às 22h em ponto, entro na primeira sala "Gays e Afins São Paulo", no bate-papo do UOL. Um internauta propõe o seguinte apelido: "Sem Camisinha/Ativo". Você acha o quê? É uma informação marginal ou o essencial da fantasia sexual proposta?

2) "O Presente" (62 min.) será apresentado sexta, dia 21, no Centro de Testagem e Aconselhamento de Santo Amaro, SP; sábado, 22, e domingo, 23, no Centro Cultural Banco do Brasil. O festival, como é de costume, viaja: em Brasília, o filme passará nos dias 1º/12 e 4/12 e, no Rio, no dia 11/12.

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