16 junho 2005

O sexo das moscas e o da gente

Vários leitores pediram que eu comentasse um artigo da revista "Cell" (vol. 121, de 3/6) que se tornou notícia no mundo inteiro.
A Folha de 4/6, por exemplo, propôs uma matéria com o título "Alteração de gene faz mosca hétero virar homossexual". No sábado passado, Drauzio Varella, em sua coluna, tratou do mesmo assunto; concordo com suas observações, mas quero acrescentar algumas reflexões.

O artigo da "Cell" (disponível on-line em www.cell.com) apresenta uma pesquisa, de Barry Dickson e Ebru Demir, cujos resultados vou resumir. As moscas drosófilas têm um gene (chamado "fru") que comanda as condutas necessárias para que macho e fêmea se juntem, garantindo a reprodução. Essas condutas consistem, no macho, num ritual ferrenho ("fixed-action pattern"), em que ele encosta a perna, bate as asas, lambe o sexo da fêmea e, se for aceito, copula por 20 minutos. Com isso, a fêmea, com a condição de que não tenha copulado recentemente com outro macho, abre a vagina.

Dickson e Demir verificaram experimentalmente que o "fru" é um "switch-gene", um gene que funciona como um interruptor, produzindo o comportamento sexual masculino ou feminino, seja qual for o fenótipo sexual da mosca em questão. Se o interruptor do "fru" está para masculino numa mosca fêmea, a dita mosca vai abordar outras fêmeas e praticar o ritual masculino descrito acima. Inversamente, moscas machos com o interruptor em posição feminina ficam à espera de serem abordadas por outros machos.

Será que, com base nessa pesquisa, é possível chegar a alguma conclusão que valha para os humanos? A resposta é não.

Drauzio Varella, em seu comentário, concluiu que "o homem é resultado de uma interação complexa entre o programa genético (...) e o impacto" da experiência e do ambiente. Perfeito.
Ora, acontece que a imprensa mundial deu destaque ao artigo da "Cell" porque a pesquisa "demonstraria" que a escolha do sexo do parceiro é o efeito direto de uma determinação genética. Se isso vale para as moscas, por que não valeria para a gente? Em suma, seríamos heterossexuais ou homossexuais só por causa de um gene.

Essa idéia agrada a muita gente. Há os que gostam de conceber a homossexualidade como uma malformação genética que poderá ser "curada". E há os que acham interessante "desculpar" a homossexualidade ("afinal, é uma coisa genética").

Albert Kinsey, quando se interessou pela variedade do comportamento sexual humano, esqueceu-se das moscas, que eram seu antigo objeto de pesquisa. Ele tinha razão: a experiência de Dickson e Demir não implica nada no campo da sexualidade humana por duas razões fundamentais.

1) Dickson e Demir constatam que os comportamentos sexuais das moscas são "essenciais para o sucesso reprodutivo", portanto "é provável que uma forte pressão seletiva tenha favorecido a evolução de genes que inscrevem ("hardwire") esses comportamentos no cérebro". Vale para os humanos?

O comportamento sexual humano não segue nenhum "fixed-action pattern", nenhum ritual fixo: contrariamente aos machos das moscas, que encostam a perna, batem as asas etc., os homens podem parar de motocicleta na frente do bar, convidar para ver estampas japonesas, oferecer flores, pagar ou "encoxar" no metrô. A mesma variedade existe do lado das mulheres. Ou seja, nos humanos, não há rituais fixos: a "pressão seletiva" não produziu um gene que regraria as condutas de acasalamento.

Além disso, a evolução levou nossa espécie por um caminho oposto ao das moscas e mesmo ao dos outros mamíferos: a atividade sexual, para nós, não é orientada para o sucesso da reprodução. A prova disso não está apenas em nosso uso "devasso" de camisinhas e anticoncepcionais. Ela está nesta obviedade: a excitação sexual dos humanos não depende da fecundidade da fêmea. Para nós, em algum momento da evolução, a menstruação se dissociou da fecundidade feminina e parece que, desde então, transamos por prazer e nos reproduzimos ao deus-dará.

2) A idéia de que a escolha do sexo do parceiro (homo ou hétero) seja a bipolaridade essencial dos comportamentos sexuais humanos é, no mínimo, ingênua.

Talvez porque a evolução nos levou a transar por prazer, a variedade dos caminhos de nosso desejo sexual escapa a uma descrição pela qual o sexo do parceiro escolhido seria a caraterística crucial. Um mestre sádico que domina indiferentemente escravos e escravas, é o quê: homo ou hétero? Uma adepta do suingue que só curte o marido com a participação de outra mulher é o quê? Os numerosos adolescentes que, hoje, têm amizades coloridas com parceiros de ambos os sexos são o quê?

Quem quiser encontrar a determinação genética de nossos comportamentos sexuais pode antecipar a procura de muitos interruptores diferentes.

Uma descrição da sexualidade humana organizada apenas pelo sexo do parceiro escolhido deixa a compreensão de nossos desejos, literalmente, às moscas.

Nota: se você curte o bricabraque complexo (não só sexual) do qual somos feitos, visite, em São Paulo, a exposição de Rubens Espírito Santo, na galeria Baró Cruz, e passe um bom momento na "Cabana do Josias".

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