05 outubro 2006

Av. Faria Lima, Berlim Leste

Graças a uma nova lei da Prefeitura de São Paulo, logo viveremos felizes em Berlim Leste

MINHA PRIMEIRA viagem a Berlim foi no começo dos anos 70, com um grupo de amigos militantes de esquerda.

Para quem vinha da Europa Ocidental, Berlim Leste era estranhamente monocromática. No fim do dia, a débil iluminação urbana instaurava uma penumbra amarela e opressiva: era a Viena de Orson Welles no "Terceiro Homem", sem o charme do claro-escuro. Pensávamos: os "camaradas" não vão desperdiçar watts para dar à cidade um ar de festa, precisam construir o socialismo e deixar a força para as fábricas. Não é?

Alexanderplatz, com a sua Fonte da Amizade Internacional e o palito da torre da TV, parecia-nos sinistra.

Mesma coisa com Unter den Linden, apesar de nossas lembranças literárias. Alguém comentou: "Se ao menos houvesse letreiros luminosos e anúncios publicitários". Era uma constatação envergonhada: afinal, aquela iluminação parcimoniosa e a "sobriedade" da paisagem urbana deviam ser um ato de acusação contra a frivolidade do Ocidente. Ali, o pessoal se dedicava a uma tarefa séria e grande: tratava-se de construir uma sociedade em que cada um pudesse cuidar não do que ele tinha ou não tinha, mas de sua "essência". Nós, "alienados", sentíamos nostalgia da proliferação de outdoors e holofotes da Kurfürstendamm.

Voltamos para o Oeste no meio da segunda noite, com uma sensação de derrota, e ficamos passeando e conversando ao redor da estação do metrô Zoo, até o dia nascer. Era um bom lugar para meditar sobre a leviandade do Oeste, onde nos sentíamos em casa, e a tristeza do Leste, do qual acabávamos de fugir (como muitos alemães, mas sem correr os mesmos riscos). De um lado, uma idéia e um projeto só. Do outro, uma confusão de objetos e superfluidades. Descobrimos que, entre Alexanderplatz e Zoo, preferíamos Zoo, com sua mistura de desejos de consumo e vidas perdidas.

Anos mais tarde, ao chegar ao Brasil pela primeira vez, a iluminação duvidosa das ruas evocou, na minha memória, a penumbra de Berlim Leste. Com esta (grande) diferença: a alegria que pipocava nas luminárias caóticas de barzinhos, armazéns e propagandas vistosas, embora curiosamente "démodées". Aparte: a escuridão das ruas não era sinal de escassez, mas de menosprezo pelo espaço público (as ruas eram escuras, mas as casas dos amigos que me hospedavam brilhavam como árvores de Natal).

Pois bem, o prefeito e a Câmara dos Vereadores de São Paulo acabam de aprovar uma lei para melhorar a paisagem urbana. A partir de janeiro, sem mais nem menos, "fica proibida, no âmbito do município de São Paulo, a colocação de anúncio publicitário nos imóveis públicos e privados, edificados ou não". A maioria dos comentaristas aplaude: a ganância da iniciativa privada parará de desfigurar nossa cidade. Entendo, mas fico perplexo.

A Folha de quarta-feira retrasada publicou, em primeira página, a fotografia de um trecho da avenida Faria Lima em seu estado atual e uma fotomontagem da prefeitura que mostra o mesmo trecho assim como será, uma vez a lei entrada em vigor: é a Faria Lima de Berlim Leste. Se a lei não instaurar apenas um rápido intervalo para reinventar uma nova e melhor presença de holofotes, letreiros e outdoors, viveremos em Berlim Leste, com a desvantagem de não ter um sonho (ou pesadelo) utópico para justificar a monocromia e a penumbra de nossa cidade. Tudo bem, quando a gente não agüentar mais, restará passear pelos shopping centers, que permanecerão como ilhas de uma estética que não despreza o caleidoscópio desordenado dos desejos que é nossa "essência", fútil, mas (é sua vantagem) volúvel e plástica.

Ninguém parece se preocupar com a perda cultural que seria produzida pelo sumiço das propagandas. Somos uma sociedade de indivíduos. Não temos em comum nem uma fé nem uma tradição coesa.

Compartilhamos dois repertórios: o de nossos sonhos (as ficções, as músicas etc.) e o de nossos desejos desordenados, cujos caminhos coletivos aparecem, por exemplo, nas mil seduções dos anúncios que decoram o espaço no qual vivemos juntos.

Se você não acredita que esse segundo repertório possa ser uma parte relevante de nossa cultura e de nossa história comuns, faça uma experiência simples: folheie com amigos o maravilhoso "Almanaque dos anos 70", de Ana Maria Bahiana (Ediouro).

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