A Bienal de Arte de Veneza dura de junho a novembro, a cada dois anos. Na semana de abertura, há inúmeras festas de inauguração --a maioria regada ao pior prosecco produzido na região do Vêneto e outras poucas em que a bebida e a comida são toleráveis.
Nessa época, Veneza é um formigueiro de artistas, críticos, investidores, jornalistas, curadores, cicerones para grupos de senhoras sedentas de experiências "avançadas" no campo da arte --e, embora não seja Carnaval, um número equivalente, se não maior, de pessoas disfarçadas de artistas, críticos, investidores, jornalistas etc.
Graças a essa fauna, a semana de abertura é ótima se você deseja encontrar ou consolidar sua fé na relevância da arte contemporânea.
É óbvio que os artistas se esforçam sempre para que sua obra, sua performance ou sua instalação constituam um evento. Ora, na semana de abertura, todas as categorias que citei se agitam para convencer o mundo de que a Bienal é mesmo um grande acontecimento.
Três gatos avançam sambando pela via Garibaldi? Pois é, a Bienal rende homenagem ao tropicalismo, ao pós-tropicalismo, ou ao pós-pós-tropicalismo. Tem alguém mugindo deitado num pavilhão dos Giardini? Pois é, assim se expressa a dor do mundo ou, por que não, a saudade do leite materno.
Agora, se você não precisar acreditar na arte contemporânea, arrisque-se a visitar a Bienal em novembro. Mesmo fora de estação, há turistas, artistas e, sobretudo, alunos: de manhã, é fácil esbarrar numa turma, levada por um par de professores.
Gilad Ratman apresenta o registro filmado da chegada de uma equipe de espeleólogos que penetram no pavilhão de Israel pelo esgoto, furando o chão; num outro registro, cada espeleólogo esculpe na argila seu autorretrato e começa a gritar com ou contra sua própria imagem. Os professores que acompanhavam a turma não propuseram interpretações nem apreciações. As crianças aprovaram. Aos 12 anos, como eu teria reagido?
Will Gompertz (no começo de seu ótimo "Isso é Arte? 150 Anos de Arte Moderna - Do Impressionismo Até Hoje", Zahar) conta que, em 1972, a Tate Gallery de Londres comprou uma obra feita de 120 tijolos, e a coisa deu protestos e controvérsias.
Trinta anos mais tarde, todo o mundo achou normal a compra de uma obra que consistia num pedaço de papel com as instruções caso alguém quisesse repetir uma performance. Entre as duas datas, uma mudança, não da arte, mas de gerações.
Não adianta eu ter escrito a profusão sobre o que aconteceu nas artes entre o século 19 e o 20. Assim como não adianta eu querer defender o "ready-made", o minimalismo, a "arte povera", o espacialismo ou a arte conceitual: quase irremediavelmente, eu sempre preferirei as obras que representam o mundo e contam uma história.
As crianças com que cruzei no pavilhão de Israel talvez sejam diferentes de mim, e, para elas, a arte possa ser um gesto, uma intenção, um conceito. É bom ou ruim? Não sei.
Seja como for, desta vez, as duas gerações, a minha e a das crianças, puderam gostar da Bienal. Explico: a Bienal de Veneza comporta os pavilhões (em que cada nação escolhe seus artistas) e uma exposição central organizada por um curador.
O de 2013, Massimiliano Gioni, escolheu o tema "O Palácio Enciclopédico" e realizou uma mostra inesquecível, que talvez ajude a entender por que se tornou difícil contar e representar.
No Arsenale, a mostra começa com a maquete do edifício projetado por Marino Auriti, um mecânico ítalo-americano que queria construir um arranha-céu que contivesse o registro de todo o saber da humanidade. Nos Giardini, a mostra começa com o original do "Livro Vermelho": 16 anos de "imaginação ativa" de Carl Gustav Jung, na tentativa heroica de explorar cada canto de sua própria mente.
No século 14, os 400 manuscritos da biblioteca de Francesco Petrarca eram o compêndio do saber humano. Pouco mais de cem anos mais tarde, os livros impressos se multiplicavam, uma incrível diversidade humana era revelada pelas grandes descobertas, e a própria Terra se perdia num universo infinito.
Hoje, a internet alimenta mais um sonho de palácio enciclopédico (virtual: todo nosso saber on-line), mas a sensação que prevalece (ao menos em mim) é que há cada vez menos totalidade possível --só fragmentos, numa expansão parecida com a do Big Bang.
Talvez por isso seja difícil, para as artes, contar histórias ou representar o mundo.
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