31 outubro 2013

O som, a fúria e as cartas

1) Para mim, Ricardo 3º era um personagem shakespeariano, que conquistou o poder por caminhos tortos e, na véspera da batalha que lhe foi fatal, ouviu os fantasmas de suas vítimas lhe dizerem o inesquecível "Despair and die!", desespere-se e morra.
Certo, eu sabia que Ricardo 3º fora mesmo o último rei da casa de York, no fim do século 15, cem anos antes que Shakespeare escrevesse sua história. Mas sabia sem saber.
Isso, até quinta-feira passada, quando tive entre as mãos um documento assinado por ele (quando era duque de Gloucester, antes de dar um trato nos seus sobrinhos e se tornar assim rei da Inglaterra). Passei de leve um dedo sobre sua assinatura e foi como se sentisse a pegada de sua brutalidade, de sua ambição e de sua tragédia.
2) Eduard, o segundo filho de Albert Einstein e Mileva Maric, nasceu em 1910. Ele queria ser médico e psiquiatra. Aos 22 anos, Eduard entrou, pela primeira vez, no Burghölzli, a famosa clínica de Zurique onde Jung foi assistente de Bleuler. Mas Eduard não entrou como médico -entrou como paciente. No Burghölzli, aliás, ele morreu, internado, em 1965.
Numa carta a Mileva, em 1928, Einstein, referindo-se obviamente a Eduard, escreve que ele considera a psicanálise "como uma moda extremamente perigosa... Ninguém será submetido a esse tratamento com meu consentimento".
Quatro anos depois, Eduard era internado, e Einstein, convidado a escolher um contemporâneo com quem dialogar sobre a guerra, escolhia Freud. Mais quatro anos, e Einstein, num breve bilhete, declararia a Freud que ele entendera, enfim, a teoria freudiana da repressão. Naquela época, Einstein mandava a Eduard obras de Freud, declarando não ter dúvidas sobre a teoria freudiana. Será que era para agradar a Eduard, que guardava um retrato de Freud na parede de seu quarto?
Na quinta passada, com meu alemão capenga, eu procurava as palavras, na carta de 1928: "...eine überaus gefährliche Mode". A loucura de um filho é o desespero de qualquer inteligência.
3) Num dia de 1911, Georges Courteline, escritor e dramaturgo francês, recebeu um bilhete escrito por um menino que gostara muito de um texto dele e até dizia ter tentado em vão traduzir o tal texto para o alemão a fim que a babá dele, alemã, entendesse e apreciasse.
A assinatura do bilhete, que estava agora nas minhas mãos, era: "Jean-Paul Sartre, seis anos e meio".
O bilhete tinha um cheiro de livros, misturado com um perfume de ternura materna. Como Sartre diria contando sua infância, a vocação de escrever foi encontrada na paixão de ler.
4) Jean Cocteau recebe uma carta de um jovem admirador, de 19 anos, que acaba de fundar um cineclube, o qual vai estrear com a apresentação de "Sangue de um Poeta". O clube só viverá se o próprio Cocteau prestigiar a sessão com sua presença. Cocteau não foi. A carta é assinada: François Truffaut.
Penso nos convites que recuso, nos livros de estreantes que deixo de ler, nas amizades que não vingam.
5) Mas, na quinta passada, nada me emocionou tanto quanto uma breve carta do Marquês de Sade à sua mulher, que nunca deixou de amá-lo (a recíproca sendo provavelmente verdadeira). A carta é escrita do asilo de Charenton, onde Sade ficou preso como louco, de 1801 a 1814 -porque sua sogra não gostava dele e, no fundo, porque ele nunca renunciou a pensar e escrever sobre as fantasias que exaltavam seu desejo. Olhei para meus dedos, na esperança que algo dele tivesse entrado em mim, por osmose.
Em suma, passei horas com Pedro Corrêa do Lago, que me mostrou alguns dos manuscritos que ele reúne há mais de 40 anos. A coleção é extraordinária por sua extensão e variedade -e pela inteligência de Pedro (para se ter uma pequena ideia, ver os livros "Cinco Séculos a Papel e Tinta", da editora Afrontamento, ou "True to the Letter", da Thames and Hudson).
A história é mesmo, como diria um colega de Ricardo 3º, um conto sem sentido, cheio de som e fúria, mas ela é bonita ou mesmo sublime quando, por algum milagre, ela se torna concreta, como aconteceu para mim, na quinta-feira passada. Este é o poder do manuscrito: ressuscitar os corpos, pelo gesto da mão que persiste, inscrito na forma das letras.
É primavera, época tradicional de limpeza. Doe as velharias que você não usa mais, mas, por favor, não jogue fora levianamente cartas e papéis manuscritos.

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