21 dezembro 2006

Mudar de gênero

Projeto de lei nova-iorquino reconheceria a todo cidadão o direito de mudar de gênero

ATÉ ESTE começo de dezembro, tudo indicava que o conselho de saúde pública (Board of Health) da cidade de Nova York aprovaria uma lei autorizando qualquer cidadão a mudar de gênero em sua certidão de nascimento e, conseqüentemente, em todos os seus documentos.
Bastaria pedir: não seria necessário comprovar que o sujeito tivesse mudado seu sexo anatômico por uma cirurgia ou alterado seu corpo pelo uso de hormônios. Não seria sequer exigido que ele se vestisse e vivesse habitualmente como uma pessoa do sexo oposto ao seu.

João, de terno e bigode, poderia se apresentar no escritório previsto e pedir para se tornar oficialmente mulher. Inversamente, Maria, de saia e cabeleira, poderia pedir para tornar-se oficialmente homem.

O projeto de lei parece extremo e, de fato, foi objeto de gozações ("Se eu não gostar, posso mudar de novo? Quantas vezes no ano?"). Mas, a bem da verdade, ele era adequado, por duas razões.

A primeira é que nenhum sujeito pediria a mudança administrativa de seu sexo se a questão não fosse, para ele, mais que séria: vital. A segunda é que, hoje, o estado de nossa ciência, biológica e psicológica, não permite mesmo que um conselho de especialistas (por mais bem escolhido que seja) assuma a responsabilidade de autorizar ou proibir uma mudança administrativa de sexo.

Nessas condições, respeitar a palavra do sujeito interessado é, muito provavelmente, o caminho em que menos se erra. Mas, antes de mais nada, algumas explicações. Há sujeitos ("transgêneros") que sofrem porque seu sentimento profundo de pertencer ao sexo masculino ou feminino não corresponde à sua anatomia. Em número mais ou menos igual para cada sexo, há mulheres que se sentem homens e se vivenciam como homens, e há homens que se sentem mulheres e se vivenciam como mulheres. Ambos são cativos de corpos que lhes parecem estrangeiros.

Quantos são? As estatísticas oscilam absurdamente: entre um sujeito em cada mil e um sujeito em cada 100 mil. Por que existe tamanha variação? A categoria dos transgêneros pode ser delimitada de maneiras muito diferentes: ela pode incluir desde sujeitos (raríssimos) que nascem com os atributos sexuais de ambos os sexos até sujeitos (muito numerosos) que, esporadicamente, sentem a necessidade de vestir a roupa do sexo oposto - passando pelos sujeitos que modificam (mais ou menos radicalmente) seu corpo para que corresponda a seu sentimento de identidade.

Para complicar a tarefa dos pesquisadores, existem transgêneros "primários", em quem a discordância entre sexo anatômico e sentimento de identidade se manifesta desde a infância, e transgêneros "secundários", em quem a discordância se manifesta ou se agudiza na idade adulta (às vezes avançada).

Seja qual for o número de transgêneros no mundo, em sua grande maioria (90%, as estatísticas concordam) eles residem nas grandes cidades, onde o anonimato permite mais facilmente viver num gênero diferente do que figura nos documentos e é mais fácil encontrar possibilidades de inserção social (sempre tristemente escassas).

Fato de difícil compreensão para os "normais": os problemas de identidade de gênero não correspondem a uma orientação sexual específica.

Um grande número de transgêneros (a metade deles, segundo algumas estatísticas) eram e continuam sendo heterossexuais, ou seja, eram homens que desejavam parceiras mulheres ou mulheres que desejavam parceiros homens: ao mudarem de gênero, eles não alteram seu desejo e se tornam, de uma certa maneira, homossexuais.

Pois bem, a lei proposta pelo conselho nova-iorquino foi retirada. A proposta suscitou, obviamente, protestos "morais", fruto da ignorância de quem confunde um drama do sentimento de identidade com alguma forma de libertinagem. Mas, sobretudo, apresentaram-se problemas práticos ("New York Times" de 6/12): por exemplo, o que aconteceria com transgêneros que tivessem mudado de sexo administrativamente e que, por alguma razão, fossem presos? Iriam para uma penitenciária masculina ou feminina? E nos hospitais, como seria?

Essas objeções fazem sentido, mas revelam quanto nosso mundo é segregado pela diferença sexual. Homens à esquerda, mulheres à direita. Quem não se enquadra, que se vire.
O Natal é sempre um bom momento para pensar em quem tem uma vida especialmente difícil. Boas festas a todos.

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