A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim
ESTÁ EM cartaz "Mais Estranho que a Ficção", de Marc Forster (com um extraordinário roteiro de Zach Helm). Se você lê romances e contos, se freqüenta cinemas e teatros, se, em suma, a ficção tem alguma relevância na sua vida, não perca o filme.
É a história (engraçada e terna) de um auditor de impostos que, de repente, começa a ouvir a voz misteriosa de uma narradora: sua vida, aparentemente insignificante, é o tema de um romance, do qual ele é, obviamente, o protagonista.
Saí do cinema pensando no lugar que as ficções ocuparam e ocupam na minha vida.
Cresci numa família em que ler romances e assistir a filmes, ou seja, mergulhar em ficções, não era considerado uma perda de tempo. Podia atrasar os deveres ou sacrificar o sono para acabar um capítulo, e não era preciso me trancar no banheiro nem ler à luz de uma lanterna.
Meus pais, eventualmente, pediam que organizasse melhor meu horário, mas deixavam claro que meu interesse pelas ficções era uma parte crucial (e aprovada) de minha "formação". Eles sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes ou tivessem um valor cultural estabelecido. Um policial e um Dostoiévski eram tratados com a mesma deferência.
Quando foi minha vez de ser pai, agi da mesma forma. Por quê?
Existe a idéia (comum) segundo a qual a ficção é uma "escola de vida": ela nos apresenta a diversidade do mundo e constitui um repertório do possível. Alguém dirá: o mesmo não aconteceria com uma série de bons documentários ou ensaios etnográficos? Certo, documentários e ensaios ampliam nosso horizonte. Mas a ficção opera uma mágica suplementar.
Tome, por exemplo, "O Caçador de Pipas", de Khaled Hosseini. A leitura nos faz conhecer a particularidade do Afeganistão, mas o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir, o protagonista. Amir, afastado de nós pelas particularidades de seu grupo, revela-se igual a nós pela singularidade de sua experiência. A vida dos afegãos pode ser objeto de um documentário, que, sem dúvida, será instrutivo. Mas a história fictícia "daquele" afegão o torna meu semelhante e meu irmão.
Esta é a mágica da ficção: no meio das diferenças particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores. A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim.
Há uma outra idéia, menos comum, segundo a qual a vida da gente pode (e talvez deva) ser vivida como uma narração. Não tanto para que ela se transforme num roteiro mirabolante, mas para que nosso cotidiano (por humilde e banal que seja) assuma uma relevância e uma intensidade que o tornem digno de ser vivido. Não fica claro? Faça a experiência: passe três horas de seu dia acompanhando suas ações de sempre, seus pensamentos, seus encontros e suas rotinas com uma narração mental detalhada, como se você fosse o protagonista de um romance que está sendo escrito enquanto você age. Que o resultado seja um atormentado monólogo interior ou uma seca descrição, de qualquer forma, seu mundo (externo e interno) será transformado.
Se você prolongar a experiência (redigindo um diário, em forma de blog ou num caderno, pouco importa), a narração passará a comandar sua vida: aos poucos, suas escolhas serão decididas em função do texto que você está escrevendo. Critérios estéticos ("como fica isso na história?") acabarão se misturando com os critérios éticos pelos quais, até então, você se norteava.
"Viva sua vida como se ela fosse o objeto de um romance" é um imperativo moral estranho e eficiente, embora nem sempre seguro (e às vezes, aliás, francamente perigoso). Num momento do filme de Marc Forster, o protagonista aceita que a narradora escreva sua morte (e o condene, portanto, a morrer), pois esse parece ser, naquela altura, o desfecho adequado da história. Essa atitude do protagonista leva a escritora a observar que, na verdade, a gente deveria preservar a vida de um homem que é capaz de aceitar a morte para que sua história possa ser contada da melhor maneira possível. É um pequeno paradoxo (ético ou estético, difícil dizer) que merece reflexão.
Enfim, se perpetuei e transmiti o respeito de meus pais pelas ficções é porque elas me parecem ser a maior e melhor fonte não de nossas normas morais, mas de nosso pensamento moral.
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