22 maio 2008

Sábado no Sesc


O fotojornalismo nos força a descobrir uma densidade do instante que não queremos ver

NO SÁBADO passado, estive no Sesc Pompéia, em São Paulo, para ver a exposição de fotojornalismo da World Press Photo (até 15 de junho). A cada ano, essa organização atribui prêmios às melhores imagens entre as que são propostas por profissionais do mundo inteiro. Se você está longe de São Paulo, entre no site www.worldpressphoto.nl e clique em "Winners gallery 2008" (óbvio, a tela do computador não vale as imagens impressas).

A foto que ganhou o concurso deste ano é de Tim Hetherington, para "Vanity Fair". Representa um soldado dos Estados Unidos, numa trincheira, no Afeganistão. Ele retirou seu capacete e leva a mão direita para a testa, num gesto mais de exaustão que de desespero. A mão levantada tapa seu olho direito. O soldado não está nem ferido nem morto; não há sangue, apenas desolação. A cena poderia resumir qualquer guerra. Um olho atônito se abre no meio de um fundo monocrômico, em que se misturam a terra, o uniforme e os panos de camuflagem pendurados atrás do soldado: é a cor de uma angústia surda e talvez da morte.

Será que Hetherington, na hora de fotografar, viu o que eu enxergo no resultado? A resposta não é simples. O processo fotográfico (do momento em que alguém enquadra e focaliza até o trabalho de Photoshop) inventa ou aumenta a riqueza narrativa do momento. Mas, antes disso, o olhar do fotógrafo deve ter reconhecido a qualidade especial do instante. Entre os livros que ensinam a fotografar, gosto, por exemplo, do velho "Guia Completo de Fotografia", de J. Hedgecoe (Martins Fontes), e da "Introdução à Fotografia Digital", de Tom Ang (DK Civilização).
Essas obras nos explicam como conferir a máxima densidade ao instante fotografado: resta que, para fotografar, é preciso, primeiro, saber e, sobretudo, querer enxergar a densidade do instante.

Muitos anos atrás, no meio de uma viagem, não consegui fotografar um momento de extrema miséria e dor (em Varanasi, Índia, um mendigo queimava sua própria ferida aberta com um pires de ferro que ele esquentava no fogo). Aquela incapacidade fez com que abandonasse meus planos de ser fotógrafo. Na época, consolei-me pensando que não conseguira fotografar pela vergonha de eu me tornar assim "apenas" um espectador da miséria ou, então, por eu não querer interpor a câmera entre a dor do mendigo e minha compaixão.

Visitando a exposição do Sesc, pensei outra coisa: o fotojornalismo descobre e revela intensidades que nem sempre queremos enxergar. Talvez eu tenha desistido de fotografar não para poder me aproximar e ver melhor, mas, ao contrário, para não ver ou para ver menos.
No mesmo sentido, quando somos chocados pelas imagens nas primeiras páginas dos jornais, é porque nos indignamos contra "o sensacionalismo", mas talvez seja também porque resistimos contra o poder da fotografia, sua capacidade de nos fazer enxergar, no que contemplamos, algo que talvez preferíssemos não ver.

Saído da exposição, sentei ao sol tímido do outono. Logo, visitei outra mostra, "Vida Louca, Vida Intensa, Uma Viagem pela Contracultura" (são cartazes, capas de discos e filmes dos anos 60 ou sobre aquela época), e me diverti com o cardápio de livros (sobre o mesmo tema) que podem ser folheados na mesa do café.

No galpão central do Sesc, havia pessoas lendo revistas, outras jogando xadrez e dois homens "sonecando" numa poltrona. No galpão lateral, o ateliê de gravura estava em plena atividade, assim como o de arte e costura. Circulavam pelo conjunto famílias, crianças e idosos. Uma boa fotografia diria melhor, sem dúvida, a sensação de paz e de civilidade que estava no ar.

Não sei o que será do projeto de lei que planeja retirar uma boa parte da verba do Sesc para usá-la para cursos técnicos profissionalizantes. Claro, receio que o dinheiro suma no triângulo das Bermudas do Planalto Central. E estaria a fim de levantar o estandarte da cultura contra as necessidades da produtividade e do emprego. Mas seria cair numa armadilha. Seria aceitar a possibilidade de uma alternativa entre as exigências da racionalidade e as razões concretas de nossa vida: qualquer troca, nesse caso, é insensata, como se decidíssemos que, para produzir melhor, seria preciso viver pior. Então, produzir para quê?

Ora, aquela tarde de sábado no Sesc foi um pequeno exemplo do que é viver bem. E, certamente, não só para mim.

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