08 maio 2008

Guias para aventureiros


Se toda viagem é uma aventura, o melhor guia de viagem deveria ser escrito por nós mesmos


TENHO UMA relação quase erótica com os instrumentos dos quais me sirvo para escrever. Festejo, portanto, a chegada ao Brasil dos cadernos e blocos da legendária marca Moleskine.

A Moleskine começou a publicar também "guias" das principais cidades do mundo. São cadernos quase normais, cujas primeiras páginas apresentam mapas detalhados da cidade e uma lista das ruas. Depois disso, só há espaço em branco para anotações: "Eis o mapa, percorra-o, viva sua aventura e escreva seu próprio guia". Quer um bom restaurante? Nada de Michelin, converse com os nativos.

É minha viagem ideal: a gente lê, bem antes de viajar, guias e livros de história, de arte e de ficção (romances ambientados na cidade que será visitada). Se a viagem for de última hora, resta estudar o guia turístico no hotel, à noite, e marcar no mapa os percursos do dia seguinte. Seja como for, é bom sair pelas ruas levando consigo apenas um caderno, para escrever o que se tornará, depois da viagem, o "nosso" guia.

Minha descoberta de Veneza, por exemplo, aconteceu quase dessa forma. Li, antes de viajar, "The Stones of Venice", de John Ruskin ("As Pedras de Veneza", ed. Martins Fontes, esgotado, infelizmente).

Eu implicava com o amor exclusivo de Ruskin pelo gótico e com sua antipatia pelo estilo clássico, mas a inteligência e a sensibilidade do texto eram contagiantes. Ruskin sugere que se chegue a Veneza pelo mar, vindo de Chioggia, e no fim do dia, para ver a República surgir das águas na luz do pôr-do-sol. Fui de trem (melhor do que de avião, de qualquer forma); quando, mais tarde, consegui repetir a chegada de Ruskin, lamentei não ter escutado sua sugestão.
Naquela primeira estada, apenas errei pela cidade com a lembrança da leitura de Ruskin e um caderno que, de café em café, de encontro em encontro, enchi de notas.

As "pedras" não são a única razão de viajar. Ultimamente, chegaram em massa os guias da revista "Wallpaper" (ed. Phaidon). São livros de bolso, com, no fim, uma dezena de páginas brancas para anotações. O que precede são fotografias com um parágrafo de descrição. A ausência de qualquer mapa supõe um viajante que nem queira se orientar, apenas preocupado em visitar (ou melhor, em ter visitado) os lugares memoráveis ("eu estive lá"). Os ditos "lugares memoráveis" são os hotéis, os restaurantes e as lojas mais luxuosas, spas, bares na moda e alguns marcos que, às vezes, parecem ter sido escolhidos por um arquiteto enlouquecido ou por alguém que nunca colocou os pés na cidade em questão. A sensação é que são guias para não se esquecer dos lugares que vai ser obrigatório mencionar numa conversa entre emergentes na volta das férias.

Fora a antipatia pelas fraquezas narcisistas das classes emergentes, nenhuma censura: uma viagem não tem que ser obrigatoriamente um banho na "alta cultura". Mas o que não entendo é que a gente viaje para bater ponto nos lugares, artísticos ou mundanos, cuja menção futura atestará que estivemos lá. Ou seja, não entendo viagem sem aventura.

Sem chegar à ousada proposta das páginas brancas dos Moleskine, os melhores guias turísticos, hoje, tentam interessar tanto o viajante mundano quanto o viajante "artístico" (que podem ser a mesma pessoa) e, sobretudo, tentam indicar ao leitor lugares fora dos caminhos mais trilhados. Ou seja, os guias se preocupam em nos dar ao menos o sentimento de uma aventura possível. Claro, não basta: a aventura não depende apenas do encontro com o inusitado, ela é, antes de mais nada, uma disposição do espírito.

Uma surpresa: a Louis Vuitton pode ter-se tornado uma marca para quem busca sinais que confirmem seu status, mas, aparentemente, não se esqueceu de sua origem, não se esqueceu do que significa viajar. A marca acaba de publicar uma série de guias de cidades, em inglês e francês (Nova York, mais uma caixa com outras cidades do mundo). O guia de Nova York é o melhor que eu conheça -pela sóbria mistura de "dicas" tradicionais (galerias, museus etc.) e "dicas" mundanas (hotéis, restaurantes, bares, lojas, de luxo e de pechincha), pela menção de lugares nada óbvios (do Old Town Bar aos brechós) e, enfim, pela página dedicada às leituras literárias e de ficção que são a melhor "introdução" à cidade. Só falta uma lista de filmes (ou será que há uma, e eu não vi?).

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