23 julho 1995

A cultura da assimilação

Imigrei para o Brasil em 1989, depois de três anos a viajar como turista. Foi um labirinto administrativo. Mesmo casado com uma brasileira, no bom direito de estabelecer-me no país, o cenário para chegar à carteira de residente foi de escola kafkiana. Quando, depois de seis meses de peregrinações, retirei meu Registro Nacional de Estrangeiro, na Polícia Federal, um funcionário perguntou: "Mas como você conseguiu?".

Antes disso, morei na França, durante 15 anos. Lá, vi amigos de vários horizontes lutarem em vão para conseguir permanecer no país. Aliás, a burocracia francesa tinha a capacidade de deixar até um europeu, apesar de seu direito incontestável de residência, com a impressão de que sua permanência era um favor excepcional.

Por estas experiências, acho engraçado, quando leio que os Estados Unidos estariam fechando as fronteiras, que vão -oh horror!- lutar contra uma imigração clandestina de provavelmente 300 mil pessoas por ano e que, portanto, eles estariam se tornando "xenófobos".

Os Estados Unidos recebem hoje mais de 1 milhão de imigrantes legais por ano. Com exceção do Canadá e da Austrália (que têm uma proporção bem diferente entre território e população), eles são o único país ocidental aberto. Não está nada certo que esta política se explique por absconsos interesses econômicos: a fidelidade dos EUA a sua origem colonial é, antes de mais nada, a fidelidade a um ideal fundador de refúgio.
As sucessivas e quase ininterruptas ondas imigratórias certamente produziram várias e violentas inquietudes internas. Última em data é a de Peter Brimelow, que publicou recentemente o livro "Alien Nation" e foi entrevistado no Mais! do último domingo. Brimelow está preocupadíssimo com a transformação progressiva da sociedade americana, invadida por hordas de bárbaros hispânicos.

Ele me lembra certos imigrantes italianos na Suíça (também morei lá: para os imigrantes que não fossem estudantes, a coisa não era como Kafka, era como Sade; filas de homens separados de suas famílias por 11 meses, esperando na estação de Brig para exame médico etc.): quando, finalmente, conseguiam a carteira "C" (residência permanente), alguns queriam tanto se parecer com suíços que passavam automaticamente a desprezar os outros italianos (há um filme excelente com Nino Manfredi sobre isso, chama-se "Pão com Chocolate").

A partir dos anos 70, a administração americana abandonou um sistema de quotas preestabelecidas na seleção dos imigrantes. A idéia até lá era permitir uma imigração que respeitasse e mantivesse a balança das diferentes etnias e nacionalidades que compunham a nação americana.

Desde então, a administração decidiu privilegiar os familiares dos imigrados. Esta nova política de imigração acarretou um aumento significativo das comunidades asiática e, sobretudo, hispânica. Isso, combinado com o maior crescimento demográfico destas comunidades, promete a curto prazo uma alteração substancial da distribuição étnica nos Estados Unidos.

E daí? Porque estes novos imigrantes não acabariam se integrando no famoso "melting pot" da cultura americana, como foi o caso dos irlandeses, e dos italianos? Só porque seriam de cores diferentes?

A cultura americana tem um fantástico poder de assimilação. Ela incorpora com rapidez suas diferenças internas mais disruptivas: a guerra no Vietnã, o assédio sexual, Malcolm X, até o Black Panther Party são agora filmes, como são filmes e romances, há tempos, a imigração italiana, irlandesa, polonesa etc. As diferenças tornam-se, no imaginário cultural, patrimônio comum. Como, aliás, não seria inevitável a assimilação de todos à nação americana, se para todos a América, para onde emigram, já é geralmente um sonho muito esperado?

Brimelow responderia que nisso também as coisas mudaram. A ideologia americana dominante é hoje multiculturalista. A nação parece perseguir o sonho de uma comunidade que não peça nenhum sacrifício integrativo, onde cada um possa permanecer em sua diferença. É verdade que, por bonito que seja, este sonho arrisca tornar-se pesadelo: o sentimento de uma comunidade de destino pode mesmo se perder desde que a nação vá dividindo-se em grupos antagonistas.

O jornalista Michel Lind (autor do recém-lançado ``A Próxima Nação Americana") acrescentaria que a verdadeira ameaça à coesão da nação americana não é nem o projeto multiculturalista, nem a nova balança étnica.

A assimilação das ondas imigratórias até os anos 60 foi facilitada pelo acesso efetivo ao ``american way of life". Como já parecia evidente nos anos 20 aos sociólogos da escola de Chicago, a integração econômica, a participação no sonho americano garantiria a assimilação de todos. Ora, acontece que, justamente desde os anos 60, as diferenças econômicas foram se aprofundando: o sonho está mais difícil.

Segundo Lind, a verdadeira fratura que ameaça o tecido social americano é, hoje, vertical. É isso que ele chama a possível ``brasilização" dos Estados Unidos: um divórcio irremediável entre uma classe privilegiada e os outros. Por isso ele acaba pregando também um limite na imigração, não para manter a balança étnica, mas para conter uma nova e mais aguda fratura de classe.

Na verdade, se há um risco -relativo, aliás, especificamente à imigração hispânica-, ele não é nem cultural, nem propriamente econômico. A cultura americana, já disse, sempre conseguiu prevalecer sobre as diferenças culturais, e as fraturas econômicas encontrarão de novo, mais cedo ou mais tarde, o espírito solidário de um novo pacto social. Mas a nação será sem defesa se prevalecer um espírito predatório que não faz parte de sua tradição: se seus imigrantes não vierem para "fazer a América", ou mesmo para "se fazer na América", mas para explorar a América e levar uma malinha para casa.

Eles não serão nunca americanos, ou serão americanos de um tipo novo. Aqui, infelizmente, a idéia de brasilização dos EUA assume uma dimensão cultural que escapa a Lind: pois eles serão, na ambivalência da palavra e da tradição colonial portuguesa, "exploradores", e, como tais, sem nação. Por enquanto, legais ou ilegais, eles ainda são os únicos imigrantes globalmente mal vindos. É isso que se traduz em oposição ao uso de outras línguas do que o inglês, ou ao eventual espírito de clã dos grupos de novos imigrantes: um ressentimento difuso contra quem persegue o sonho do bem-estar sem entender que este ainda é, nos EUA, um ideal comunitário e não uma vocação predatória.

NOTA
Nos debates sobre os efeitos do multiculturalismo, muitos acabam contando os negros americanos como uma etnia a mais. É um equívoco político: os negros dos EUA são inexoravelmente americanos, parte integrante da nação, em nada comparáveis às recentes ondas migratórias.