Como lembra Philippe Ariès ("Histoire des Attitudes Devant la Mort en Occident du Moyen Âge à Nos Jours, Paris Seuil, 1975), apenas dois ou três séculos atrás, no Ocidente, as sepulturas ainda faziam parte da vida cotidiana: na beira dos caminhos, ao lado ou no chão das igrejas, as lápides mortuárias não eram ameaçadoras.
Sua presença não prometia só um destino funesto. Era possível e importante lembrar da morte, porque o verdadeiro depositário da vida não era o indivíduo em sua vã existência, mas a comunidade -terrestre ou celeste que fosse.
As tumbas encontradas a cada passo afirmavam a continuidade da vida (da comunidade), mais do que ameaçavam com o desespero do fim (do indivíduo).
Ora, se hoje a morte é horror sem remédio, os cemitérios seriam prisões onde esperamos afastar e prender a morte. E o Dia dos Mortos seria uma espécie de exorcismo coletivo quando forçadamente lembramos -uma vez por ano- o que preferiríamos esquecer.
Sabemos que não é assim. A visita às tumbas de família não é só um sedativo da culpa. Podemos gostar de passar em um cemitério desconhecido, lendo nos epitáfios o mistério de vidas que nos precederam (a "Antologia de Spoon River, de E. L. Masters, é sussurrada por cada lápide). Acontece também que procuremos inspiração nas tumbas dos grandes.
Os cemitérios, nascidos para afastar de nós a morte, se tornaram lugares de homenagem, lembrança, ou mesmo -um pouco como as igrejas- de meditação. O aparente paradoxo pode se expressar no alternar do dia e da noite.
O cemitério da noite, quando é frequentado por outras coisas do que simplesmente os nossos terrores, se torna -como o Père-Lachaise em Paris- um lugar de escuros encontros onde o gozo se dá, à condição de nunca saber direito se atrás do zíper se esconde um sexo, uma faca ou um vírus.
Em suma, ele é o parque confinado dos horrores: o horror da morte e o horror de um impossível e último gozo. O cemitério de dia, ao contrário, é parte indispensável de nossas vidas. Pois, exatamente pela mesma razão pela qual afastamos de nós a presença física da morte, também não podemos abrir mão da lembrança dos mortos.
Acontece que, por sermos indivíduos (e portanto termos horror da morte), somos também sujeitos com pouca tradição, sempre incertos de quem somos, eternamente necessitados de fazer e refazer, pensar e repensar nossa história.
E por isso precisamos dos mortos que nós mesmos afastamos. Homens e mulheres famosos, inspiradores ou não, parentes e amigos próximos ou menos. E mesmo a massa dos mortos que nunca encontramos em vida nos habitam. Mantemos eles dentro de nós e com eles engajamos uma espécie de diálogo intrapsíquico.
E, quando visitamos -de dia, naturalmente- suas tumbas, paramos para dialogar com eles. Frequentemente, aliás, em voz semi-alta, dando aos cemitérios no Dia dos Mortos a aparência de enfermarias de alucinados.
Ainda bem, pois o medo da morte não nos impede de inventar, com a ajuda dos mortos, nosso passado e nosso futuro.