Há crianças que nascem com uma malformação dos órgãos sexuais suficiente para que surja uma incerteza quanto ao sexo do recém-nascido.
A partir dos anos 50, uma equipe da Johns Hopkins University se especializou em resolver essas dificuldades. Eles eram capitaneados por um psicólogo, John Money, o qual estava convencido de que a chamada identidade de gênero (o fato de a gente se sentir homem ou mulher) era um efeito da educação recebida. Ou seja, segundo ele, pouco importavam os hormônios: as crianças viveriam como machos ou fêmeas por serem criadas brincando -quer seja de bonecas e panelas, quer seja de metralhadoras e caminhões.
Portanto, concluía Money, nos casos em que o sexo anatômico não aparece claramente definido, basta optar firme para o sexo mais fácil de ser reconstruído cirurgicamente. Em seguida, resta tratar a criança como menino ou menina, de acordo com o resultado da operação. A faca escolheria o sexo, e o sentimento de identidade iria se adaptar à nova realidade anatômica.
Os casos tratados pela equipe de Baltimore eram todos de crianças que apresentavam órgãos sexuais confusos e, portanto, também deviam sofrer de algum descompasso hormonal. Faltava um caso que demonstrasse a doutrina sem equívocos. O destino ofereceu a Money essa chance quando o pequeno Bruce Reimer caiu em suas mãos.
A história desse mártir do obscurantismo acaba de ser contada de maneira magistral por John Colapinto, no livro "As Nature Made Him" (HarperCollins), que se lê num sopro de indignação. Em 1966, Bruce e Brian Reimer, irmãos gêmeos, aos seis meses, foram submetidos à circuncisão.
A de Bruce não deu certo, e o pênis da criança foi irreparavelmente queimado. Na época, as perspectivas de cirurgia reconstrutora eram incertas. Os pais encontraram Money e o grupo de Baltimore, para quem Bruce era o caso pedido a Deus: não um hermafrodita, mas um menino normal, com cargas hormonais normais -apenas amputado. Com ele, seria possível mostrar sem ambiguidade que o gênero é só uma questão de educação. Money propôs então transformar Bruce em menina. A criança foi, portanto, castrada (ablação de testículos e escroto), rebatizada como Brenda e criada como menina. Em perspectiva: outras cirurgias para criar uma vagina funcional e hormônios na puberdade, para desenvolver seios e aparência feminina.
Durante anos, Money permaneceu cego ao sofrimento de Bruce/ Brenda -apresentou o caso como um completo sucesso. A fraude foi revelada só em 1997. E hoje Reimer, que decidiu se chamar David e voltou a ser o homem que de fato ele nunca deixou de ser, conta seu calvário.
Lições urgentes de serem ouvidas:
1. Money defendia a idéia de que a educação pode tudo e a biologia não apita nada. Essa idéia era progressista: foi nela que o movimento feminista se apoiou para mostrar que o lugar subalterno da mulher na sociedade não é uma necessidade biológica. Hoje, uma parte do movimento gay acha progressista afirmar que as orientações sexuais são decididas biologicamente. Moral: as ideologias mudam. Portanto, é bom deixar a ideologia na gaveta, sobretudo quando ela comanda uma faca.
2. Os defensores da primazia da educação sobre a biologia castraram Bruce Reimer. Os defensores da primazia oposta já lobotomizaram cérebros e ainda vão cortando. Não está na hora de aceitar que a verdade esteja no meio? Ou seja, que somos uma complexa e indissociável mistura de carne, palavras e imagens, em que não vem ao caso decidir qual dos três pode mais? Um pouco de humildade não faria mal a ninguém.
3. Psiquiatras e psicólogos pensaram que era possível criar Bruce como se ele tivesse nascido menina. Eles acreditaram que os pais nada transmitiriam de sua raiva, de sua frustração ou mesmo de seu sentimento de culpa. Acharam que seria possível organizar a vida de uma criança ao redor de uma mentira sem que isso transparecesse. É só dar as instruções certas para o comportamento dos familiares. Mas quem lhes deu um diploma?
4. Paul McHugh, atual chefe do departamento de psiquiatria de Johns Hopkins, compara as práticas de Money com a lobotomia e encoraja os psiquiatras a voltar a escutar seus pacientes, abandonando as práticas radicais. Ainda hoje, cirurgias irreversíveis são promovidas, por exemplo, na cura de neuroses obsessivas. Antes de confiar os pacientes à faca, cortando cabeças em cima ou em baixo, é bom refletir sobre a história de David Reimer.
5. A pressa em cortar, de Money e de outros, pode parecer um desejo de consertar as coisas. Algo não está certo? Eles querem resolver logo, antes que comece a doer. Chegam de faca e superbonder. Foi esta a idéia com Bruce Reimer: conserta logo antes que ele se dê conta. Não lhe deixa o tempo de urrar à Lua pelo horror do qual foi vítima. Será que é generosidade? Ou então covardia de terapeutas que não querem ouvir a dor de seus clientes? Na pressa de consertar, nós acabamos de ver para o que serve realmente a faca. O superbonder serve para colar a boca do paciente.
24 fevereiro 2000
17 fevereiro 2000
Um "custo Brasil" a mais
Leio na imprensa americana uma história de corrupção. O superintendente das escolas de Lynn, Massachusetts, é acusado de ter promovido indevidamente sua própria mulher, empregado seu advogado pessoal sem licitação e outras coisas parecidas. Numa outra cidade, uma figura análoga gastou US$ 600 mil para consultorias não muito bem definidas e, sobretudo, em parte efetuadas pela sua irmã.
A corrupção brasileira e a americana não são muito diferentes: banalidade e universalidade da mesquinhez.
Mas há uma diferença notável entre os relatos de corrupções tão parecidos. Os relatos americanos (tanto na imprensa quanto nas conversas de bar) são factuais e pouco indignados. É muito raro que eles sejam acompanhados por considerações gerais sobre a malvadeza humana, e é impensável que o acontecido seja atribuído a algum traço do suposto caráter americano. A caricatura nacional não é nunca invocada como explicação.
Os relatos brasileiros, ao contrário, assumem um tom autoflagelador. O pior nos é reservado por estarmos no Brasil e sermos brasileiros: "Meus irmãos, somos sem-vergonha, malandros, aproveitadores etc.". Não que o Brasil seja só isso, mas o que há de ruim em nosso destino é o preço que pagamos por estarmos respirando ares culturalmente mefíticos no sovaco desse gigante.
Pelo mundo afora, todos indivíduos, grupos, famílias, sociedades sofremos de passivos herdados. É ótimo investigar esses passivos, para melhor ultrapassá-los. Essa é, por exemplo, uma das funções de qualquer psicanálise. Mas não seria preocupante se, cada vez que eu fizesse uma besteira, me consolasse e desculpasse alegando meu "custo Contardo"? "Oh! Não paguei impostos? É "custo Contardo", sabem como é, minha família nunca gostou mesmo."
Em suma, certamente há um "custo Brasil", ou seja, uma série de dificuldades que devemos à história do país. Mas há também um "custo Brasil" suplementar e talvez mais oneroso, que é um efeito retórico.
O Brasil, por exemplo, rouba a cena de nossas narrativas. Sinto falta de histórias que sejam de amor, de ódio, de aventura ou simplesmente de vida e nas quais o Brasil não seja um protagonista sorrateiro, mas sempre crucial. Será que é possível se apaixonar na Lapa, transar nos motéis da marginal, jantar no edifício Itália, descer para Santos num domingo, sem que o mau governo, a injustiça social, os problemas do trânsito, o passado bandeirante, os restos da escravatura e todos os traços da identidade nacional sejam convocados para contar, legitimar e justificar a história?
Esse "custo Brasil" retórico empobrece também nossos esforços de compreensão. Ele induz à preguiça do pensamento e inibe a ação. Pouco adianta dar respostas concretas para os problemas que nos assolam, pois a causa do que não funciona é sempre mais geral e, por isso, está fora do alcance. Por exemplo, imaginemos que a produtividade brasileira esteja baixa. Poderemos reconhecer que o protecionismo serviu à miopia de empreendedores pusilânimes, os quais aproveitaram das vacas gordas sem modernizar o aparelho produtivo. Mas logo chegaremos a uma causa originária: por exemplo, os ditos empresários encheram seus bolsos, em vez de modernizar suas fábricas, porque as elites brasileiras são uma herança do extrativismo colonial etc.
As coisas vão se explicando, até que em última instância tudo acontece "porque o Brasil". Poderia se tornar uma expressão sem verbo: há criminosos porque o Brasil, há corruptos porque o Brasil, há caudilhos porque o Brasil, há favelados porque o Brasil. E por aí vai. Melhor, por aí não vai a lugar nenhum, pois o Brasil torna-se assim a figura retórica do primeiro motor imóvel de todas as cadeias causais. Ele é portanto imutável, igual a si mesmo.
Esse Brasil retórico, origem de todos nossos infortúnios, vinga por ser também nosso sumo bem, nossa consolação: ele responde a nossas perplexidades, autoriza nossa inação e sobretudo cimenta nossa comunidade. Ele é uma língua compartilhada, que nos torna todos amigões. Graças a ele, podemos olhar para a Câmara Municipal, para o engenheiro que escravizou sua empregada, para o deputado do narcotráfico e piscar o olho uns para os outros, sorrindo encantados: "É isso aííííí!". Eis que nossos males são do Brasil, do mesmo jeito que os gols são da seleção. É o encontro festivo com uma imagem fácil e pitoresca que nos propõe prazeres narcisistas clandestinos.
Vivo, como muitos outros, uma contradição. Por um lado, há a paixão de entender uma herança que mistura ativos e passivos com a esperança de conseguir assim preparar um futuro melhor. Pelo outro, a irritação com o recurso contínuo a essa herança, em que a fascinação complacente nos imobiliza, como se, logo na hora de agir, Carmen Miranda saísse no palco e pedisse para permanecermos sentados para o show.
Melhor confessar, para que se entenda do que estou falando: ontem, um amigo me contou de um horror brasileiro qualquer. Seus olhos brilharam, irônicos, mas complacentes, ao concluir: "Isso é o Brasil!".
Pois é, não quero mais isso.
A corrupção brasileira e a americana não são muito diferentes: banalidade e universalidade da mesquinhez.
Mas há uma diferença notável entre os relatos de corrupções tão parecidos. Os relatos americanos (tanto na imprensa quanto nas conversas de bar) são factuais e pouco indignados. É muito raro que eles sejam acompanhados por considerações gerais sobre a malvadeza humana, e é impensável que o acontecido seja atribuído a algum traço do suposto caráter americano. A caricatura nacional não é nunca invocada como explicação.
Os relatos brasileiros, ao contrário, assumem um tom autoflagelador. O pior nos é reservado por estarmos no Brasil e sermos brasileiros: "Meus irmãos, somos sem-vergonha, malandros, aproveitadores etc.". Não que o Brasil seja só isso, mas o que há de ruim em nosso destino é o preço que pagamos por estarmos respirando ares culturalmente mefíticos no sovaco desse gigante.
Pelo mundo afora, todos indivíduos, grupos, famílias, sociedades sofremos de passivos herdados. É ótimo investigar esses passivos, para melhor ultrapassá-los. Essa é, por exemplo, uma das funções de qualquer psicanálise. Mas não seria preocupante se, cada vez que eu fizesse uma besteira, me consolasse e desculpasse alegando meu "custo Contardo"? "Oh! Não paguei impostos? É "custo Contardo", sabem como é, minha família nunca gostou mesmo."
Em suma, certamente há um "custo Brasil", ou seja, uma série de dificuldades que devemos à história do país. Mas há também um "custo Brasil" suplementar e talvez mais oneroso, que é um efeito retórico.
O Brasil, por exemplo, rouba a cena de nossas narrativas. Sinto falta de histórias que sejam de amor, de ódio, de aventura ou simplesmente de vida e nas quais o Brasil não seja um protagonista sorrateiro, mas sempre crucial. Será que é possível se apaixonar na Lapa, transar nos motéis da marginal, jantar no edifício Itália, descer para Santos num domingo, sem que o mau governo, a injustiça social, os problemas do trânsito, o passado bandeirante, os restos da escravatura e todos os traços da identidade nacional sejam convocados para contar, legitimar e justificar a história?
Esse "custo Brasil" retórico empobrece também nossos esforços de compreensão. Ele induz à preguiça do pensamento e inibe a ação. Pouco adianta dar respostas concretas para os problemas que nos assolam, pois a causa do que não funciona é sempre mais geral e, por isso, está fora do alcance. Por exemplo, imaginemos que a produtividade brasileira esteja baixa. Poderemos reconhecer que o protecionismo serviu à miopia de empreendedores pusilânimes, os quais aproveitaram das vacas gordas sem modernizar o aparelho produtivo. Mas logo chegaremos a uma causa originária: por exemplo, os ditos empresários encheram seus bolsos, em vez de modernizar suas fábricas, porque as elites brasileiras são uma herança do extrativismo colonial etc.
As coisas vão se explicando, até que em última instância tudo acontece "porque o Brasil". Poderia se tornar uma expressão sem verbo: há criminosos porque o Brasil, há corruptos porque o Brasil, há caudilhos porque o Brasil, há favelados porque o Brasil. E por aí vai. Melhor, por aí não vai a lugar nenhum, pois o Brasil torna-se assim a figura retórica do primeiro motor imóvel de todas as cadeias causais. Ele é portanto imutável, igual a si mesmo.
Esse Brasil retórico, origem de todos nossos infortúnios, vinga por ser também nosso sumo bem, nossa consolação: ele responde a nossas perplexidades, autoriza nossa inação e sobretudo cimenta nossa comunidade. Ele é uma língua compartilhada, que nos torna todos amigões. Graças a ele, podemos olhar para a Câmara Municipal, para o engenheiro que escravizou sua empregada, para o deputado do narcotráfico e piscar o olho uns para os outros, sorrindo encantados: "É isso aííííí!". Eis que nossos males são do Brasil, do mesmo jeito que os gols são da seleção. É o encontro festivo com uma imagem fácil e pitoresca que nos propõe prazeres narcisistas clandestinos.
Vivo, como muitos outros, uma contradição. Por um lado, há a paixão de entender uma herança que mistura ativos e passivos com a esperança de conseguir assim preparar um futuro melhor. Pelo outro, a irritação com o recurso contínuo a essa herança, em que a fascinação complacente nos imobiliza, como se, logo na hora de agir, Carmen Miranda saísse no palco e pedisse para permanecermos sentados para o show.
Melhor confessar, para que se entenda do que estou falando: ontem, um amigo me contou de um horror brasileiro qualquer. Seus olhos brilharam, irônicos, mas complacentes, ao concluir: "Isso é o Brasil!".
Pois é, não quero mais isso.
10 fevereiro 2000
A Europa apavorada consigo mesma
Um partido de inspiração aparentemente neonazista entrou na coalizão que governa a Áustria.
Ele representa quase um terço do eleitorado. A Europa está apavorada. Deve ser consigo mesma, pois, na verdade, o sucesso da extrema direita européia não é nenhuma novidade. Na Itália, ela já esteve no governo. Na França, conquistou administrações regionais e municipais. No resto da Europa, ela é uma presença violenta e constante.
Atrás dos apetrechos nostálgicos -suásticas e braços erguidos-, há hoje um denominador comum simples e popular: o ódio aos imigrantes.
Os europeus são uma espécie em via de desaparição. Em poucos anos, na Europa, haverá um aposentado para cada dois trabalhadores ativos: uma carga insustentável. É necessário receber imigrantes.
Ora, acontece que a União Européia não se apresenta como uma etnia. Nem como um território. Também nega que esteja reunida ao redor de vulgares interesses econômicos. Ela quer se definir, em suma, como uma herança espiritual, ou seja, uma cultura.
Acontece também que os candidatos a imigrar para Europa vêm do mundo muçulmano, da África negra ou dos países eslavos ex-comunistas.
A essas três categorias de imigrantes são reservados sentimentos diferentes.
Os eslavos são desagradáveis concorrentes no mercado dos empregos de base ou então candidatos à delinquência.
Os africanos negros são mais tolerados que os muçulmanos: o inquietante não é a cor da pele. O racismo europeu é cultural. Ora, os negros africanos, aos olhos dos europeus, vêm de culturas primitivas e subalternas. Seu destino presumível, a médio prazo, é a colonização de seus espíritos: por mais que sejam negros, se tornarão europeus de alma.
Os muçulmanos são os mais detestados, pois, ao contrário dos negros, são altivos e antagônicos: o Islã é uma cultura forte, se não expansionista, no mínimo autônoma. Em outras palavras, os negros africanos podem ocupar as ruas de Paris ou Viena, pois, de qualquer forma, consola-se a direita européia -colonizaremos suas mentes como, no passado, colonizamos seus países. Os muçulmanos, ocupando as mesmas ruas, não abrem seus espíritos aos charmes europeus. Quem sabe eles até tentem corromper nossas mentes.
A raiva xenófoba se alimenta hoje desta contradição: o continente precisa de imigrantes para sobreviver, mas ele não sabe lidar com culturas diferentes sem se sentir ameaçado em seu fundamento.
As soluções (capengas) a esta contradição têm um custo econômico alto. Limitar a chegada de imigrantes significa parar de crescer. Impor uniformidade cultural para aqueles que imigram, assimilá-los à força, não é só ideologicamente intolerável, é também ruim para a diversidade do consumo.
Fora da Europa, há países que prosperam evitando estes impasses: os EUA se mantiveram abertos à imigração e veneram as diferenças culturais. Nos últimos 50 anos, eles inventaram assim, dentro de sua própria sociedade, uma espécie de modelo para uma globalização bem-sucedida. A proposta é: podemos e devemos ser todos diferentes, à condição de que tenhamos em comum o desejo de prosperar e de que nossa diferença não interfira na prosperidade.
As peculiaridades (etnias, estilos de vida, orientações sexuais etc.) são exaltadas, garantindo uma rentável diversificação de costumes e consumo. Mas elas são subordinadas ao pressuposto comum pelo qual, no jogo econômico, as diferenças devem ser tão acessórias quanto a livre escolha da cor da gravata em um escritório dos anos 50.
A Europa, em suma, gostaria de participar da festa neoliberal, mas se atrapalha, pois sonha que o homem global possa seguir se definindo pela cultura concreta da qual é filho. Por exemplo: "Sou global, ganho global, invisto global, mas sigo francês e me defino pela baguete e por Godard". Isso acaba em: "Sou austríaco e não gosto de "turco'". O que é péssimo para a produção e para os negócios.
Os EUA descobriram que o homem global pode manifestar sua originalidade. Afinal, Godard e as calças curtas de couro à tirolesa são bens de consumo: que cada um compre livremente. Ora, preço da prosperidade: estas diferenças todas devem ser de brincadeira, pois por cima delas paira uma única cultura de verdade, pela qual, apesar de nossas pretensas diferenças, somos todos agentes econômicos intercambiáveis.
E o Brasil nesta história? Uma glória explícita da cultura brasileira é a capacidade de digerir, misturar e, portanto, respeitar todo tipo de diferença. Mas, curiosamente, o país se fechou à imigração, como a Europa. Não foi por receio da variedade dos imigrantes. Foi para que mais ninguém viesse aproveitar do bolo. Por herança do extrativismo português, o Brasil foi, e talvez ainda seja, patrimonialista. Espera-se a prosperidade não tanto do trabalho e da invenção produtiva, quanto de tesouros escondidos: ouro (amarelo ou verde), prata, diamantes e esmeraldas, petróleo, sem falar dos segredos biológicos das plantas amazônicas. É ainda outro tipo de impasse.
Ele representa quase um terço do eleitorado. A Europa está apavorada. Deve ser consigo mesma, pois, na verdade, o sucesso da extrema direita européia não é nenhuma novidade. Na Itália, ela já esteve no governo. Na França, conquistou administrações regionais e municipais. No resto da Europa, ela é uma presença violenta e constante.
Atrás dos apetrechos nostálgicos -suásticas e braços erguidos-, há hoje um denominador comum simples e popular: o ódio aos imigrantes.
Os europeus são uma espécie em via de desaparição. Em poucos anos, na Europa, haverá um aposentado para cada dois trabalhadores ativos: uma carga insustentável. É necessário receber imigrantes.
Ora, acontece que a União Européia não se apresenta como uma etnia. Nem como um território. Também nega que esteja reunida ao redor de vulgares interesses econômicos. Ela quer se definir, em suma, como uma herança espiritual, ou seja, uma cultura.
Acontece também que os candidatos a imigrar para Europa vêm do mundo muçulmano, da África negra ou dos países eslavos ex-comunistas.
A essas três categorias de imigrantes são reservados sentimentos diferentes.
Os eslavos são desagradáveis concorrentes no mercado dos empregos de base ou então candidatos à delinquência.
Os africanos negros são mais tolerados que os muçulmanos: o inquietante não é a cor da pele. O racismo europeu é cultural. Ora, os negros africanos, aos olhos dos europeus, vêm de culturas primitivas e subalternas. Seu destino presumível, a médio prazo, é a colonização de seus espíritos: por mais que sejam negros, se tornarão europeus de alma.
Os muçulmanos são os mais detestados, pois, ao contrário dos negros, são altivos e antagônicos: o Islã é uma cultura forte, se não expansionista, no mínimo autônoma. Em outras palavras, os negros africanos podem ocupar as ruas de Paris ou Viena, pois, de qualquer forma, consola-se a direita européia -colonizaremos suas mentes como, no passado, colonizamos seus países. Os muçulmanos, ocupando as mesmas ruas, não abrem seus espíritos aos charmes europeus. Quem sabe eles até tentem corromper nossas mentes.
A raiva xenófoba se alimenta hoje desta contradição: o continente precisa de imigrantes para sobreviver, mas ele não sabe lidar com culturas diferentes sem se sentir ameaçado em seu fundamento.
As soluções (capengas) a esta contradição têm um custo econômico alto. Limitar a chegada de imigrantes significa parar de crescer. Impor uniformidade cultural para aqueles que imigram, assimilá-los à força, não é só ideologicamente intolerável, é também ruim para a diversidade do consumo.
Fora da Europa, há países que prosperam evitando estes impasses: os EUA se mantiveram abertos à imigração e veneram as diferenças culturais. Nos últimos 50 anos, eles inventaram assim, dentro de sua própria sociedade, uma espécie de modelo para uma globalização bem-sucedida. A proposta é: podemos e devemos ser todos diferentes, à condição de que tenhamos em comum o desejo de prosperar e de que nossa diferença não interfira na prosperidade.
As peculiaridades (etnias, estilos de vida, orientações sexuais etc.) são exaltadas, garantindo uma rentável diversificação de costumes e consumo. Mas elas são subordinadas ao pressuposto comum pelo qual, no jogo econômico, as diferenças devem ser tão acessórias quanto a livre escolha da cor da gravata em um escritório dos anos 50.
A Europa, em suma, gostaria de participar da festa neoliberal, mas se atrapalha, pois sonha que o homem global possa seguir se definindo pela cultura concreta da qual é filho. Por exemplo: "Sou global, ganho global, invisto global, mas sigo francês e me defino pela baguete e por Godard". Isso acaba em: "Sou austríaco e não gosto de "turco'". O que é péssimo para a produção e para os negócios.
Os EUA descobriram que o homem global pode manifestar sua originalidade. Afinal, Godard e as calças curtas de couro à tirolesa são bens de consumo: que cada um compre livremente. Ora, preço da prosperidade: estas diferenças todas devem ser de brincadeira, pois por cima delas paira uma única cultura de verdade, pela qual, apesar de nossas pretensas diferenças, somos todos agentes econômicos intercambiáveis.
E o Brasil nesta história? Uma glória explícita da cultura brasileira é a capacidade de digerir, misturar e, portanto, respeitar todo tipo de diferença. Mas, curiosamente, o país se fechou à imigração, como a Europa. Não foi por receio da variedade dos imigrantes. Foi para que mais ninguém viesse aproveitar do bolo. Por herança do extrativismo português, o Brasil foi, e talvez ainda seja, patrimonialista. Espera-se a prosperidade não tanto do trabalho e da invenção produtiva, quanto de tesouros escondidos: ouro (amarelo ou verde), prata, diamantes e esmeraldas, petróleo, sem falar dos segredos biológicos das plantas amazônicas. É ainda outro tipo de impasse.
03 fevereiro 2000
Irã, Nigéria, Paquistão, Arábia, Iêmen e EUA
O que têm eles em comum? Não é uma brincadeira. Há algo que só é próprio desses países.
Aqui vai: são os únicos países onde são justiçados criminosos que eram menores de 18 anos no momento do crime. Os EUA estão em primeiro lugar na lista, com o maior número dessas execuções desde 1990: dez.
Quando menciono esses dados da Anistia Internacional, recebo às vezes comentários do tipo: "Pois é, no Brasil os grupos de extermínio se encarregam das crianças criminosas. É muito pior-segue o comentário-, pois elas são mortas por vingança ou por medo, sem justiça. Nos EUA, ao menos, a coisa é feita segundo a lei".
Em suma, pensam meus interlocutores: "Se for preciso matar criminosos menores, melhor que seja feito pela comunidade em sua expressão legal e não por assassinos pagos por comerciantes exasperados. A primeira solução seria mais civilizada".
Tendo a pensar o contrário. Exterminadores e jagunços podem até gozar de impunidade, mas não são os apóstolos do bem social: eles são criminosos como suas vítimas. O ato dos carrascos oficiais, ao contrário, é apresentado como o bem social. Eles representam uma comunidade que pratica a execução de menores como forma de justiça.
Há um consenso ocidental e moderno de que a pena de morte não deve se aplicar a criminosos menores, pois eles são suscetíveis de mudar. Por isso eles são poupados e destinados à reabilitação.
Não é que confiemos nos adolescentes. Confiamos no poder pedagógico dos adultos, em nossa capacidade de corrigir os jovens. Nisso os norte-americanos não são diferentes de nós. Como se explica, então, sua presença nessa estranha lista?
Os cinco colegas dos EUA são países de cultura tradicional -onde a tradição pode e deve dizer o que é certo ou errado, quem deve ser punido, quando e como. Ao contrário, para nós ocidentais e modernos, a moral é um terreno minado, difícil, contraditório. Somos nós que devemos decidir o que é bem ou mal. O fundamento da justiça é tão subjetivo que, para julgar, nos identificamos com o culpado.
A sugestão cristã "quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra" é o começo do fim da certeza ética. Em suma, nossa autoridade moral é normalmente duvidosa e hesitante. Condenar deveria ser, para nós, um tormento.
Justamente, executar qualquer culpado supõe uma dupla certeza moral, difícil em nossa cultura: a certeza de reconhecer um mal sem desculpa e a certeza de sermos suficientemente diferentes do culpado para que a condenação não seja hipócrita. Executar menores implica mais uma certeza que chega a contradizer um dos princípios básicos de nossa cultura: o sujeito ocidental moderno se define por seu potencial de mudança, por seus futuros possíveis. Ora, para executar um menor, é necessário acreditar que ele não mudará.
Ao entrar na lista, os EUA -supostamente o protótipo de país ocidental moderno- parecem abandonar a atormentada incerteza moral que define a modernidade. Por qual milagre? Será que eles produziram, enfim, uma nova comunidade tão coesa que consegue legislar com o mesmo tipo de certeza moral de uma sociedade tradicional?
Seria o sonho de Rousseau realizado. Melhor e mais firme do que a própria tradição, a vontade geral dos cidadãos orienta a todos. Se for o caso, perdoem, mas não me dá vontade de festejar. Gosto de nosso sentimento de mediocridade moral. A incerteza do juízo, a hesitação em julgar por achar que somos tão indignos quanto os acusados, é o que temos moralmente de melhor. Sem isso, nossos gestos repressivos parecem pantomimas de palhaços hipócritas e facilmente sanguinários.
Desconfio da certeza moral norte-americana até porque, curiosamente, ela parece estar crescendo nos últimos anos. Felizmente para a carne mas infelizmente para o espírito norte-americano, a década que acaba foi de grande prosperidade para os EUA. Ora, o pragmatismo norte-americano é retroativo, ou seja, considera que, se algo deu certo, é porque mereceu a aprovação divina. A prosperidade econômica dos EUA produz, assim, autorização moral. Nos enriquecemos, portanto somos os eleitos. Porque duvidaríamos de nossas escolhas morais se, obviamente, é Deus que traça nosso caminho? Quem discordar, que se cuide.
P.S.
1.Clovis Rossi, em sua correspondência de Davos, relata que Umberto Eco preocupou empresários e políticos, anunciando o triste fim da ética tradicional. Engraçado. Será que a incerteza do julgamento moral que nos acompanha e vem crescendo há quase meio milênio é tão dura de aguentar? Não sei o que Eco tinha na cabeça, mas -em vez de chorar sobre as certezas perdidas- me parece urgente aceitar que nossa incerteza pode ser uma virtude. E, portanto, desconfiar de novas perniciosas certezas com as quais não sei se estamos a fim de viver.
2. O Estado de Illinois acaba de decidir uma moratória das execuções, por medo dos erros judiciários. Pois, desde 77, 13 condenados à morte foram inocentados e liberados. Na falta de uma boa incerteza moral, já é bom reconhecer que a gente não é infalível.
Aqui vai: são os únicos países onde são justiçados criminosos que eram menores de 18 anos no momento do crime. Os EUA estão em primeiro lugar na lista, com o maior número dessas execuções desde 1990: dez.
Quando menciono esses dados da Anistia Internacional, recebo às vezes comentários do tipo: "Pois é, no Brasil os grupos de extermínio se encarregam das crianças criminosas. É muito pior-segue o comentário-, pois elas são mortas por vingança ou por medo, sem justiça. Nos EUA, ao menos, a coisa é feita segundo a lei".
Em suma, pensam meus interlocutores: "Se for preciso matar criminosos menores, melhor que seja feito pela comunidade em sua expressão legal e não por assassinos pagos por comerciantes exasperados. A primeira solução seria mais civilizada".
Tendo a pensar o contrário. Exterminadores e jagunços podem até gozar de impunidade, mas não são os apóstolos do bem social: eles são criminosos como suas vítimas. O ato dos carrascos oficiais, ao contrário, é apresentado como o bem social. Eles representam uma comunidade que pratica a execução de menores como forma de justiça.
Há um consenso ocidental e moderno de que a pena de morte não deve se aplicar a criminosos menores, pois eles são suscetíveis de mudar. Por isso eles são poupados e destinados à reabilitação.
Não é que confiemos nos adolescentes. Confiamos no poder pedagógico dos adultos, em nossa capacidade de corrigir os jovens. Nisso os norte-americanos não são diferentes de nós. Como se explica, então, sua presença nessa estranha lista?
Os cinco colegas dos EUA são países de cultura tradicional -onde a tradição pode e deve dizer o que é certo ou errado, quem deve ser punido, quando e como. Ao contrário, para nós ocidentais e modernos, a moral é um terreno minado, difícil, contraditório. Somos nós que devemos decidir o que é bem ou mal. O fundamento da justiça é tão subjetivo que, para julgar, nos identificamos com o culpado.
A sugestão cristã "quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra" é o começo do fim da certeza ética. Em suma, nossa autoridade moral é normalmente duvidosa e hesitante. Condenar deveria ser, para nós, um tormento.
Justamente, executar qualquer culpado supõe uma dupla certeza moral, difícil em nossa cultura: a certeza de reconhecer um mal sem desculpa e a certeza de sermos suficientemente diferentes do culpado para que a condenação não seja hipócrita. Executar menores implica mais uma certeza que chega a contradizer um dos princípios básicos de nossa cultura: o sujeito ocidental moderno se define por seu potencial de mudança, por seus futuros possíveis. Ora, para executar um menor, é necessário acreditar que ele não mudará.
Ao entrar na lista, os EUA -supostamente o protótipo de país ocidental moderno- parecem abandonar a atormentada incerteza moral que define a modernidade. Por qual milagre? Será que eles produziram, enfim, uma nova comunidade tão coesa que consegue legislar com o mesmo tipo de certeza moral de uma sociedade tradicional?
Seria o sonho de Rousseau realizado. Melhor e mais firme do que a própria tradição, a vontade geral dos cidadãos orienta a todos. Se for o caso, perdoem, mas não me dá vontade de festejar. Gosto de nosso sentimento de mediocridade moral. A incerteza do juízo, a hesitação em julgar por achar que somos tão indignos quanto os acusados, é o que temos moralmente de melhor. Sem isso, nossos gestos repressivos parecem pantomimas de palhaços hipócritas e facilmente sanguinários.
Desconfio da certeza moral norte-americana até porque, curiosamente, ela parece estar crescendo nos últimos anos. Felizmente para a carne mas infelizmente para o espírito norte-americano, a década que acaba foi de grande prosperidade para os EUA. Ora, o pragmatismo norte-americano é retroativo, ou seja, considera que, se algo deu certo, é porque mereceu a aprovação divina. A prosperidade econômica dos EUA produz, assim, autorização moral. Nos enriquecemos, portanto somos os eleitos. Porque duvidaríamos de nossas escolhas morais se, obviamente, é Deus que traça nosso caminho? Quem discordar, que se cuide.
P.S.
1.Clovis Rossi, em sua correspondência de Davos, relata que Umberto Eco preocupou empresários e políticos, anunciando o triste fim da ética tradicional. Engraçado. Será que a incerteza do julgamento moral que nos acompanha e vem crescendo há quase meio milênio é tão dura de aguentar? Não sei o que Eco tinha na cabeça, mas -em vez de chorar sobre as certezas perdidas- me parece urgente aceitar que nossa incerteza pode ser uma virtude. E, portanto, desconfiar de novas perniciosas certezas com as quais não sei se estamos a fim de viver.
2. O Estado de Illinois acaba de decidir uma moratória das execuções, por medo dos erros judiciários. Pois, desde 77, 13 condenados à morte foram inocentados e liberados. Na falta de uma boa incerteza moral, já é bom reconhecer que a gente não é infalível.
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