Na quarta-feira da semana passada, a coluna de Elio Gaspari na Folha evocava o drama recente de um navio de crianças escravas errando ao largo da costa do Benin. Ao ler o texto -que era inspirado-, o navio tornava-se uma metáfora de toda a África subsaariana: ilha à deriva, mistura de leprosário com campo de extermínio e reserva de mão-de-obra para migrações desesperadas.
Além da África, a viagem do navio negreiro evocava o sofrimento de imigrantes asfixiados em caminhões que atravessavam o Canal da Mancha, afogados no meio do rio Grande ou vencidos pelo sol e pela sede no deserto do Texas -os heróis das fotografias de Sebastião Salgado.
Elio Gaspari propunha um termo para designar esse povo móvel e desesperado: "os cidadãos descartáveis". "Massas de homens e mulheres são arrancadas de seus meios de subsistência e jogadas no mercado de trabalho como proletários livres, desprotegidos e sem direitos." São palavras de Marx, quando ele descreve a "acumulação primitiva", ou seja, o processo que, no século 16, criou as condições necessárias ao surgimento do capitalismo.
Para que ganhássemos nosso mundo moderno, foi necessário, por exemplo, que os servos feudais fossem, à força, expropriados do pedacinho de terra que podiam cultivar para sustentar-se. Massas inteiras se encontraram assim, paradoxalmente, livres da servidão, mas obrigadas a vender seu trabalho para sobreviver.
Quatro ou cinco séculos mais tarde, essa violência não deveria ter acabado? Ao que parece, o século 20 pediu uma espécie de segunda rodada, um ajuste: a criação de sujeitos descartáveis globais para um capitalismo enfim global.
Simples continuação ou repetição? Talvez haja uma diferença -pequena, mas substancial- entre as massas do século 16 e os migrantes da globalização: as primeiras foram arrancadas de seus meios de subsistência, os segundos são expropriados de seu lugar por uma violência comparável à da fome, por exemplo, mas quase sempre eles recebem em troca um devaneio. O protótipo poderia ser o prospecto que, um século atrás, seduzia os emigrantes europeus: sonhos de posse, de bem-estar e de ascensão social.
As condições para que o capitalismo invente sua versão neoliberal são subjetivas. A expropriação que torna a passagem possível é psicológica: necessita que sejamos arrancados nem tanto de nossos meios de subsistência, mas de nossa comunidade restrita, familiar e social, para sermos lançados numa procura infinita de status (e, hipoteticamente, de bem-estar) definido pelo acesso a bens e serviços. Arrancados de nós mesmos, devemos querer ardentemente ser outra coisa do que somos.
Depois da liberdade de vender nossa força de trabalho, a "acumulação primitiva" do neoliberalismo nos oferece a liberdade de mudar e subir na vida, ou seja, de cultivar visões, sonhos e devaneios de aventura e de sucesso. E, desde o prospecto do emigrante, a oferta vem se aprimorando. A partir dos anos 60, por exemplo, a televisão forneceu os sonhos para que o campo não só devesse, mas quisesse ir para a cidade.
Cuidado: a criação das condições psicológicas necessárias para o neoliberalismo não coincide com a simples promoção de um consumo massificado.
O requisito para que a máquina neoliberal funcione é mais refinado do que a venda dos mesmos sabonetes ou filmes para todos. Trata-se de alimentar um sonho infinito de perfectibilidade e, portanto, uma insatisfação radical. Não é pouca coisa: é necessário promover e vender objetos e serviços por eles serem indispensáveis para alcançarmos nossos ideais de status, de bem-estar e de felicidade, mas, ao mesmo tempo, é preciso que toda satisfação conclusiva permaneça impossível.
Para fomentar o sujeito neoliberal, o que importa não é lhe vender mais uma roupa, uma cortina ou uma lipoaspiração. Mas alimentar nele sonhos de elegância perfeita, casa perfeita e corpo perfeito. Pois esses sonhos perpetuam o sentimento de nossa inadequação e garantem, assim, que ele seja parte inalterável, definidora da personalidade contemporânea.
Provavelmente seria uma catástrofe se pudéssemos, de repente, acalmar nossa insatisfação. Aconteceria uma queda total do índice de confiança dos consumidores. Bolsas e economia iriam para o brejo. Desemprego, crise etc.
Melhor deixar como está. No entanto a coisa não fica bem. Do meu pequeno observatório psicanalítico, parece que o permanente sentimento de inadequação faz do sujeito neoliberal uma espécie de sonhador descartável, que corre atrás da miragem de sua felicidade como um trem descontrolado, sem condutor, acelerando progressivamente por inércia -até que os trilhos não aguentem mais.
PS: Ocorre-me que, na coluna da semana passada, eu lamentava que a imprensa vendesse, às vezes, sonhos indiscriminados de felicidade e de perfeição. Uma amiga comentou que o texto lhe parecera "patrulheiro", ou seja, estraga prazeres. Pois é, sem querer, acho que respondi um pouco. E-mail:
26 abril 2001
19 abril 2001
Felicidade e facilidade na capa
A partir dos anos 70, as tribulações e as esperanças de cada dia pararam de ser assuntos frívolos. Na imprensa, cresceu o número de artigos sobre comportamento, sociedade e vida cotidiana. Talvez os novos temas distraíssem os leitores de afazeres mais sérios, mas, pelo menos, a maioria das reportagens indagava os objetos escolhidos. Imagine uma capa sobre o elixir de longa vida: os artigos relatariam os entusiasmos populares, mas logo exporiam os interesses econômicos em jogo e questionariam a credulidade das massas.
Algo mudou. As páginas de comportamento e de vida cotidiana são cada vez mais importantes na imprensa, mas muitas reportagens parecem sobretudo alimentar ilusões.
Acontece em todos os jornais e revistas. Esta semana foi a vez de "Istoé". Matéria de capa: "A Receita da Felicidade". Bravamente o artigo tenta mostrar a complexidade da questão, mas títulos e subtítulos desmentem o esforço dos repórteres. Por exemplo, é citada inicialmente, no texto, uma pesquisa americana insossa que acha possível nos ensinar a sermos felizes. No fim do parágrafo, os jornalistas comentam, justamente irônicos: "Simples assim". Mas o subtítulo da matéria contradiz qualquer ironia: "Cientistas comprovam que a felicidade etc". O mesmo vale para as "janelas" que acompanham o texto: são os "truques" dietéticos "para levantar o astral" e a própria "receita da felicidade".
Na semana passada, foi a vez de "Época". Nesse caso, o título da matéria de capa -"A Reconstrução do Corpo"- concordava plenamente com a reportagem: os leitores aprendiam que "técnicas arrojadas permitem o encontro das formas perfeitas". Parece-me que, poucos anos atrás, uma reportagem sobre esse tema desmascararia os lucros da indústria da aparência física, exporia os riscos das cirurgias e enumeraria as patologias do desejo de modificação corporal.
Enfim, indicaria que a insatisfação com o próprio corpo expressa quase sempre um sentimento de inadequação que se origina em outras áreas da vida, mais fundamentais e perniciosas (inadequação no amor, nos relacionamentos etc).
Mas nossa época prefere que a beleza seja fácil. E que a felicidade seja receitável.
O fenômeno não é só brasileiro. A capa de "U.S. News", de poucas semanas atrás, prometia revelar enfim "os segredos da gagueira". Ora, a reportagem propunha uma versão apenas melhorada da pedagogia da palavra de apoio que, há décadas, permite que os gagos falem. Na mesma data, a capa de "Time" convidava o leitor a descobrir "as novas curas prometedoras para centenas de fobias". De fato, do Paxil às terapias do comportamento, a única coisa nova no artigo era o otimismo de seu subtítulo.
Esse jornalismo sorridente, para festejar soluções, está disposto a inventar de maneira radical. Recentemente foi divulgada uma pesquisa sobre a localização cerebral do amor: a paixão parece ativar zonas diferentes da ternura. Isso não tem nenhuma implicação para a vida da gente. Mas o "Boston Globe", em vez de perguntar, sei lá, se a pesquisa valia o dinheiro que custou, prometeu a todos, no futuro, paixões como a de Brad Pitt por Jennifer Aniston, logo transformadas na tranquila felicidade de Paul Newman com Joanne Woodward.
O que está acontecendo? Há a hipótese paranóica: o Matrix está apoderando-se do planeta, começando pelas editorias de comportamento e de sociedade. Os extraterrestres nos preparam assim para que aceitemos a pílula da felicidade que distribuirão numa próxima invasão.
Fora essa eventualidade, resta considerar que o jornalismo da boa notícia seja um porta-voz privilegiado do momento cultural. E alguém já disse que hoje a qualquer problemática prefere-se a "solucionática".
Mas cuidado: é quase natural para nós debochar da facilidade. O romantismo nos inculcou a idéia de que as interrogações atormentadas são a nobre substância de verdade e de autenticidade. Durante muito tempo, o que não fosse triste, sombrio e difícil era considerado piegas e ridículo. O direito à felicidade, que, no começo da modernidade, foi proclamado como a nova pretensão do homem moderno, aparece hoje como uma ingenuidade para almas simplórias.
Ganhou força, sobretudo na cultura européia, a fascinação pelos impasses radicais. O impossível tornou-se sinal de elegância e de alta cultura, enquanto o possível e o realizável seriam preocupações de baixo nível. Ora, é possível que essa disposição romântica esteja se esgotando. E que, na coluna de hoje, eu seja apenas um velho rabugento que chora sobre os cacos do romantismo.
Por que não parar com isso e festejar a facilidade da felicidade? Pois é. Antes de entrar na dança, uma última pergunta: será que o sucesso da "solucionática" é o sinal de uma nova disposição de espírito mais alegre diante da tarefa de viver? Ou será que essa pretensa leveza do ser é uma vassoura com a qual empurramos furiosamente nossos problemas para baixo do tapete?
Algo mudou. As páginas de comportamento e de vida cotidiana são cada vez mais importantes na imprensa, mas muitas reportagens parecem sobretudo alimentar ilusões.
Acontece em todos os jornais e revistas. Esta semana foi a vez de "Istoé". Matéria de capa: "A Receita da Felicidade". Bravamente o artigo tenta mostrar a complexidade da questão, mas títulos e subtítulos desmentem o esforço dos repórteres. Por exemplo, é citada inicialmente, no texto, uma pesquisa americana insossa que acha possível nos ensinar a sermos felizes. No fim do parágrafo, os jornalistas comentam, justamente irônicos: "Simples assim". Mas o subtítulo da matéria contradiz qualquer ironia: "Cientistas comprovam que a felicidade etc". O mesmo vale para as "janelas" que acompanham o texto: são os "truques" dietéticos "para levantar o astral" e a própria "receita da felicidade".
Na semana passada, foi a vez de "Época". Nesse caso, o título da matéria de capa -"A Reconstrução do Corpo"- concordava plenamente com a reportagem: os leitores aprendiam que "técnicas arrojadas permitem o encontro das formas perfeitas". Parece-me que, poucos anos atrás, uma reportagem sobre esse tema desmascararia os lucros da indústria da aparência física, exporia os riscos das cirurgias e enumeraria as patologias do desejo de modificação corporal.
Enfim, indicaria que a insatisfação com o próprio corpo expressa quase sempre um sentimento de inadequação que se origina em outras áreas da vida, mais fundamentais e perniciosas (inadequação no amor, nos relacionamentos etc).
Mas nossa época prefere que a beleza seja fácil. E que a felicidade seja receitável.
O fenômeno não é só brasileiro. A capa de "U.S. News", de poucas semanas atrás, prometia revelar enfim "os segredos da gagueira". Ora, a reportagem propunha uma versão apenas melhorada da pedagogia da palavra de apoio que, há décadas, permite que os gagos falem. Na mesma data, a capa de "Time" convidava o leitor a descobrir "as novas curas prometedoras para centenas de fobias". De fato, do Paxil às terapias do comportamento, a única coisa nova no artigo era o otimismo de seu subtítulo.
Esse jornalismo sorridente, para festejar soluções, está disposto a inventar de maneira radical. Recentemente foi divulgada uma pesquisa sobre a localização cerebral do amor: a paixão parece ativar zonas diferentes da ternura. Isso não tem nenhuma implicação para a vida da gente. Mas o "Boston Globe", em vez de perguntar, sei lá, se a pesquisa valia o dinheiro que custou, prometeu a todos, no futuro, paixões como a de Brad Pitt por Jennifer Aniston, logo transformadas na tranquila felicidade de Paul Newman com Joanne Woodward.
O que está acontecendo? Há a hipótese paranóica: o Matrix está apoderando-se do planeta, começando pelas editorias de comportamento e de sociedade. Os extraterrestres nos preparam assim para que aceitemos a pílula da felicidade que distribuirão numa próxima invasão.
Fora essa eventualidade, resta considerar que o jornalismo da boa notícia seja um porta-voz privilegiado do momento cultural. E alguém já disse que hoje a qualquer problemática prefere-se a "solucionática".
Mas cuidado: é quase natural para nós debochar da facilidade. O romantismo nos inculcou a idéia de que as interrogações atormentadas são a nobre substância de verdade e de autenticidade. Durante muito tempo, o que não fosse triste, sombrio e difícil era considerado piegas e ridículo. O direito à felicidade, que, no começo da modernidade, foi proclamado como a nova pretensão do homem moderno, aparece hoje como uma ingenuidade para almas simplórias.
Ganhou força, sobretudo na cultura européia, a fascinação pelos impasses radicais. O impossível tornou-se sinal de elegância e de alta cultura, enquanto o possível e o realizável seriam preocupações de baixo nível. Ora, é possível que essa disposição romântica esteja se esgotando. E que, na coluna de hoje, eu seja apenas um velho rabugento que chora sobre os cacos do romantismo.
Por que não parar com isso e festejar a facilidade da felicidade? Pois é. Antes de entrar na dança, uma última pergunta: será que o sucesso da "solucionática" é o sinal de uma nova disposição de espírito mais alegre diante da tarefa de viver? Ou será que essa pretensa leveza do ser é uma vassoura com a qual empurramos furiosamente nossos problemas para baixo do tapete?
12 abril 2001
Preocupações de pais de adolescentes
"Não é nada de grave, mas você sabe como são as coisas, nós nos preocupamos com seu futuro..."
Há dois dias, essa mesma frase, quase literalmente, foi-me dita por pais diferentes. Eles tentavam comunicar assim sua angústia diante de uma guinada imprevista na vida dos filhos adolescentes.
Acontece o tempo todo: os jovens se afastam das trilhas convencionais que deveriam levar a um pouco de tranquilidade econômica e social. E os pais sofrem e resistem. Eles perdem o sono, às vezes se desesperam ou, pior, reagem com violência repressora, produzindo tragédias ou armando bombas de efeito retardado.
No alto da lista das preocupações que afligem os pais: um relacionamento amoroso muito precoce, a escolha de profissões nas quais o pão cotidiano parece incerto (artista plástico, ator de teatro, capoeirista, poeta etc.) e a decisão de interromper os estudos e de sair pelo mundo afora de mochila nas costas. Ou a vontade de encurtar o passo, reduzir a velocidade da corrida e aproveitar um pouco mais a vida -com ou sem o auxílio de um baseado.
Não é que os pais não entendam. Ao contrário, é frequente que a decisão do adolescente coincida com uma aspiração antiga do pai, da mãe ou de ambos -a retomada de um desejo ao qual eles renunciaram. Por exemplo, eles queriam tanto dar a volta ao mundo de barco a vela e acabaram no escritório de um banco. De repente, o filho ou a filha parecem querer compensar essa antiga desistência dos pais.
O "nada de grave" com o qual começa a frase citada manifesta que os pais não condenam a escolha do adolescente. Afinal, como está subentendido, eles não são manequins para ternos cinza e tailleurs azul-marinho. Eles também preferiram outra coisa do que ao sossego. Eles também quiseram ser atores de teatro, poetas, escultores ou mochileiros. Seus devaneios foram e talvez sigam sendo exuberantes. A ponto de, às vezes, os pais, apesar de agoniados pela decisão do adolescente, mal esconderem uma espécie de satisfação, como se o jovem levantasse uma bandeira que eles, feridos pelas obrigações da vida, deixaram cair. A coisa causa medo nos pais (sabe-se que o porta-bandeira leva chumbo facilmente), mas inspira orgulho. E mesmo uma certa inveja.
O inciso que segue, "você sabe como são as coisas", procura a cumplicidade de quem ouve: você -outro adulto que escuta minha queixa- sabe como a vida é complicada e dura. E, de fato, não há como discordar: a desistência não é só covardia, o sacrifício também exige coragem. Compreendemos sem dificuldade tanto as renúncias quanto as preocupações dos pais. Eles escolheram servir às obrigações da vida. Podem até admirar a revolta de seus rebentos, mas prefeririam que eles também desistissem de seus projetos ousados para garantir um futuro tranquilo. Faz sentido.
Aqui o adolescente propõe uma réplica que merece ser ouvida. Ele pergunta: por que vocês não esquecem um pouco o meu futuro? Por que não se preocupam com meu presente?
Quando olhamos para as crianças, certamente imaginamos seu futuro e desejamos que seja radioso, mas nos importa também que elas sejam felizes hoje, não só amanhã. Com o adolescente, a coisa muda: parecemos conceber sua existência como uma longa véspera, uma espécie de cursinho. Na hora em que o jovem se desvia da estrada que desejamos para ele, quase perdemos a capacidade de enxergá-lo. No seu lugar, vemos apenas o fantasma ameaçador de um futuro comprometido.
Ora, para o adolescente, a vida não é o futuro (calmo ou ousado que seja), a vida é aquela que ele está vivendo agora. Certo, todos cansamos de renunciar a desejos e prazeres em vista de um amanhã melhor. Mas acharíamos a experiência penosa, se não intolerável, se, como o adolescente, nos transformássemos numa espécie de cheque pré-datado, sendo vistos, amados ou receados apenas como a promessa do dia em que chegará a hora da compensação.
Na maioria dos casos, as famílias acabam inventando compromissos entre os medos prudentes dos pais futurólogos e as decisões do adolescente revoltado que conclama: minha vida é agora. Mas há pais irredutíveis, que nunca admitem as escolhas arriscadas dos filhos. Provavelmente a rebeldia adolescente reviva neles antigas feridas dolorosas demais. As razões, às vezes, são mesquinhas, como nesta memorável observação de um pai preocupado com o filho: "Como ele quer sair viajando, quando eu desisti de dar a volta ao mundo logo porque sua mãe ficou grávida dele e tive que botar as mãos na massa?".
Recomendo o exercício seguinte a todos os pais -e, em particular, aos pais intransigentes- na hora em que se preocupam com os efeitos futuros da rebeldia de um adolescente. Depois de bater na madeira e cruzando os dedos, perguntem-se: e se ele morresse amanhã? Se, por alguma razão, o futuro de meu rebento, que me atribula tanto, não viesse a ser? O que direi do tempo que ele viveu? Que não foi nada que valesse por conta própria, mas apenas uma espera interrompida antes que a vida começasse?
Há dois dias, essa mesma frase, quase literalmente, foi-me dita por pais diferentes. Eles tentavam comunicar assim sua angústia diante de uma guinada imprevista na vida dos filhos adolescentes.
Acontece o tempo todo: os jovens se afastam das trilhas convencionais que deveriam levar a um pouco de tranquilidade econômica e social. E os pais sofrem e resistem. Eles perdem o sono, às vezes se desesperam ou, pior, reagem com violência repressora, produzindo tragédias ou armando bombas de efeito retardado.
No alto da lista das preocupações que afligem os pais: um relacionamento amoroso muito precoce, a escolha de profissões nas quais o pão cotidiano parece incerto (artista plástico, ator de teatro, capoeirista, poeta etc.) e a decisão de interromper os estudos e de sair pelo mundo afora de mochila nas costas. Ou a vontade de encurtar o passo, reduzir a velocidade da corrida e aproveitar um pouco mais a vida -com ou sem o auxílio de um baseado.
Não é que os pais não entendam. Ao contrário, é frequente que a decisão do adolescente coincida com uma aspiração antiga do pai, da mãe ou de ambos -a retomada de um desejo ao qual eles renunciaram. Por exemplo, eles queriam tanto dar a volta ao mundo de barco a vela e acabaram no escritório de um banco. De repente, o filho ou a filha parecem querer compensar essa antiga desistência dos pais.
O "nada de grave" com o qual começa a frase citada manifesta que os pais não condenam a escolha do adolescente. Afinal, como está subentendido, eles não são manequins para ternos cinza e tailleurs azul-marinho. Eles também preferiram outra coisa do que ao sossego. Eles também quiseram ser atores de teatro, poetas, escultores ou mochileiros. Seus devaneios foram e talvez sigam sendo exuberantes. A ponto de, às vezes, os pais, apesar de agoniados pela decisão do adolescente, mal esconderem uma espécie de satisfação, como se o jovem levantasse uma bandeira que eles, feridos pelas obrigações da vida, deixaram cair. A coisa causa medo nos pais (sabe-se que o porta-bandeira leva chumbo facilmente), mas inspira orgulho. E mesmo uma certa inveja.
O inciso que segue, "você sabe como são as coisas", procura a cumplicidade de quem ouve: você -outro adulto que escuta minha queixa- sabe como a vida é complicada e dura. E, de fato, não há como discordar: a desistência não é só covardia, o sacrifício também exige coragem. Compreendemos sem dificuldade tanto as renúncias quanto as preocupações dos pais. Eles escolheram servir às obrigações da vida. Podem até admirar a revolta de seus rebentos, mas prefeririam que eles também desistissem de seus projetos ousados para garantir um futuro tranquilo. Faz sentido.
Aqui o adolescente propõe uma réplica que merece ser ouvida. Ele pergunta: por que vocês não esquecem um pouco o meu futuro? Por que não se preocupam com meu presente?
Quando olhamos para as crianças, certamente imaginamos seu futuro e desejamos que seja radioso, mas nos importa também que elas sejam felizes hoje, não só amanhã. Com o adolescente, a coisa muda: parecemos conceber sua existência como uma longa véspera, uma espécie de cursinho. Na hora em que o jovem se desvia da estrada que desejamos para ele, quase perdemos a capacidade de enxergá-lo. No seu lugar, vemos apenas o fantasma ameaçador de um futuro comprometido.
Ora, para o adolescente, a vida não é o futuro (calmo ou ousado que seja), a vida é aquela que ele está vivendo agora. Certo, todos cansamos de renunciar a desejos e prazeres em vista de um amanhã melhor. Mas acharíamos a experiência penosa, se não intolerável, se, como o adolescente, nos transformássemos numa espécie de cheque pré-datado, sendo vistos, amados ou receados apenas como a promessa do dia em que chegará a hora da compensação.
Na maioria dos casos, as famílias acabam inventando compromissos entre os medos prudentes dos pais futurólogos e as decisões do adolescente revoltado que conclama: minha vida é agora. Mas há pais irredutíveis, que nunca admitem as escolhas arriscadas dos filhos. Provavelmente a rebeldia adolescente reviva neles antigas feridas dolorosas demais. As razões, às vezes, são mesquinhas, como nesta memorável observação de um pai preocupado com o filho: "Como ele quer sair viajando, quando eu desisti de dar a volta ao mundo logo porque sua mãe ficou grávida dele e tive que botar as mãos na massa?".
Recomendo o exercício seguinte a todos os pais -e, em particular, aos pais intransigentes- na hora em que se preocupam com os efeitos futuros da rebeldia de um adolescente. Depois de bater na madeira e cruzando os dedos, perguntem-se: e se ele morresse amanhã? Se, por alguma razão, o futuro de meu rebento, que me atribula tanto, não viesse a ser? O que direi do tempo que ele viveu? Que não foi nada que valesse por conta própria, mas apenas uma espera interrompida antes que a vida começasse?
05 abril 2001
Dores do espírito e dos músculos
Respondendo à solicitação dos familiares, encontrei uma senhora que acabava de receber um diagnóstico de fibromialgia (literalmente: dor das fibras musculares).
A doença começa a chamar a atenção da grande imprensa. Ela foi reconhecida (ou inventada) oficialmente há uma década e afetaria hoje 2% dos americanos (sobretudo mulheres brancas). No site da fibromialgia na Internet (www.fmnetnews.com), são lembrados os critérios diagnósticos: dores corporais difusas durante três meses e vários pontos do corpo doloridos ao toque - no mínimo 11 numa lista de 18 localizações em várias regiões: pescoço, ombros, quadris, joelhos e cotovelos. Além disso, uma série de sintomas associados, um pouco incertos: fadiga, irritabilidade intestinal (qualquer coisa da diarréia à constipação), desordens do sono ou sono não-restaurador, dores após o exercício físico, dor de cabeça, cólicas menstruais e por aí vai.
A fibromialgia não tem causa conhecida e não produz alterações fisiológicas verificáveis. Os médicos estão divididos. Alguns aceitam a existência da doença e se dedicam a tratar os sintomas dela com analgésicos (inclusive opiáceos ou metadona). No extremo oposto, outros duvidam da existência de uma doença cuja única prova são as sensações relatadas pelos pacientes. A maioria dos médicos e psiquiatras se situa provavelmente no meio, perplexa.
A família da senhora recém-diagnosticada comunicara-me vários acontecimentos muito penosos que poderiam ser relacionados com o surgimento das dores. Segundo seus próximos, a senhora reagira a uma série de perdas e desastres com surpreendente indiferença e logo adoecera. Tentei levar a conversa pelo lado desses fatos recentes. A senhora não quis tocar no assunto. Para contornar essa recusa intransigente, expliquei-lhe que, mesmo que as dores estivessem relacionadas a acontecimentos infelizes, nem por isso elas seriam menos reais: aflições psíquicas podem produzir dores físicas perfeitamente autênticas. Acrescentei que, de qualquer forma, talvez não fosse inútil que ela conversasse um pouco sobre o período sofrido que acabava de atravessar. Não houve jeito, a senhora tinha sido surrada pelo destino, mas não estava disposta a considerar que seu corpo doído pudesse ser o resultado metafórico dessa surra. Ao contrário: a dor que ela sentia no corpo parecia ter a função específica de evitar questões, indagações e conversas.
Essa posição era bem compreensível. Imagine uma série de catástrofes em sua vida -como diz a expressão, uma dor de cabeça atrás da outra. Imagine agora que seja possível tomar a dor de cabeça ao pé da letra, ou seja, converter todos os seus malogros e problemas em dores físicas. Seu filho não passou de ano, você perdeu o emprego, seu parceiro sumiu e os sofrimentos psíquicos eventuais seriam resumidos por simples dores de cabeça.
Não seria maravilhoso? Curaríamos as dores da existência com um analgésico. A tranquilidade estaria nas estantes da farmácia da esquina e custaria o preço de uma Novalgina.
Logo nos dias que seguiram meus encontros com a senhora, os jornais da Costa Leste dos EUA revelaram a difusão crescente, entre os adolescentes da região, de um remédio usado como droga: o OxyContin. Trata-se de um opiáceo poderoso justamente recomendado no tratamento da fibromialgia. A venda do OxyContin é estritamente controlada, de forma que ele chega ao circuito paralelo das drogas sendo revendido por pacientes para quem ele foi prescrito. Curioso círculo, no qual artrites, ciáticas, fibromialgias etc. parecem solidárias de uma nova toxicomania.
Claro, no uso como droga, os comprimidos de OxyContin são pulverizados e inalados ou então diluídos e injetados -o que deve produzir um "barato" imediato. Mas não deixa de ser notável que uma das drogas do momento venha a ser não um alucinógeno ou qualquer coisa que altere a consciência, mas um analgésico. Como se a dor de viver pudesse aparecer hoje como uma dor física. E, portanto, sua cura consistisse em sedar a sensibilidade do corpo.
Em suma, talvez nossas dores espirituais estejam transformando-se em dores musculares. Não seria de estranhar. Afinal, definimos o bem-estar cada vez mais do lado do corpo e cada vez menos em termos psíquicos ou espirituais. Por que não aconteceria a mesma coisa com o mal-estar?
Uma piada que ouvi nestes dias resume a situação. Um fiel pergunta levando os olhos ao céu: "Senhor, quero entender, por favor: há ou não há vida após a morte? Há ou não há vida eterna?". Depois de ele muito insistir, eis que, enfim, as nuvens se abrem, aparece um raio de luz e uma voz profunda responde: "Meu filho, essa coisa de vida eterna é muito complicada. Mas posso garantir que, se fizer exercício regularmente, parar de fumar e se alimentar direito, você viverá três ou quatro anos a mais. Por que você não se concentra nisso, que é muito mais simples do que a questão da vida eterna?"."
A doença começa a chamar a atenção da grande imprensa. Ela foi reconhecida (ou inventada) oficialmente há uma década e afetaria hoje 2% dos americanos (sobretudo mulheres brancas). No site da fibromialgia na Internet (www.fmnetnews.com), são lembrados os critérios diagnósticos: dores corporais difusas durante três meses e vários pontos do corpo doloridos ao toque - no mínimo 11 numa lista de 18 localizações em várias regiões: pescoço, ombros, quadris, joelhos e cotovelos. Além disso, uma série de sintomas associados, um pouco incertos: fadiga, irritabilidade intestinal (qualquer coisa da diarréia à constipação), desordens do sono ou sono não-restaurador, dores após o exercício físico, dor de cabeça, cólicas menstruais e por aí vai.
A fibromialgia não tem causa conhecida e não produz alterações fisiológicas verificáveis. Os médicos estão divididos. Alguns aceitam a existência da doença e se dedicam a tratar os sintomas dela com analgésicos (inclusive opiáceos ou metadona). No extremo oposto, outros duvidam da existência de uma doença cuja única prova são as sensações relatadas pelos pacientes. A maioria dos médicos e psiquiatras se situa provavelmente no meio, perplexa.
A família da senhora recém-diagnosticada comunicara-me vários acontecimentos muito penosos que poderiam ser relacionados com o surgimento das dores. Segundo seus próximos, a senhora reagira a uma série de perdas e desastres com surpreendente indiferença e logo adoecera. Tentei levar a conversa pelo lado desses fatos recentes. A senhora não quis tocar no assunto. Para contornar essa recusa intransigente, expliquei-lhe que, mesmo que as dores estivessem relacionadas a acontecimentos infelizes, nem por isso elas seriam menos reais: aflições psíquicas podem produzir dores físicas perfeitamente autênticas. Acrescentei que, de qualquer forma, talvez não fosse inútil que ela conversasse um pouco sobre o período sofrido que acabava de atravessar. Não houve jeito, a senhora tinha sido surrada pelo destino, mas não estava disposta a considerar que seu corpo doído pudesse ser o resultado metafórico dessa surra. Ao contrário: a dor que ela sentia no corpo parecia ter a função específica de evitar questões, indagações e conversas.
Essa posição era bem compreensível. Imagine uma série de catástrofes em sua vida -como diz a expressão, uma dor de cabeça atrás da outra. Imagine agora que seja possível tomar a dor de cabeça ao pé da letra, ou seja, converter todos os seus malogros e problemas em dores físicas. Seu filho não passou de ano, você perdeu o emprego, seu parceiro sumiu e os sofrimentos psíquicos eventuais seriam resumidos por simples dores de cabeça.
Não seria maravilhoso? Curaríamos as dores da existência com um analgésico. A tranquilidade estaria nas estantes da farmácia da esquina e custaria o preço de uma Novalgina.
Logo nos dias que seguiram meus encontros com a senhora, os jornais da Costa Leste dos EUA revelaram a difusão crescente, entre os adolescentes da região, de um remédio usado como droga: o OxyContin. Trata-se de um opiáceo poderoso justamente recomendado no tratamento da fibromialgia. A venda do OxyContin é estritamente controlada, de forma que ele chega ao circuito paralelo das drogas sendo revendido por pacientes para quem ele foi prescrito. Curioso círculo, no qual artrites, ciáticas, fibromialgias etc. parecem solidárias de uma nova toxicomania.
Claro, no uso como droga, os comprimidos de OxyContin são pulverizados e inalados ou então diluídos e injetados -o que deve produzir um "barato" imediato. Mas não deixa de ser notável que uma das drogas do momento venha a ser não um alucinógeno ou qualquer coisa que altere a consciência, mas um analgésico. Como se a dor de viver pudesse aparecer hoje como uma dor física. E, portanto, sua cura consistisse em sedar a sensibilidade do corpo.
Em suma, talvez nossas dores espirituais estejam transformando-se em dores musculares. Não seria de estranhar. Afinal, definimos o bem-estar cada vez mais do lado do corpo e cada vez menos em termos psíquicos ou espirituais. Por que não aconteceria a mesma coisa com o mal-estar?
Uma piada que ouvi nestes dias resume a situação. Um fiel pergunta levando os olhos ao céu: "Senhor, quero entender, por favor: há ou não há vida após a morte? Há ou não há vida eterna?". Depois de ele muito insistir, eis que, enfim, as nuvens se abrem, aparece um raio de luz e uma voz profunda responde: "Meu filho, essa coisa de vida eterna é muito complicada. Mas posso garantir que, se fizer exercício regularmente, parar de fumar e se alimentar direito, você viverá três ou quatro anos a mais. Por que você não se concentra nisso, que é muito mais simples do que a questão da vida eterna?"."
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