Numa cidade perto de Lahore, no Paquistão, Ghulam Hussein e Rashida acabam de escolher um nome para seu filho: Osama, como Bin Laden. Explicam: "Não só o nome é curto e doce mas também simboliza a coragem e a ousadia." Muddassir Rizvi, jornalista do Pacific News Service, conta essa história num artigo (publicado por AlterNet.org) em que aprendemos que, no noroeste do Paquistão, outros casais se preparam para fazer a mesma escolha.
Aproveito a ocasião para recomendar a todos os pais a não nomear os filhos segundo seus entusiasmos políticos. Quando passa a embriaguez, a coisa fica pesada: na Itália do pós-guerra, havia pletora de Benitos que tentavam mudar de nome. Mesma coisa para os Adolfs na Alemanha.
A escolha desse tipo de nome é mais frequente entre os deserdados. Nesse caso, eles servem para que a criança tenha uma ascendência socialmente reconhecível. Chamado Osama, meu filho deixará de ser ninguém e filho de ninguéns para tornar-se afilhado de uma figura pretensamente heróica. O mundo não me respeita, mas chamarei um herói à cabeceira do berço de meu rebento.
Por que logo Osama Bin Laden? No mesmo artigo de Muddassir Rizvi, um ex-funcionário do governo paquistanês explica a popularidade de Bin Laden pelo sentimento antiamericano que é vivo nessa parte do mundo. Ele diz: "A América não vê as pessoas que são mortas a cada dia na Palestina, eles não vêem o sofrimento do povo do Iraque, não se importam com o assassinato das pessoas na Argélia pelas mãos das forças do governo. Isso porque eles não se importam com os muçulmanos".
Há, nessas palavras, um tom que aparece regularmente nas críticas aos EUA que circulam pelo mundo islâmico. A acusação não consegue esconder uma espécie de decepção amorosa: "Eles não se importam conosco". A raiva parece proceder de uma lamentação -como se os EUA e o Ocidente tivessem abandonado seus amigos e esquecido alguma promessa. De onde viria esse sentimento?
No processo de descolonização desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo islâmico parece nunca ter conseguido (ou quase) produzir uma democracia.
Isso não constituiria um problema se a exploração colonial não tivesse difundido (inevitavelmente e a contragosto) as duas modalidades principais da esperança ocidental: o sonho liberal e o sonho socialista, exigências de um pouco de igualdade e de justiça. Ora, na descolonização, ambos os sonhos foram frustrados. A esperança liberal não conseguiu impor democracias políticas. E a esperança de democracia social ruiu junto com o bloco socialista.
Quase todos os países islâmicos, uma vez descolonizados, voltaram a formas tradicionais de dominação. Para que isso fosse possível, seria melhor que as esperanças sociais e políticas veiculadas pelo Ocidente fossem esquecidas -seria melhor, digo, para as elites no poder. Aos que não têm nada e precisam viver de sonhos (os deserdados) é proposta, então, a antiga esperança religiosa.
As elites da descolonização nos países islâmicos perseguiram brutalmente qualquer agitação popular ameaçadora. Basta evocar, por exemplo, o massacre de Hama, na Síria, em 1982, em que o regime de Hafez al-Assad bombardeou e destruiu um bairro inteiro, matando, segundo a Anistia Internacional, de 15 mil a 30 mil pessoas. Ou, ainda, Setembro Negro, na Jordânia, em 1970.
Massas de deserdados foram condenadas à insignificância por elites vorazes. Privados da esperança liberal e da esperança socialista, muitos se tornaram fundamentalistas. Assim, na luta contra os ocidentais, encontraram algum remédio à sua humilhação. Pois é sempre mais tolerável ser humilhado por um inimigo externo do que realizar que somos insignificantes para nossa própria comunidade.
É óbvio que o Ocidente foi cúmplice da exclusão dessas massas, às vezes omisso e, outras vezes, tão opressor quanto as elites que foram por ele sustentadas e promovidas. Mas o antiocidentalismo foi e segue sendo sobretudo um instrumento da repressão, pois ele encoraja as massas a recusar alguns valores ditos ocidentais (liberdade, justiça etc.) que seriam perigosos para as elites dominantes.
Graças aos americanos e aos ocidentais, o alvo do ódio fica fora de casa. E as elites nacionais são protegidas. É o caso de se perguntar se os regimes que apóiam os EUA e hospedam, por exemplo, suas tropas não fazem isso de propósito para que essa presença indigne sua população. Pois o ódio do Ocidente leva o povo a desprezar um ideário liberal que poderia inspirar vontades de democracia política.
A guerra que está começando não é entre o Ocidente e o islã. Ela parece ser travada entre o Ocidente e os deserdados do islã, que foram acuados ao fundamentalismo como última esperança possível.
Mas a única saída verdadeira seria a transformação dos países islâmicos em democracias políticas e sociais. Alguns dizem que essa mudança seria incompatível com o islã. Até agora, está apenas provado que ela não agrada às elites de quase todos esses países.
27 setembro 2001
20 setembro 2001
De onde vêm os terroristas
Segunda-feira, em Brookline, Massachusetts. Estou sentado num café numa Harvard Street cheia de bandeiras. Na calçada oposta, vejo avançar, fendendo os passantes, uma mulher muçulmana, de véu até os pés -um xador, que deixa o rosto exposto.
Alguns dão mostra de indiferença. Véu? Qual véu? Olham para o chão, escrutam o horizonte ou envolvem-se numa conversa animada com quem estiver a seu lado. Isso com naturalidade excessiva, afetada. Outros tentam captar o olhar da mulher. Não conseguem, mas, mesmo assim, destinam-lhe amplos sorrisos. Todos, em suma, embora de maneira diferente, parecem decididos a mostrar que, nessa cidade progressista, não confundimos islã com terror.
Imagino que, em outros lugares, ela acabará encontrando um gesto hostil. Alguém receberá o passeio dessa mulher, seis dias depois do ataque terrorista contra os EUA, como uma provocação.
Ao atravessar a rua, ela aparece de frente para mim. Descubro que sua mão esquerda está fechada com força ao redor da mão de um filho de oito ou nove anos. O moleque acompanha-a numa mistura de obediência com revolta. Olha para o chão e estica o braço, mantendo-se meio metro atrás da mãe. Quando eles passam na minha frente, o menino arrasta os passos. A mãe puxa seu braço, apostrofando-o numa língua que não entendo. Parece-me reconhecer um nome: Ahmed. O menino, envergonhado, responde sem sotaque: "OK, just don't scream, please" (tá bem, só não grite, por favor). Fico com a impressão de que a mãe não entende inglês.
Dificilmente Ahmed esquecerá esse passeio, em que acompanhou o desfile da mãe como símbolo e depositária das tradições de seu grupo étnico e religioso. Não esquecerá o paradoxo pelo qual uma mulher coberta até os pés chamava e desafiava a atenção nas ruas de um mundo em que, de regra, é tirando o véu que a gente conquista o olhar dos outros.
Se ficar nos EUA alguns anos, Ahmed procurará homogeneizar-se, identificar-se com uma turma qualquer: mesmas músicas, mesmas roupas, mesmos papos, talvez até mesma cerveja proibida (para ele duplamente).
Como Ahmed lidará com as mulheres? Extasiado pelos sites pornográficos na internet e olhando de boca aberta alguma Britney Spears de barriga de fora, ele gostará muito das moças desarrochadas do país em que ele tenta integrar-se. Mas sem nunca esquecer que a sua mãe não é mulher de recorrer a essa sedução escancarada -certamente, não foi assim que ela conquistou o amor e o desejo do pai. Quem sabe Ahmed se lembre justamente do dia em que a mãe fez de seu véu uma bandeira silenciosa. E sinta a contradição passada entre a vergonha infantil por não se confundir na massa e o orgulho de ver sua mãe triunfante, intocável.
Ahmed será seduzido por mulheres ocidentais que lhe parecerão sempre mais fáceis e oferecidas do que elas são. Aliás, ele terá dificuldade para entender que elas possam recusar o desejo que, a seu ver, elas estimulam tanto. Gostará delas justamente por elas parecerem tão acessíveis e tão diferentes da mãe.
Ao mesmo tempo, ele terá desprezo por essas mulheres sedutoras. Será o jeito mais fácil para, embora seduzido, continuar venerando a mãe e a tradição da qual ela se fez porta-estandarte.
Escutando, por exemplo, jovens de origem muçulmana na França, é fácil constatar que, na comparação com a mãe, a mulher ocidental é sempre, em última instância, considerada como a vadia. Leva, no mínimo, três gerações de esposas "de fora" para que o espectro velado da mãe ou da avó deixe de ser o paradigma da honra.
Em suma, fraqueza diante da sedução e desprezo pela sedução: eis uma contradição que promete uma séria dificuldade de integração. Pois a modernidade ocidental é fundada na sedução. Todas as relações (não só amorosas) são regidas pela aspiração e pela necessidade de que os outros gostem de nós. Seduzir é a regra da vida social e o caminho do sucesso para pessoas e para produtos.
Precisará de pouco para que jovens com uma história parecida com a de Ahmed vejam o mundo ocidental inteiro como uma gigantesca tentação carnal, um universo pecaminoso por essência, o "grande Satã".
Os terroristas que atacaram o World Trade Center e o Pentágono viveram tempos longos no Ocidente. Frequentaram universidades e escolas de pilotagem. Não eram pastores descidos das montanhas. Os comentadores estranham: como é possível? Moraram entre nós tanto tempo e puderam fazer isso? Ou seja, será que nossa sedução não funcionou? Justamente: ela funcionou demais. A ponto de eles terem decidido destruir o objeto de seus desejos. A interpretação política de seus atos será sempre insuficiente: as torres gêmeas, para eles, eram símbolos não tanto de poder quanto de tentação.
Sua "guerra santa" foi isto: mataram os infiéis nos quais receavam se transformar. E mataram a si mesmos para nunca mais serem seduzidos.
Agora, se o deus que eles foram encontrar entende alguma coisa de inconsciente, eles, uma vez em sua presença, devem estar encarando uma séria decepção.
Alguns dão mostra de indiferença. Véu? Qual véu? Olham para o chão, escrutam o horizonte ou envolvem-se numa conversa animada com quem estiver a seu lado. Isso com naturalidade excessiva, afetada. Outros tentam captar o olhar da mulher. Não conseguem, mas, mesmo assim, destinam-lhe amplos sorrisos. Todos, em suma, embora de maneira diferente, parecem decididos a mostrar que, nessa cidade progressista, não confundimos islã com terror.
Imagino que, em outros lugares, ela acabará encontrando um gesto hostil. Alguém receberá o passeio dessa mulher, seis dias depois do ataque terrorista contra os EUA, como uma provocação.
Ao atravessar a rua, ela aparece de frente para mim. Descubro que sua mão esquerda está fechada com força ao redor da mão de um filho de oito ou nove anos. O moleque acompanha-a numa mistura de obediência com revolta. Olha para o chão e estica o braço, mantendo-se meio metro atrás da mãe. Quando eles passam na minha frente, o menino arrasta os passos. A mãe puxa seu braço, apostrofando-o numa língua que não entendo. Parece-me reconhecer um nome: Ahmed. O menino, envergonhado, responde sem sotaque: "OK, just don't scream, please" (tá bem, só não grite, por favor). Fico com a impressão de que a mãe não entende inglês.
Dificilmente Ahmed esquecerá esse passeio, em que acompanhou o desfile da mãe como símbolo e depositária das tradições de seu grupo étnico e religioso. Não esquecerá o paradoxo pelo qual uma mulher coberta até os pés chamava e desafiava a atenção nas ruas de um mundo em que, de regra, é tirando o véu que a gente conquista o olhar dos outros.
Se ficar nos EUA alguns anos, Ahmed procurará homogeneizar-se, identificar-se com uma turma qualquer: mesmas músicas, mesmas roupas, mesmos papos, talvez até mesma cerveja proibida (para ele duplamente).
Como Ahmed lidará com as mulheres? Extasiado pelos sites pornográficos na internet e olhando de boca aberta alguma Britney Spears de barriga de fora, ele gostará muito das moças desarrochadas do país em que ele tenta integrar-se. Mas sem nunca esquecer que a sua mãe não é mulher de recorrer a essa sedução escancarada -certamente, não foi assim que ela conquistou o amor e o desejo do pai. Quem sabe Ahmed se lembre justamente do dia em que a mãe fez de seu véu uma bandeira silenciosa. E sinta a contradição passada entre a vergonha infantil por não se confundir na massa e o orgulho de ver sua mãe triunfante, intocável.
Ahmed será seduzido por mulheres ocidentais que lhe parecerão sempre mais fáceis e oferecidas do que elas são. Aliás, ele terá dificuldade para entender que elas possam recusar o desejo que, a seu ver, elas estimulam tanto. Gostará delas justamente por elas parecerem tão acessíveis e tão diferentes da mãe.
Ao mesmo tempo, ele terá desprezo por essas mulheres sedutoras. Será o jeito mais fácil para, embora seduzido, continuar venerando a mãe e a tradição da qual ela se fez porta-estandarte.
Escutando, por exemplo, jovens de origem muçulmana na França, é fácil constatar que, na comparação com a mãe, a mulher ocidental é sempre, em última instância, considerada como a vadia. Leva, no mínimo, três gerações de esposas "de fora" para que o espectro velado da mãe ou da avó deixe de ser o paradigma da honra.
Em suma, fraqueza diante da sedução e desprezo pela sedução: eis uma contradição que promete uma séria dificuldade de integração. Pois a modernidade ocidental é fundada na sedução. Todas as relações (não só amorosas) são regidas pela aspiração e pela necessidade de que os outros gostem de nós. Seduzir é a regra da vida social e o caminho do sucesso para pessoas e para produtos.
Precisará de pouco para que jovens com uma história parecida com a de Ahmed vejam o mundo ocidental inteiro como uma gigantesca tentação carnal, um universo pecaminoso por essência, o "grande Satã".
Os terroristas que atacaram o World Trade Center e o Pentágono viveram tempos longos no Ocidente. Frequentaram universidades e escolas de pilotagem. Não eram pastores descidos das montanhas. Os comentadores estranham: como é possível? Moraram entre nós tanto tempo e puderam fazer isso? Ou seja, será que nossa sedução não funcionou? Justamente: ela funcionou demais. A ponto de eles terem decidido destruir o objeto de seus desejos. A interpretação política de seus atos será sempre insuficiente: as torres gêmeas, para eles, eram símbolos não tanto de poder quanto de tentação.
Sua "guerra santa" foi isto: mataram os infiéis nos quais receavam se transformar. E mataram a si mesmos para nunca mais serem seduzidos.
Agora, se o deus que eles foram encontrar entende alguma coisa de inconsciente, eles, uma vez em sua presença, devem estar encarando uma séria decepção.
16 setembro 2001
PATRIOTISMO
Há complacência com o terror no sentimento de que os cidadãos do país mereciam punição
A face oculta do antiamericanismo
Os terroristas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Qual era a expectativa dos terroristas que, na terça-feira passada, surgiram no céu americano e nas telas de TV do mundo inteiro? Qual poderia ser o alvo da operação? Certo, queriam destruir. Mas a morte e a demolição eram apenas um meio. O ganho que eles procuravam era simbólico: o ataque aconteceu no território americano (na capital e em Nova York, a cidade-vitrine do Ocidente) e contra edifícios que fazem parte do imaginário mundial: as torres gêmeas e o Pentágono. O show era para quem?
Para produzir o júbilo de seus adeptos, não precisava de tanto. Agora, se o público alvo eram os próprios americanos (na esperança de enfraquecê-los), o fracasso foi total. Duvido que os terroristas tivessem a ingenuidade de pensar que seu gesto encontraria os favores de alguma oposição interna americana ou que a tragédia semearia a discórdia. Mas, caso contassem com isso, a decepção deve ter sido completa. O ataque parece ter aplainado as arestas da sociedade americana.
Os dois grandes partidos -Democrata e Republicano - entraram em regime de cooperação bipartidária. O Partido Libertário, em seu comunicado de 12 de setembro, execra o ataque terrorista, encoraja solidariedade, doações de sangue e de dinheiro para as vítimas e para a reconstrução.
As pessoas próximas do movimento das milícias, com todo seu ódio pelo governo federal, são inevitavelmente nacionalistas e patriotas. Que simpatizantes desse movimento, como Timothy McVeigh e Terry Nichols, tenham sido capazes do atentado de Oklahoma City não implica nenhuma cumplicidade possível com o ataque de terça-feira.
As milícias têm devoção pela defesa do território - quer seja a nação ou o terreno ao redor de casa, ambos são santuários.
No site The Patriot, há uma sondagem sobre a questão: os EUA devem ou não responder militarmente à agressão? As respostas positivas superam de longe a média nacional.
As margens do leque político dos EUA são quase todas manifestações de um individualismo radical inspirado pelos valores fundamentais da Revolução e da Constituição americanas. É difícil imaginar posições mais antinômicas a um fundamentalismo tradicionalista.
Os terroristas islâmicos poderiam esperar ter mais chances com seus supostos correligionários. É concebível que a Nação do Islã, uma margem extrema, muçulmana e anti-semita do movimento negro, visse no fundamentalismo islâmico um aliado internacional. Aliás, a escolha do Islã como catalisador de uma organização negra foi, desde o começo, uma provocação ao "establishment" ocidental e americano.
Mas os dias de Malcolm X e da conversão de Cassius Clay em Mohammed Ali passaram há tempo: o movimento está em forte regressão. De qualquer forma, a aliança com o fundamentalismo islâmico no exterior, se é que existiu, não tem como se manter quando o país é agredido.
Louis Farrakhan, chefe atual da Nação do Islã, anunciou um pronunciamento sobre o ataque ao país para o dia 16 de setembro, na mesquita Maryam, em Chicago, convidando "todos os cidadãos de Chicago, seja qual for sua raça, sua fé ou sua cor". O caráter excepcionalmente aberto desse convite manifesta a adesão ao clima de união nacional. Já está dito que a declaração será sobre "a horrenda agressão contra os Estados Unidos da América".
Enfim, mais importante: a escolha do World Trade Center como alvo transformou esse centro financeiro num lugar de sofrimento. A figura impessoal (e eventualmente pouco simpática) do homem de negócios é substituída hoje pela humanidade dos corpos desmembrados.
De repente, está colmatada a fratura, que certamente divide a América contemporânea, entre Wall Street e o "heartland", o coração da terra -o país dos americanos médios, trabalhadores rurais e manuais. "O bombeiro salvando os homens de Wall Street" poderia ser uma capa de Norman Rockwell que, descrevendo o heroísmo do resgate em curso, simbolizaria o reencontro solidário de americanos que talvez estivessem afastados indevidamente. Isso, sob a bandeira comum: nos últimos três dias a venda de bandeiras nos EUA explodiu. Na frente das casas dos subúrbios, assim como nas janelas dos apartamentos urbanos, os americanos desdobram bandeiras. É uma maneira de dizer a confiança na persistência do país.
Há outros efeitos paradoxais da destruição -certamente não desejados pelos terroristas. Considere-se, por exemplo, a geração atual de adolescentes americanos, para quem o Vietnã é um filme de Kubrick, a Guerra do Golfo é um videogame e o mundo é tutelado pelo letreiro dos índices Dow Jones e Nasdaq, ao som repetitivo da música tecno. Esses jovens são acusados de serem gananciosos e sem ideais. Na terça-feira passada, eles foram acordados brutalmente: terão de inventar uma maneira nova de dar sentido a suas vidas, uma maneira em que escolher valores é relevante.
Algo parecido acontece com os adultos. Na internet, num bate-papo de psicólogos sobre o ataque, alguém sugere: "É ótimo que as vítimas e suas familiares disponham de aconselhamento. Mas não devemos facilitar o luto de todos. Não devemos querer rapidamente voltar ao bem-estar. Devemos nos lembrar". Todos concordam. Fazia tempo que, numa discussão americana, não encontrava-se um consenso contra a exigência imediata de bem-estar.
Nesse quadro, é estranho ouvir ou ler comentários sobre uma suposta nova fragilidade dos americanos que não se veriam mais como invencíveis. Claro, o território foi violado, mas, longe de sentirem-se diminuídos ou humilhados por isso, os americanos parecem sentir-se enfim justificados. O ataque autoriza uma adesão ao interesse e aos valores nacionais sem reservas e sem pudores.
Surge uma nova boa consciência americana, que aparece, por exemplo, na intolerância declarada para com o antiamericanismo. Os americanos não são mais masoquistas. O presidente Bush assinalou esse estado de espírito ao anunciar que os pêsames não serão suficientes: daqui por diante quem não está com a América, está contra ela. Lance Morrow, num artigo na Time.com, escreveu: "Quem não odeia os que fizeram essas coisas e as pessoas que os incitam e festejam é filosófico demais para ser uma companhia decente". A palavra "filosófico" é uma clara alusão à moda antiamericana que se tornou quase marca obrigatória de (pretensa) inteligência crítica.
Não é difícil entender a razão dessa mudança de tom. Voltemos a perguntar quem é o público alvo do show de horror montado pelos terroristas. Não são os adeptos e não são os americanos. Mas os assassinos suicidas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos mal escondidos, no estilo: "Que pena, mas estavam pedindo, não é?"
É razoável pensar que o público estrategicamente mais importante para os terroristas sejam todos aqueles que, embora lamentando a perda das vidas, se felicitariam de ver atingidos os símbolos da potência americana. Nestes dias, circulam na internet listas dos "malfeitos" dos EUA, como para lembrar boas razões para ser antiamericano. Também circulam listas de tributo aos EUA, lembrando os empréstimos e as doações de dinheiro, sangue e energia que os EUA fizeram pelo mundo.
Estava comparando as listas, quando me ocorreu que, em grande parte, o antiamericanismo ocidental talvez seja fruto de uma divisão que está dentro de nós.
Foi assim. Uma amiga americana me telefonou aos prantos no dia 13. Ela acabava de conversar com uma amiga comum brasileira, a qual, preocupada, ligara para ter notícias. A amiga americana percebeu que, atrás dos pêsames, havia uma espécie de complacência moralizante com o terror, tipo: chegou a justa punição do materialismo sem coração. A amiga americana, embora capaz de crítica de seu próprio país, desta vez não aguentou: "Materialismo de quem?", indignou-se. "Cada vez que você vem para Nova York, usa a cidade como um shopping center ou um parque de diversões. E na hora de chorar por Nova York, me faz a moral?" A amiga americana tinha razão. Ela descobria (e me fazia descobrir) assim um mecanismo crucial do antiamericanismo ocidental banal.
Os EUA nos aparecem como o sonho realizado da modernidade; graças a isso, podemos lhes atribuir todas as caraterísticas de nossa cultura. Naturalmente, atribuímos aos EUA as caraterísticas que menos gostamos de reconhecer em nós mesmos. Assim, por exemplo, não sei se os americanos são mais consumistas do que nós. Provavelmente não. Mas os EUA são designados por nós como pátria do consumismo. Eles são sem dúvida a pátria de nosso consumismo. Graças a esse artifício, podemos frequentá-los dando livre curso a nossos desejos de consumir sem considerar que esses desejos sejam nossos. Ao contrário, pretendemos que seja um mal da cultura americana.
Quando algo em nossa cultura nos envergonha, uma boa saída consiste em "descobrir" que esse algo é especificamente americano. O antiamericanismo, em suma, alivia nossas culpas. Melhor, suprime-as, pois elas, de repente, são sempre só americanas. Explica-se assim um mistério sociológico. Na última década, os EUA tornaram-se o objeto da maior vontade migratória e da maior adesão cultural da história da modernidade. A adoção de traços do estilo de vida americano constitui quase uma tentativa de migração por mimetismo. Como é possível que eles sejam, ao mesmo tempo, o objeto de sentimentos suficientemente hostis para que, nas circunstâncias de hoje, apareça, no canto dos lábios de alguns, o ricto de um "bem feito"?
Não seria mal se conseguíssemos interpretar e resolver o antiamericanismo. Isso permitiria que enxergássemos os EUA como um país real e não como um lugar de nossa psique. Também, num momento em que um conflito entre culturas ameaça o novo século, seria útil que pudéssemos encarar o que somos -parando de atribuir ao Tio Sam o que menos gostamos em nós mesmos.
A face oculta do antiamericanismo
Os terroristas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Qual era a expectativa dos terroristas que, na terça-feira passada, surgiram no céu americano e nas telas de TV do mundo inteiro? Qual poderia ser o alvo da operação? Certo, queriam destruir. Mas a morte e a demolição eram apenas um meio. O ganho que eles procuravam era simbólico: o ataque aconteceu no território americano (na capital e em Nova York, a cidade-vitrine do Ocidente) e contra edifícios que fazem parte do imaginário mundial: as torres gêmeas e o Pentágono. O show era para quem?
Para produzir o júbilo de seus adeptos, não precisava de tanto. Agora, se o público alvo eram os próprios americanos (na esperança de enfraquecê-los), o fracasso foi total. Duvido que os terroristas tivessem a ingenuidade de pensar que seu gesto encontraria os favores de alguma oposição interna americana ou que a tragédia semearia a discórdia. Mas, caso contassem com isso, a decepção deve ter sido completa. O ataque parece ter aplainado as arestas da sociedade americana.
Os dois grandes partidos -Democrata e Republicano - entraram em regime de cooperação bipartidária. O Partido Libertário, em seu comunicado de 12 de setembro, execra o ataque terrorista, encoraja solidariedade, doações de sangue e de dinheiro para as vítimas e para a reconstrução.
As pessoas próximas do movimento das milícias, com todo seu ódio pelo governo federal, são inevitavelmente nacionalistas e patriotas. Que simpatizantes desse movimento, como Timothy McVeigh e Terry Nichols, tenham sido capazes do atentado de Oklahoma City não implica nenhuma cumplicidade possível com o ataque de terça-feira.
As milícias têm devoção pela defesa do território - quer seja a nação ou o terreno ao redor de casa, ambos são santuários.
No site The Patriot, há uma sondagem sobre a questão: os EUA devem ou não responder militarmente à agressão? As respostas positivas superam de longe a média nacional.
As margens do leque político dos EUA são quase todas manifestações de um individualismo radical inspirado pelos valores fundamentais da Revolução e da Constituição americanas. É difícil imaginar posições mais antinômicas a um fundamentalismo tradicionalista.
Os terroristas islâmicos poderiam esperar ter mais chances com seus supostos correligionários. É concebível que a Nação do Islã, uma margem extrema, muçulmana e anti-semita do movimento negro, visse no fundamentalismo islâmico um aliado internacional. Aliás, a escolha do Islã como catalisador de uma organização negra foi, desde o começo, uma provocação ao "establishment" ocidental e americano.
Mas os dias de Malcolm X e da conversão de Cassius Clay em Mohammed Ali passaram há tempo: o movimento está em forte regressão. De qualquer forma, a aliança com o fundamentalismo islâmico no exterior, se é que existiu, não tem como se manter quando o país é agredido.
Louis Farrakhan, chefe atual da Nação do Islã, anunciou um pronunciamento sobre o ataque ao país para o dia 16 de setembro, na mesquita Maryam, em Chicago, convidando "todos os cidadãos de Chicago, seja qual for sua raça, sua fé ou sua cor". O caráter excepcionalmente aberto desse convite manifesta a adesão ao clima de união nacional. Já está dito que a declaração será sobre "a horrenda agressão contra os Estados Unidos da América".
Enfim, mais importante: a escolha do World Trade Center como alvo transformou esse centro financeiro num lugar de sofrimento. A figura impessoal (e eventualmente pouco simpática) do homem de negócios é substituída hoje pela humanidade dos corpos desmembrados.
De repente, está colmatada a fratura, que certamente divide a América contemporânea, entre Wall Street e o "heartland", o coração da terra -o país dos americanos médios, trabalhadores rurais e manuais. "O bombeiro salvando os homens de Wall Street" poderia ser uma capa de Norman Rockwell que, descrevendo o heroísmo do resgate em curso, simbolizaria o reencontro solidário de americanos que talvez estivessem afastados indevidamente. Isso, sob a bandeira comum: nos últimos três dias a venda de bandeiras nos EUA explodiu. Na frente das casas dos subúrbios, assim como nas janelas dos apartamentos urbanos, os americanos desdobram bandeiras. É uma maneira de dizer a confiança na persistência do país.
Há outros efeitos paradoxais da destruição -certamente não desejados pelos terroristas. Considere-se, por exemplo, a geração atual de adolescentes americanos, para quem o Vietnã é um filme de Kubrick, a Guerra do Golfo é um videogame e o mundo é tutelado pelo letreiro dos índices Dow Jones e Nasdaq, ao som repetitivo da música tecno. Esses jovens são acusados de serem gananciosos e sem ideais. Na terça-feira passada, eles foram acordados brutalmente: terão de inventar uma maneira nova de dar sentido a suas vidas, uma maneira em que escolher valores é relevante.
Algo parecido acontece com os adultos. Na internet, num bate-papo de psicólogos sobre o ataque, alguém sugere: "É ótimo que as vítimas e suas familiares disponham de aconselhamento. Mas não devemos facilitar o luto de todos. Não devemos querer rapidamente voltar ao bem-estar. Devemos nos lembrar". Todos concordam. Fazia tempo que, numa discussão americana, não encontrava-se um consenso contra a exigência imediata de bem-estar.
Nesse quadro, é estranho ouvir ou ler comentários sobre uma suposta nova fragilidade dos americanos que não se veriam mais como invencíveis. Claro, o território foi violado, mas, longe de sentirem-se diminuídos ou humilhados por isso, os americanos parecem sentir-se enfim justificados. O ataque autoriza uma adesão ao interesse e aos valores nacionais sem reservas e sem pudores.
Surge uma nova boa consciência americana, que aparece, por exemplo, na intolerância declarada para com o antiamericanismo. Os americanos não são mais masoquistas. O presidente Bush assinalou esse estado de espírito ao anunciar que os pêsames não serão suficientes: daqui por diante quem não está com a América, está contra ela. Lance Morrow, num artigo na Time.com, escreveu: "Quem não odeia os que fizeram essas coisas e as pessoas que os incitam e festejam é filosófico demais para ser uma companhia decente". A palavra "filosófico" é uma clara alusão à moda antiamericana que se tornou quase marca obrigatória de (pretensa) inteligência crítica.
Não é difícil entender a razão dessa mudança de tom. Voltemos a perguntar quem é o público alvo do show de horror montado pelos terroristas. Não são os adeptos e não são os americanos. Mas os assassinos suicidas podiam apostar que, em vários lugares do mundo -e não só entre seus companheiros de loucura-, seriam esboçados pequenos sorrisos mal escondidos, no estilo: "Que pena, mas estavam pedindo, não é?"
É razoável pensar que o público estrategicamente mais importante para os terroristas sejam todos aqueles que, embora lamentando a perda das vidas, se felicitariam de ver atingidos os símbolos da potência americana. Nestes dias, circulam na internet listas dos "malfeitos" dos EUA, como para lembrar boas razões para ser antiamericano. Também circulam listas de tributo aos EUA, lembrando os empréstimos e as doações de dinheiro, sangue e energia que os EUA fizeram pelo mundo.
Estava comparando as listas, quando me ocorreu que, em grande parte, o antiamericanismo ocidental talvez seja fruto de uma divisão que está dentro de nós.
Foi assim. Uma amiga americana me telefonou aos prantos no dia 13. Ela acabava de conversar com uma amiga comum brasileira, a qual, preocupada, ligara para ter notícias. A amiga americana percebeu que, atrás dos pêsames, havia uma espécie de complacência moralizante com o terror, tipo: chegou a justa punição do materialismo sem coração. A amiga americana, embora capaz de crítica de seu próprio país, desta vez não aguentou: "Materialismo de quem?", indignou-se. "Cada vez que você vem para Nova York, usa a cidade como um shopping center ou um parque de diversões. E na hora de chorar por Nova York, me faz a moral?" A amiga americana tinha razão. Ela descobria (e me fazia descobrir) assim um mecanismo crucial do antiamericanismo ocidental banal.
Os EUA nos aparecem como o sonho realizado da modernidade; graças a isso, podemos lhes atribuir todas as caraterísticas de nossa cultura. Naturalmente, atribuímos aos EUA as caraterísticas que menos gostamos de reconhecer em nós mesmos. Assim, por exemplo, não sei se os americanos são mais consumistas do que nós. Provavelmente não. Mas os EUA são designados por nós como pátria do consumismo. Eles são sem dúvida a pátria de nosso consumismo. Graças a esse artifício, podemos frequentá-los dando livre curso a nossos desejos de consumir sem considerar que esses desejos sejam nossos. Ao contrário, pretendemos que seja um mal da cultura americana.
Quando algo em nossa cultura nos envergonha, uma boa saída consiste em "descobrir" que esse algo é especificamente americano. O antiamericanismo, em suma, alivia nossas culpas. Melhor, suprime-as, pois elas, de repente, são sempre só americanas. Explica-se assim um mistério sociológico. Na última década, os EUA tornaram-se o objeto da maior vontade migratória e da maior adesão cultural da história da modernidade. A adoção de traços do estilo de vida americano constitui quase uma tentativa de migração por mimetismo. Como é possível que eles sejam, ao mesmo tempo, o objeto de sentimentos suficientemente hostis para que, nas circunstâncias de hoje, apareça, no canto dos lábios de alguns, o ricto de um "bem feito"?
Não seria mal se conseguíssemos interpretar e resolver o antiamericanismo. Isso permitiria que enxergássemos os EUA como um país real e não como um lugar de nossa psique. Também, num momento em que um conflito entre culturas ameaça o novo século, seria útil que pudéssemos encarar o que somos -parando de atribuir ao Tio Sam o que menos gostamos em nós mesmos.
13 setembro 2001
Dificuldade em enxergar os inimigos
Premonição: esta coluna foi terminada segunda-feira, 10, antes do ataque terrorista contra o povo dos Estados Unidos.
Na semana passada, aconteceu, em Durban (África do Sul), a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo.
Parece-nos natural que todos os homens desejem um mundo respeitoso das diferenças de cada um, mesmo que nem sempre eles consigam conter suas próprias raivas racistas. Pois bem, enganamo-nos. A conferência lembrou que somos (infelizmente, nesse caso) menos globalizados do que parecemos: o sonho de um mundo sem discriminação é apenas uma característica de nossa cultura e da modernidade ocidental.
O encontro de Durban foi travado por dois assuntos.
Um deles foi a questão da escravatura e de como lidar com sua herança (indenizações, políticas compensatórias dos danos passados etc). Voltarei ao tema numa próxima coluna.
Mas o assunto que desvirtuou a conferência foi o conflito entre Israel e o povo palestino. Inesperadamente (porque a reunião não tinha a ambição nem os meios de propor mediações para o conflito), alguns representantes de países islâmicos acharam bom pedir que a política de Israel e o sionismo em geral fossem qualificados pela conferência como racistas.
Para entender o efeito produzido por esse pedido, imaginemos que haja uma reunião de todos os condôminos e inquilinos de um prédio para chegar a declarações comuns, graças às quais a convivência de todos se torne mais digna. Agora imaginemos que se constitua um Grupo do Terceiro Andar (o que já é um problema, por introduzir na reunião um interesse particular) e que esse grupo peça que certos inquilinos sejam definidos como imorais ou barulhentos e, portanto, que sejam expulsos. É claro que os moradores do terceiro andar não entenderam o espírito da reunião. Ou então (mais provável), eles não compartilham o projeto de constituir um condomínio de valores comuns. Só aproveitam a reunião para liquidar o pessoal que os incomoda.
O Grupo do Terceiro Andar é como a Organização dos Países Islâmicos: sua denominação já contradiz o espírito de uma conferência contra o racismo. Em geral, os grupos reunidos por um sistema fechado de crenças promovem a discriminação dos infiéis. É aceitável tratando-se de igrejas. Mas, tratando-se de nações ou supranações, esse funcionamento entra em conflito com nossos valores básicos, a começar pelas liberdades individuais. Aliás, o Brasil não pertence a uma Organização dos Países Cristãos. Também a Bahia ou o Caribe, não participam de uma Organização dos Países Umbandistas.
Em suma, há uma oposição de fundo entre a modernidade ocidental (que é nossa sensibilidade) e as nações que são comunidades tradicionais organizadas ao redor de uma confissão. Trata-se de uma fratura cultural, e seria ingênuo tratá-la como uma simples divergência política.
Uma comunidade tradicional não tem por que sonhar com o convívio harmonioso de indivíduos, de nações e de culturas diferentes. Para ela, os limites do humano coincidem com seus próprios limites. Escravizar, segregar, discriminar o infiel, o diferente ou o cara da tribo é uma atividade normal, se não meritória.
Nós, ao contrário, estabelecemos, entre os princípios formais de nossa cultura, a igualdade de todos, por diferentes que sejam, perante leis comuns. Logo, somos frustrados por nossa incapacidade de realizar os princípios nos quais acreditamos. Ou seja, acontece que discriminamos uma outra etnia, fé ou opinião, mas essa atitude (norma de uma cultura tradicional) é, para nós, uma preocupação ou mesmo um tormento, porque constitui uma distância inaceitável entre nossos princípios e nossos restos tribais -regurgitações de desprezo pelos outros e de sentimentos de nossa superioridade.
A conferência de Durban contra o racismo foi convocada para aprimorar os princípios formais de nossas democracias e para realizá-los concretamente.
O problema é que estamos tão preocupados em derrotar o racismo e a intolerância em nós mesmos que mal conseguimos enxergar e admitir a existência de culturas propriamente opostas à nossa. Reconhecê-las como tais nos parece ser uma forma do racismo que queremos evitar.
Exemplo: muitos comentadores levantaram a hipótese de que os EUA e outros países ocidentais teriam aproveitado a polêmica ao redor do sionismo para invalidar a conferência e assim evitar dolorosas conclusões sobre as eventuais indenizações aos países africanos que foram saqueados pelo comércio escravagista. A hipótese inversa é bem mais verossímil: os países islâmicos produziram essa polêmica para esvaziar de sentido, por exemplo, a proclamação da igualdade de direitos entre homens e mulheres ou a denúncia da discriminação das orientações sexuais, digamos, minoritárias. Agitando seu dedo em riste, os emissários do Irã evitaram discutir o destino reservado, em seu país, aos homossexuais. Os emissários do Taleban evitaram falar do destino das mulheres afegãs.
Na semana passada, aconteceu, em Durban (África do Sul), a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo.
Parece-nos natural que todos os homens desejem um mundo respeitoso das diferenças de cada um, mesmo que nem sempre eles consigam conter suas próprias raivas racistas. Pois bem, enganamo-nos. A conferência lembrou que somos (infelizmente, nesse caso) menos globalizados do que parecemos: o sonho de um mundo sem discriminação é apenas uma característica de nossa cultura e da modernidade ocidental.
O encontro de Durban foi travado por dois assuntos.
Um deles foi a questão da escravatura e de como lidar com sua herança (indenizações, políticas compensatórias dos danos passados etc). Voltarei ao tema numa próxima coluna.
Mas o assunto que desvirtuou a conferência foi o conflito entre Israel e o povo palestino. Inesperadamente (porque a reunião não tinha a ambição nem os meios de propor mediações para o conflito), alguns representantes de países islâmicos acharam bom pedir que a política de Israel e o sionismo em geral fossem qualificados pela conferência como racistas.
Para entender o efeito produzido por esse pedido, imaginemos que haja uma reunião de todos os condôminos e inquilinos de um prédio para chegar a declarações comuns, graças às quais a convivência de todos se torne mais digna. Agora imaginemos que se constitua um Grupo do Terceiro Andar (o que já é um problema, por introduzir na reunião um interesse particular) e que esse grupo peça que certos inquilinos sejam definidos como imorais ou barulhentos e, portanto, que sejam expulsos. É claro que os moradores do terceiro andar não entenderam o espírito da reunião. Ou então (mais provável), eles não compartilham o projeto de constituir um condomínio de valores comuns. Só aproveitam a reunião para liquidar o pessoal que os incomoda.
O Grupo do Terceiro Andar é como a Organização dos Países Islâmicos: sua denominação já contradiz o espírito de uma conferência contra o racismo. Em geral, os grupos reunidos por um sistema fechado de crenças promovem a discriminação dos infiéis. É aceitável tratando-se de igrejas. Mas, tratando-se de nações ou supranações, esse funcionamento entra em conflito com nossos valores básicos, a começar pelas liberdades individuais. Aliás, o Brasil não pertence a uma Organização dos Países Cristãos. Também a Bahia ou o Caribe, não participam de uma Organização dos Países Umbandistas.
Em suma, há uma oposição de fundo entre a modernidade ocidental (que é nossa sensibilidade) e as nações que são comunidades tradicionais organizadas ao redor de uma confissão. Trata-se de uma fratura cultural, e seria ingênuo tratá-la como uma simples divergência política.
Uma comunidade tradicional não tem por que sonhar com o convívio harmonioso de indivíduos, de nações e de culturas diferentes. Para ela, os limites do humano coincidem com seus próprios limites. Escravizar, segregar, discriminar o infiel, o diferente ou o cara da tribo é uma atividade normal, se não meritória.
Nós, ao contrário, estabelecemos, entre os princípios formais de nossa cultura, a igualdade de todos, por diferentes que sejam, perante leis comuns. Logo, somos frustrados por nossa incapacidade de realizar os princípios nos quais acreditamos. Ou seja, acontece que discriminamos uma outra etnia, fé ou opinião, mas essa atitude (norma de uma cultura tradicional) é, para nós, uma preocupação ou mesmo um tormento, porque constitui uma distância inaceitável entre nossos princípios e nossos restos tribais -regurgitações de desprezo pelos outros e de sentimentos de nossa superioridade.
A conferência de Durban contra o racismo foi convocada para aprimorar os princípios formais de nossas democracias e para realizá-los concretamente.
O problema é que estamos tão preocupados em derrotar o racismo e a intolerância em nós mesmos que mal conseguimos enxergar e admitir a existência de culturas propriamente opostas à nossa. Reconhecê-las como tais nos parece ser uma forma do racismo que queremos evitar.
Exemplo: muitos comentadores levantaram a hipótese de que os EUA e outros países ocidentais teriam aproveitado a polêmica ao redor do sionismo para invalidar a conferência e assim evitar dolorosas conclusões sobre as eventuais indenizações aos países africanos que foram saqueados pelo comércio escravagista. A hipótese inversa é bem mais verossímil: os países islâmicos produziram essa polêmica para esvaziar de sentido, por exemplo, a proclamação da igualdade de direitos entre homens e mulheres ou a denúncia da discriminação das orientações sexuais, digamos, minoritárias. Agitando seu dedo em riste, os emissários do Irã evitaram discutir o destino reservado, em seu país, aos homossexuais. Os emissários do Taleban evitaram falar do destino das mulheres afegãs.
12 setembro 2001
Atentados podem recriar a unidade perdida dos EUA
Reuters | Uma bandeira dos EUA permanece intacta em meio aos escombros do World Trade Center, depois dos atentados terroristas ocorridos ontem pela manhã, em Nova York |
País precisava encontrar um novo adversário para se redefinir
Ataques obrigam o planeta a se dividir novamente em dois blocos
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
Houve só um momento, na história americana, comparável ao ataque terrorista que começou (e espera-se que tenha acabado) na manhã de ontem. Foi Pearl Harbor. Sabemos no que deu.
Forçou o ingresso (que já era inevitável) dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Solidificou a coesão nacional. Identificou os norte-americanos com seu governo -mesmo aqueles que não tinham simpatia nenhuma pela Presidência de Roosevelt. Também dispôs todos aos sacrifícios necessários para encarar a guerra e ganhá-la. Submeteu à prova de fogo uma geração que ainda hoje é miticamente considerada, nos Estados Unidos, como a maior de todas. Enfim, produziu décadas de uma primazia norte-americana, econômica e cultural, que ainda dura.
Unidade nacional
O ataque de ontem tem toda a chance de desencadear os mesmos efeitos, a começar pela unidade nacional em torno de um governo que antes disso era desacreditado. Eu mesmo não saberia onde encontrar, hoje, a vontade de criticar o presidente Bush. Por um momento, até gostei de suas palavras.
Os norte-americanos passarão pela redescoberta de uma solidariedade talvez esquecida. Consegui falar com uma amiga, normalmente temerosa, de nariz empinado, no Upper East Side de Nova York: ela estava correndo para doar sangue.
Reencontrarão os valores americanos, atrás dos sonhos de sucesso material e de consumo que prevaleceram nas últimas décadas. Outro amigo, em Nova York, notou que Wall Street fechou e que, com a ruína das torres do World Trade Center, muitas operações financeiras serão atrapalhadas durante dias.
Argumenta que, se essa era uma das intenções dos terroristas, tanto pior para eles: o que importa é que durante dias os americanos nem olharão para os índices Dow Jones e Nasdaq. Talvez redescubram nessa ocasião, acrescenta, que o orgulho nacional tem outras razões além da prosperidade.
A América do começo do século 21 era, até hoje, um país ideologicamente hesitante. Para definir-se, faltava-lhe um adversário, pois o inimigo comunista havia sumido. Só sobrava, como glória nacional, justamente a riqueza -um ideal facilmente desprezível. O multiculturalismo, também, tornava problemático invocar os valores americanos.
Ora, graças aos atentados de ontem, essa fase pode ter acabado -sobretudo porque o novo inimigo não é um governo imperialista ou expansionista como a Alemanha nazista ou o Japão imperial. É um inimigo ideológico: uma concepção do mundo e da vida oposta aos fundamentos da cultura ocidental moderna.
Defensora da civilização
A América, a partir de hoje, poderá voltar provavelmente a desempenhar aquele que sempre foi seu melhor papel: o de defensora da civilização contra a barbárie.
Os Estados Unidos perseguirão todo país que, de uma maneira ou de outra, aparecer como cúmplice dos terroristas que conceberam e realizaram o ataque. É difícil imaginar qualquer outra potência em posição ou com alguma razão de contestar esse direito. Nem a Rússia nem a China. Mesmo uma boa parte dos países árabes concordará, de coração ou por medo.
É possível, com isso, que o ataque de ontem tenha definitivamente alterado a organização política do planeta, sobrepondo a todos os conflitos (econômicos, políticos ou ideológicos) uma divisão cultural. Haverá, de um lado, os que acreditam no ideário da razão ocidental e, de outro, um pequeno (ou grande) catálogo de fundamentalismos. E haverá a necessidade de se declarar.
06 setembro 2001
O show do meio milhão
Os vizinhos de Fernando e Esdras Dutra Pinto -sequestradores da filha de Silvio Santos- manifestaram opiniões que achei curiosas. Segundo a reportagem de Armando Antenore, na Folha de 31 de agosto, dona Edna, 27, perguntou: "O que significam R$ 500 mil para Silvio Santos?". E Maria Isabel Amorim, 20, comentou que "R$ 500 mil não são nada para o Silvio". Ela acrescentou que os sequestradores eram "mais ou menos heróis". Só faltava confundi-los com Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres.
O pai, Antônio Sebastião, segundo outra reportagem, afirmou que seus filhos, desempregados e vivendo de bicos, agiram por frustração. É uma versão do "ninguém é de ferro": você olha para a riqueza dos outros que esbanjam, você não passa no vestibular, sente a amargura da injustiça e vai saber onde isso pára.
Tudo bem, acreditemos nessa explicação paterna. Mas cuidado. A história dos irmãos Pinto não é um drama da miséria. Eles não estavam desesperados para colocar comida na mesa da família ou para oferecer um teto aos velhos pais carentes. Nada disso. Estavam frustrados na corrida social ordinária: queriam mais bugiganga de shopping center.
Qual é a transição entre essa frustração banal e a decisão de sair sequestrando e assassinando?
Não sabemos o que passou pela cabeça de Fernando, de Esdras e dos outros. Mas conhecemos o paradoxo brasileiro contemporâneo: a convivência, em cada sujeito, dos imperativos da modernidade com visões arcaicas das relações humanas e da atividade econômica.
Comecemos com um arcaísmo: paira em nosso ar uma crença, herdada do colonizador, pela qual a riqueza não deve ser fruto do esforço, mas de uma colheita (sem plantio) ou de um saque. Ela deve ser encontrada e levada embora. Nessa ótica, assim como os diamantes vêm da terra e os maracujás, das árvores, o dinheiro não vem do trabalho, vem dos outros. É só tirá-lo deles, como se corta uma árvore de pau-brasil.
Surge assim o estereótipo colonial do caboclo perigoso e sonolento, cuja violência predatória é felizmente atenuada pela indolência, pois ele espera que a ocasião se apresente e não gosta de batalhar para que as coisas aconteçam. É o jacaré parado na beira do rio.
A esse quadro acrescente-se o motor da sociedade moderna: a inveja. O truque da modernidade é este: organizamos nossas diferenças e inventamos uma ordem social nos medindo recíproca e invejosamente. "Esse cara é mais do que eu: olhe o relógio dele. Aquele cara é menos do que eu, olhe o chinelo."
Motivados pela inveja, acumulamos, consumimos e produzimos cada vez mais riquezas.
O que acontece quando esse sentimento moderno se choca com a convicção de que a riqueza não é para ser produzida, mas para ser encontrada? Nesse caso, a inveja, inventada para estimular a alacridade produtiva de todos, encoraja os anseios dos predadores. Você está com inveja e não quer competir pelo trabalho? Não fique esperando. Procure ativamente outros de quem arrancar um pedaço. O jacaré fica furioso, deixa a toca e vai para a cidade.
Esse pano de fundo talvez explique os discursos compreensivos dos vizinhos e da família, para quem o crime de Fernando e de Esdras parece ser tolerável: ordinária administração de nossas relações sociais.
Mas algo mais fez com que o drama vivido por Silvio Santos aparecesse como uma encenação do paradoxo entre modernidade e arcaísmos obstinados do qual sofremos.
O próprio Silvio Santos deve sua popularidade à produção de programas que celebram a herança colonial pela qual a riqueza é um achado. O dinheiro chove, cai no chão. É uma luta para agarrar as notas. Mesmo assim, melhor isso do que ganhá-las propriamente, não é? Quem sabe, um dia, o Silvio me chame e seja minha vez de encontrar uma grana no meu caminho.
A gente topa tudo por dinheiro. Enfim, quase tudo: topa, por exemplo, sequestrar a filha de Silvio Santos. Trabalhar já seria outra história. O sequestro, em suma, foi um momento, uma extensão do "Show do Milhão".
O clímax produziu-se quando Fernando, sentindo que arriscava a vida, procurou a proteção de sua própria vítima. Até então, sabíamos que o sequestrador era invejoso e, nisso, moderno. Mas, à diferença de um sujeito moderno, em vez de emular produzindo, ele partira para o saque. Por não participar do "Show do Milhão", contentara-se com R$ 500 mil. Agora aparecia uma novidade: para Fernando, Silvio Santos não era apenas um sujeito qualquer, que seria bom roubar. A igualdade do semelhante mais privilegiado é uma idéia moderna demais. Silvio Santos, o invejável dispensador de riquezas, guardava, para Fernando, toda a autoridade do senhor de outros tempos -dono de engenho ou coronel.
No fim da história, foi difícil dizer se o sequestrador queria mais roubar ou receber de sua vítima a proteção que é normalmente reservada a um afilhado.
Fernando nos apresentou, assim, um espelhinho deprimente, no qual aparecia a figura perdida e contraditória de um jovem invejoso, predador e arcaicamente servil.
O pai, Antônio Sebastião, segundo outra reportagem, afirmou que seus filhos, desempregados e vivendo de bicos, agiram por frustração. É uma versão do "ninguém é de ferro": você olha para a riqueza dos outros que esbanjam, você não passa no vestibular, sente a amargura da injustiça e vai saber onde isso pára.
Tudo bem, acreditemos nessa explicação paterna. Mas cuidado. A história dos irmãos Pinto não é um drama da miséria. Eles não estavam desesperados para colocar comida na mesa da família ou para oferecer um teto aos velhos pais carentes. Nada disso. Estavam frustrados na corrida social ordinária: queriam mais bugiganga de shopping center.
Qual é a transição entre essa frustração banal e a decisão de sair sequestrando e assassinando?
Não sabemos o que passou pela cabeça de Fernando, de Esdras e dos outros. Mas conhecemos o paradoxo brasileiro contemporâneo: a convivência, em cada sujeito, dos imperativos da modernidade com visões arcaicas das relações humanas e da atividade econômica.
Comecemos com um arcaísmo: paira em nosso ar uma crença, herdada do colonizador, pela qual a riqueza não deve ser fruto do esforço, mas de uma colheita (sem plantio) ou de um saque. Ela deve ser encontrada e levada embora. Nessa ótica, assim como os diamantes vêm da terra e os maracujás, das árvores, o dinheiro não vem do trabalho, vem dos outros. É só tirá-lo deles, como se corta uma árvore de pau-brasil.
Surge assim o estereótipo colonial do caboclo perigoso e sonolento, cuja violência predatória é felizmente atenuada pela indolência, pois ele espera que a ocasião se apresente e não gosta de batalhar para que as coisas aconteçam. É o jacaré parado na beira do rio.
A esse quadro acrescente-se o motor da sociedade moderna: a inveja. O truque da modernidade é este: organizamos nossas diferenças e inventamos uma ordem social nos medindo recíproca e invejosamente. "Esse cara é mais do que eu: olhe o relógio dele. Aquele cara é menos do que eu, olhe o chinelo."
Motivados pela inveja, acumulamos, consumimos e produzimos cada vez mais riquezas.
O que acontece quando esse sentimento moderno se choca com a convicção de que a riqueza não é para ser produzida, mas para ser encontrada? Nesse caso, a inveja, inventada para estimular a alacridade produtiva de todos, encoraja os anseios dos predadores. Você está com inveja e não quer competir pelo trabalho? Não fique esperando. Procure ativamente outros de quem arrancar um pedaço. O jacaré fica furioso, deixa a toca e vai para a cidade.
Esse pano de fundo talvez explique os discursos compreensivos dos vizinhos e da família, para quem o crime de Fernando e de Esdras parece ser tolerável: ordinária administração de nossas relações sociais.
Mas algo mais fez com que o drama vivido por Silvio Santos aparecesse como uma encenação do paradoxo entre modernidade e arcaísmos obstinados do qual sofremos.
O próprio Silvio Santos deve sua popularidade à produção de programas que celebram a herança colonial pela qual a riqueza é um achado. O dinheiro chove, cai no chão. É uma luta para agarrar as notas. Mesmo assim, melhor isso do que ganhá-las propriamente, não é? Quem sabe, um dia, o Silvio me chame e seja minha vez de encontrar uma grana no meu caminho.
A gente topa tudo por dinheiro. Enfim, quase tudo: topa, por exemplo, sequestrar a filha de Silvio Santos. Trabalhar já seria outra história. O sequestro, em suma, foi um momento, uma extensão do "Show do Milhão".
O clímax produziu-se quando Fernando, sentindo que arriscava a vida, procurou a proteção de sua própria vítima. Até então, sabíamos que o sequestrador era invejoso e, nisso, moderno. Mas, à diferença de um sujeito moderno, em vez de emular produzindo, ele partira para o saque. Por não participar do "Show do Milhão", contentara-se com R$ 500 mil. Agora aparecia uma novidade: para Fernando, Silvio Santos não era apenas um sujeito qualquer, que seria bom roubar. A igualdade do semelhante mais privilegiado é uma idéia moderna demais. Silvio Santos, o invejável dispensador de riquezas, guardava, para Fernando, toda a autoridade do senhor de outros tempos -dono de engenho ou coronel.
No fim da história, foi difícil dizer se o sequestrador queria mais roubar ou receber de sua vítima a proteção que é normalmente reservada a um afilhado.
Fernando nos apresentou, assim, um espelhinho deprimente, no qual aparecia a figura perdida e contraditória de um jovem invejoso, predador e arcaicamente servil.
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