29 agosto 2002
Por que não gosto de eleições
Recentemente (15/8), a revista "The Economist" promoveu e publicou uma pesquisa para saber se os latino-americanos, nestes tempos difíceis, continuam acreditando na democracia. Pergunta: "A democracia é preferível a qualquer outra forma de governo?".
O Brasil foi um dos países em que os entrevistados mais mudaram de opinião nos últimos anos. Em 1996, 50% dos brasileiros pensavam que a democracia fosse a melhor forma de governo. Em 2002, só 37% continuam pensando da mesma maneira. Os que abandonaram suas convicções democráticas (13%) querem o quê? Será que são nostálgicos das rédeas curtas da ditadura?
A pesquisa colocava uma segunda pergunta: "Em determinadas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um governo democrático?". Seria lógico pensar assim: os sujeitos que não acreditam mais nas virtudes exclusivas da democracia devem ser tentados por uma intervenção autoritária. É o que acontece, por exemplo, com os paraguaios, que também mudaram de opinião em matéria de democracia. Em 96, 59% acreditavam na democracia; em 2002, apenas 45% continuam pensando assim. No mesmo período, a porcentagem de paraguaios dispostos a aceitar um governo autoritário cresceu substancialmente. Ou seja, quem não acredita mais na democracia sonha com a volta de um regime militar. Faz sentido.
Pois é, os brasileiros deram uma resposta para atrapalhar o sono dos pesquisadores. Entre 1996 e hoje, como já disse, 13% deixaram de acreditar na democracia como melhor sistema de governo. Ora, o número dos que aceitariam uma ditadura no lugar da democracia não aumentou de maneira parecida, mas -surpresa- diminuiu 9%. Ou seja, no Brasil, há menos gente para acreditar na democracia, mas também menos gente para esperar que os militares resolvam a situação.
Aplausos para os brasileiros, que não se deixaram capturar por uma alternativa forçada. Entendo assim a posição dos entrevistados: a democracia não respondeu a nossas esperanças básicas, mas nem por isso entregaríamos o país ao despotismo. Sobretudo, não aceitamos uma alternativa excludente, do tipo: "De um lado, há stalinistas, fascistas ou militares e, do outro, a democracia. Olhe, escolhe e pule". Os brasileiros pareceram responder: não pulo coisa nenhuma, a escolha não é essa.
Minha leitura (otimista) da pesquisa do "Economist" é a seguinte: estamos cansados de ver o mundo em preto-e-branco, com contraste máximo.
É o mesmo cansaço que sinto durante as eleições. Com raríssimas exceções, os processos eleitorais que presenciei (na Itália, na Suíça, na França, no Brasil e nos EUA) sempre foram momentos tristes da vida democrática.
Gosto da democracia em seu exercício cotidiano e concreto. Prezo a discussão numa associação de moradores de vila para decidir se é melhor pedir mais postes de luz ou o asfalto na rua central. Aprecio uma reunião de condomínio em que uma senhora idosa e sozinha defende seu cachorrinho contra a mãe de uma criança asmática e alérgica aos pêlos de animais. Em ambos os casos, sinto carinho pelo esforço de inventar formas possíveis de convivência.
Ultrapassamos o tamanho das comunas medievais e hoje um governo democrático só pode ser representativo: as eleições são inevitáveis. Mas não me digam que elas são a melhor expressão da democracia.
A retórica eleitoral parece implicar inelutavelmente duas formas de desrespeito, paradoxais por serem ambas inimigas da invenção democrática.
Há o desrespeito aos eleitores, que é implícito na simplificação sistemática da realidade. Tanto as promessas quanto a crítica às promessas dos adversários se alimentam numa insultante infantilização dos votantes: "Nós temos razão, o outro está errado; solucionaremos tudo, não há dúvidas nem complexidade; entusiasmem-se".
E há o desrespeito recíproco entre os candidatos. As reuniões de moradores de vila ou de condomínio não poderiam funcionar se os participantes se tratassem como candidatos a um mesmo cargo eleitoral. Paradoxo: o processo eleitoral parece ser o contra-exemplo da humildade necessária para o exercício da democracia que importa e que deveria regrar as relações básicas entre cidadãos: a democracia concreta.
Em 1974, na França, Mitterrand, socialista, concorria à Presidência com Giscard d'Estaing, centrista. Num debate decisivo, Mitterrand falava como se ele fosse o único a enternecer-se ante o destino de pobres e deserdados. Giscard retrucou: "Senhor Mitterrand, você não detém o monopólio do coração". Cansado de simplificações, o eleitorado gostou, e Mitterrand perdeu.
Em 1981, a confrontação repetiu-se. Dessa vez, era Giscard que não parava de apontar em Mitterrand o homem da aventura, do risco: caso ele ganhasse, a Revolução de Outubro estaria às portas de Paris. Cansado de simplificações, o eleitorado não gostou, e Giscard perdeu.
Quem sabe os eleitores do mundo inteiro estejam, há tempos, cansados da retórica eleitoral e a fim de ouvir a verdade sobre como é difícil governar, ou seja, a fim de serem tratados como adultos.
22 agosto 2002
As eleições e a famosa falta de debate de fundo
Cada vez que, numa roda de amigos, se fala das eleições, alguém deplora que a campanha não seja uma disputa entre idéias e programas.
A reclamação pela falta de debate de fundo não é a manha de um amigo chato. Todos, em um momento ou outro, desempenhamos esse papel inevitavelmente. Parece uma regra: nas campanhas eleitorais, lamentamos a ausência de um enfrentamento construtivo entre os projetos de governo e desprezamos a preponderância da atenção dada às pessoas dos candidatos.
Ora, os projetos de política pública dos principais pretendentes podem não ser causa de grandes entusiasmos, mas são conhecidos e publicados em livros e jornais. Aparentemente, poucos os lêem.
Quando um de seus amigos se queixar da falta de debate de fundo, lance uma discussão sobre os projetos de governo. Na maioria dos casos, você constatará que o amigo reclamante tem uma idéia muito vaga dos ditos projetos. E verá sua proposta de discussão ser aprovada por unanimidade, mas imediatamente esquecida. O papo voltará para o que todos adoram repetir: Ciro é irritado, Serra é antipático, Lula é grosso e Garotinho se faz de seráfico. Ou, então: Ciro é enérgico, Serra é uma pessoa séria, Lula é dos nossos e Garotinho é boa-pinta.
Em suma, esbravejamos contra o esvaziamento do debate político, mas estamos a fim de falar só dos candidatos.
Não é um efeito da cordialidade nacional, pela qual as pessoas contam mais que as idéias. Nas últimas eleições americanas, qualquer um que comparasse as propostas políticas de Al Gore com as de George W. Bush constataria que o primeiro defendia os interesses da classe média, e o segundo, os interesses da grande indústria. Mas Gore perdeu por ser "elitista" e Bush ganhou (mais ou menos) por ser "popular". Enfrentaram-se duas figuras, não dois planos de governo. E, no dizer de muitos, Bush foi favorecido por seus erros e suas trapalhadas - sinais de autenticidade.
Então, como perdemos o interesse pela política pública? "O Declínio do Homem Público", que Richard Sennett publicou em 1974, nos serve de guia para explicar a sensibilidade política contemporânea. Os anos 60 promoveram a idéia de que as verdadeiras revoluções devem acontecer dentro de nós. Para mudar o mundo, mude a si mesmo e não conte com o Congresso ou a Esplanada dos Ministérios. Tampouco conte com o partido, com a conquista do poder etc.
A intimidade foi valorizada como lugar onde era preciso resolver os conflitos mais urgentes e verdadeiros. Isso produziu um descrédito da política pública. Surgiram as perguntas: "Revolucionário, como trata sua companheira e suas crianças? O que sabe de si e de sua sexualidade?".
Hoje, escreve Sennett, "entendemos muito bem que o poder é uma questão de interesses nacionais e internacionais, entendemos o jogo entre as classes e entre os grupos étnicos, entendemos o conflito entre regiões e religiões. Mas não agimos segundo esse entendimento". Na hora de votar, por exemplo, não escolhemos planos de governo, mas personalidades. Como as escolhemos?
A importância atribuída à intimidade faz com que a autenticidade se torne um parâmetro. Gostamos de candidatos "autênticos", que mostram suas tripas. E isso vale seja qual for a qualidade das tripas, pois a autenticidade é um critério abstrato, que não garante nada. Um candidato descreve veridicamente as condições e as possibilidades do país: nós o acharemos sincero. No entanto preferiremos outro que se atrapalha na apresentação dos fatos, mas que nos revela sua intimidade e, portanto, parece mais autêntico.
Muitos homens políticos devem ter-se dado conta dessa mudança: desistem de dar prova de autocontrole, soltam as emoções e choram como crianças.
Para Sennett, é suicida o líder que declara: "Esqueçam minha vida privada, tudo o que precisam saber de mim é quais ações tomarei uma vez eleito". Desde os anos 60, a credibilidade de qualquer sujeito é função de sua capacidade de parecer autêntico. Não é diferente para um candidato: sua "credibilidade" não tem a ver com seu projeto político (veridicidade dos pressupostos, razoabilidade das propostas), mas com a capacidade de mostrar sua intimidade. Pois, para nos conquistar, ele deve mostrar-se autêntico.
De fato, na corrida em curso, até agora, os que parecem mais "autênticos" encabeçam as pesquisas. Dos olhos de Lula marejam as lágrimas na hora de evocar sua infância e as misérias do povo e, provavelmente, isso vale mais que o projeto de governo do PT. Ciro se irrita que nem a gente e é carinhoso com a Patrícia, e isso vale mais que os livros escritos com Mangabeira.
Enquanto isso, a campanha de Serra parece insistir na qualidade de sua atuação como ministro e na sua competência, como se as eleições fossem decididas apenas num debate em que os diferentes planos de governo seriam comparados e discutidos. Quanto a Garotinho, sua fé poderia valer como sinal de autenticidade, mas, para isso, deveria ser, no mínimo, mais atormentada.
A reclamação pela falta de debate de fundo não é a manha de um amigo chato. Todos, em um momento ou outro, desempenhamos esse papel inevitavelmente. Parece uma regra: nas campanhas eleitorais, lamentamos a ausência de um enfrentamento construtivo entre os projetos de governo e desprezamos a preponderância da atenção dada às pessoas dos candidatos.
Ora, os projetos de política pública dos principais pretendentes podem não ser causa de grandes entusiasmos, mas são conhecidos e publicados em livros e jornais. Aparentemente, poucos os lêem.
Quando um de seus amigos se queixar da falta de debate de fundo, lance uma discussão sobre os projetos de governo. Na maioria dos casos, você constatará que o amigo reclamante tem uma idéia muito vaga dos ditos projetos. E verá sua proposta de discussão ser aprovada por unanimidade, mas imediatamente esquecida. O papo voltará para o que todos adoram repetir: Ciro é irritado, Serra é antipático, Lula é grosso e Garotinho se faz de seráfico. Ou, então: Ciro é enérgico, Serra é uma pessoa séria, Lula é dos nossos e Garotinho é boa-pinta.
Em suma, esbravejamos contra o esvaziamento do debate político, mas estamos a fim de falar só dos candidatos.
Não é um efeito da cordialidade nacional, pela qual as pessoas contam mais que as idéias. Nas últimas eleições americanas, qualquer um que comparasse as propostas políticas de Al Gore com as de George W. Bush constataria que o primeiro defendia os interesses da classe média, e o segundo, os interesses da grande indústria. Mas Gore perdeu por ser "elitista" e Bush ganhou (mais ou menos) por ser "popular". Enfrentaram-se duas figuras, não dois planos de governo. E, no dizer de muitos, Bush foi favorecido por seus erros e suas trapalhadas - sinais de autenticidade.
Então, como perdemos o interesse pela política pública? "O Declínio do Homem Público", que Richard Sennett publicou em 1974, nos serve de guia para explicar a sensibilidade política contemporânea. Os anos 60 promoveram a idéia de que as verdadeiras revoluções devem acontecer dentro de nós. Para mudar o mundo, mude a si mesmo e não conte com o Congresso ou a Esplanada dos Ministérios. Tampouco conte com o partido, com a conquista do poder etc.
A intimidade foi valorizada como lugar onde era preciso resolver os conflitos mais urgentes e verdadeiros. Isso produziu um descrédito da política pública. Surgiram as perguntas: "Revolucionário, como trata sua companheira e suas crianças? O que sabe de si e de sua sexualidade?".
Hoje, escreve Sennett, "entendemos muito bem que o poder é uma questão de interesses nacionais e internacionais, entendemos o jogo entre as classes e entre os grupos étnicos, entendemos o conflito entre regiões e religiões. Mas não agimos segundo esse entendimento". Na hora de votar, por exemplo, não escolhemos planos de governo, mas personalidades. Como as escolhemos?
A importância atribuída à intimidade faz com que a autenticidade se torne um parâmetro. Gostamos de candidatos "autênticos", que mostram suas tripas. E isso vale seja qual for a qualidade das tripas, pois a autenticidade é um critério abstrato, que não garante nada. Um candidato descreve veridicamente as condições e as possibilidades do país: nós o acharemos sincero. No entanto preferiremos outro que se atrapalha na apresentação dos fatos, mas que nos revela sua intimidade e, portanto, parece mais autêntico.
Muitos homens políticos devem ter-se dado conta dessa mudança: desistem de dar prova de autocontrole, soltam as emoções e choram como crianças.
Para Sennett, é suicida o líder que declara: "Esqueçam minha vida privada, tudo o que precisam saber de mim é quais ações tomarei uma vez eleito". Desde os anos 60, a credibilidade de qualquer sujeito é função de sua capacidade de parecer autêntico. Não é diferente para um candidato: sua "credibilidade" não tem a ver com seu projeto político (veridicidade dos pressupostos, razoabilidade das propostas), mas com a capacidade de mostrar sua intimidade. Pois, para nos conquistar, ele deve mostrar-se autêntico.
De fato, na corrida em curso, até agora, os que parecem mais "autênticos" encabeçam as pesquisas. Dos olhos de Lula marejam as lágrimas na hora de evocar sua infância e as misérias do povo e, provavelmente, isso vale mais que o projeto de governo do PT. Ciro se irrita que nem a gente e é carinhoso com a Patrícia, e isso vale mais que os livros escritos com Mangabeira.
Enquanto isso, a campanha de Serra parece insistir na qualidade de sua atuação como ministro e na sua competência, como se as eleições fossem decididas apenas num debate em que os diferentes planos de governo seriam comparados e discutidos. Quanto a Garotinho, sua fé poderia valer como sinal de autenticidade, mas, para isso, deveria ser, no mínimo, mais atormentada.
15 agosto 2002
A psicologia forense, a origem do mal e a culpa dos outros
Desde o começo dos anos 90, nos EUA, há uma proliferação de romances cujos heróis são psicólogos ou psiquiatras forenses. Os leitores de histórias policiais conhecem os protagonistas clássicos: o detetive que leva e dá pauladas até que as coisas se esclareçam (estilo Mickey Spillane), o advogado de defesa à Perry Mason e o investigador que pensa e computa (uma tradição que vai dos contos de Edgar Poe até Nero Wolfe, passando por Sherlock Holmes). A eles acrescenta-se, hoje, uma nova figura: o "profiler", o clínico que lê no crime a dinâmica exclusiva de uma mente criminosa.
Graças a esses psicólogos forenses, na última década, a psicologia clínica tornou-se depositária da questão da origem do mal: é muita honra. Mas é também uma armadilha que funciona assim. Acho que entendo a angústia e a depressão porque já estive ansioso e triste alguma vez. Agora, o que é esquartejar e comer um pedaço de minha vítima? Isso não consigo vislumbrar. E gostaria que a psicologia me explicasse -não tanto para entender quanto para me exonerar. Os heróis da nova onda de romances policiais me dirão as razões pelas quais os monstros torturam, amputam, sangram e estupram. Com isso, confirmarão que eu não tenho nada a ver com isso.
Estamos no ápice da confiança concedida à psicologia clínica, que deve nos dizer de onde vem a maldade. Mas estamos também no ápice da negação do aporte mais inquietante da mesma psicologia, pelo qual, em princípio, não há loucura que seja completamente estrangeira ao homem normal. Ou seja, a psicologia diz que compartilhamos os mesmos monstros com o criminoso e o maluco, apenas somos mais hábeis no manuseio das rédeas. Mas, nos romances "psicopoliciais", o psicólogo forense, revelando a verdade oculta dos assassinos, proclama nossa inocência.
Há exceções a essa regra. Um psiquiatra forense (de verdade), Keith Ablow, escreveu três romances -"Compulsion", "Projection", "Denial", infelizmente ainda indisponíveis em português-, que poderiam servir de livros de texto de psicologia clínica. O herói é Frank Clevenger, um psiquiatra forense dramaticamente perturbado pelo vai-e-vem entre sua própria análise, as lembranças de sua infância e a interpretação das palavras e dos atos de suspeitos e criminosos. Clevenger, atormentado cocainômano e alcoólatra em recuperação, sabe que o mal é compreendido só por quem não hesita em olhar dentro de si.
Lembra o "Silêncio dos Inocentes"? É por ele mesmo ser canibal que o dr. Lecter, psiquiatra, pôde adivinhar quem era o monstro que Clarice estava procurando. Como todo verdadeiro clínico (forense ou não), ele se servia de sua loucura (que, no caso, era conspícua) para entender e interpretar.
Essa diferença entre os romances de Ablow e os outros não impede que todos promovam uma mesma idéia, que é hoje recorrente nas imagens populares do trabalho psicoterápico: trata-se da idéia de que o mal é reciclado. Ou seja, tanto o sofrimento neurótico quanto a violência desinibida e criminosa seriam os efeitos diretos de algum mal que nos foi feito.
Viva o "transtorno pós-traumático": seja qual for nosso jeito, ficamos assim por causa de um trauma. A mente é um livro-caixa, com entradas e saídas: atrás de cada sofrimento, estranheza ou malvadez, deve haver alguma ofensa passada. Nossos sintomas e nossas aberrações seriam compensações ou retribuições: os que foram pouco ofendidos sofrem da reminiscência da injúria passada e os que passaram por abusos violentos atuam com a crueldade da qual já foram vítimas. Fomos maltratados quando crianças. Por isso temos medo do escuro ou então cortamos a garganta da vizinha.
Ora, de tudo que aprendi em minha formação clínica, há uma regra que se verifica a cada vez: nossos males são efeitos de nossas interpretações (mais ou menos capengas) do que os outros fizeram conosco ou quiseram de nós. Não são consequências diretas das ações dos outros.
Por isso é possível mudar. Por isso o passado não constitui propriamente um destino: porque nunca somos apenas o efeito dos abusos sofridos. Em alguma medida, sempre decidimos o sentido e o alcance que atribuímos à violência da qual fomos vítimas. Somos, portanto, os artesãos de nossas reações: escolhemos a vingança violenta contra o mundo ou uma vida consagrada a lamber nossas feridas. Ou, ainda, a coragem de ir em frente.
Em matéria de psicologia clínica, vale um ditado que escutei pouco tempo atrás, no norte rural do Estado de Nova York. Diz assim: "Não há como arregaçar as mangas se você continua apontando seus dedos aos outros para culpá-los".
P.S.: Muitos "psicopoliciais" são acessíveis em português. Há os livros de James Patterson, cujo Alex Cross, doutor em psicologia, foi levado para o cinema por Morgan Freeman, em "Beijos que Matam" e em "Na Teia da Aranha". Há as histórias do psicólogo Alex Delaware, por Jonathan Kellerman, as de Alan Gregory, por Stephen White, e as de Lincoln Rhymes, por Jeffery Deaver. Boa leitura.
Graças a esses psicólogos forenses, na última década, a psicologia clínica tornou-se depositária da questão da origem do mal: é muita honra. Mas é também uma armadilha que funciona assim. Acho que entendo a angústia e a depressão porque já estive ansioso e triste alguma vez. Agora, o que é esquartejar e comer um pedaço de minha vítima? Isso não consigo vislumbrar. E gostaria que a psicologia me explicasse -não tanto para entender quanto para me exonerar. Os heróis da nova onda de romances policiais me dirão as razões pelas quais os monstros torturam, amputam, sangram e estupram. Com isso, confirmarão que eu não tenho nada a ver com isso.
Estamos no ápice da confiança concedida à psicologia clínica, que deve nos dizer de onde vem a maldade. Mas estamos também no ápice da negação do aporte mais inquietante da mesma psicologia, pelo qual, em princípio, não há loucura que seja completamente estrangeira ao homem normal. Ou seja, a psicologia diz que compartilhamos os mesmos monstros com o criminoso e o maluco, apenas somos mais hábeis no manuseio das rédeas. Mas, nos romances "psicopoliciais", o psicólogo forense, revelando a verdade oculta dos assassinos, proclama nossa inocência.
Há exceções a essa regra. Um psiquiatra forense (de verdade), Keith Ablow, escreveu três romances -"Compulsion", "Projection", "Denial", infelizmente ainda indisponíveis em português-, que poderiam servir de livros de texto de psicologia clínica. O herói é Frank Clevenger, um psiquiatra forense dramaticamente perturbado pelo vai-e-vem entre sua própria análise, as lembranças de sua infância e a interpretação das palavras e dos atos de suspeitos e criminosos. Clevenger, atormentado cocainômano e alcoólatra em recuperação, sabe que o mal é compreendido só por quem não hesita em olhar dentro de si.
Lembra o "Silêncio dos Inocentes"? É por ele mesmo ser canibal que o dr. Lecter, psiquiatra, pôde adivinhar quem era o monstro que Clarice estava procurando. Como todo verdadeiro clínico (forense ou não), ele se servia de sua loucura (que, no caso, era conspícua) para entender e interpretar.
Essa diferença entre os romances de Ablow e os outros não impede que todos promovam uma mesma idéia, que é hoje recorrente nas imagens populares do trabalho psicoterápico: trata-se da idéia de que o mal é reciclado. Ou seja, tanto o sofrimento neurótico quanto a violência desinibida e criminosa seriam os efeitos diretos de algum mal que nos foi feito.
Viva o "transtorno pós-traumático": seja qual for nosso jeito, ficamos assim por causa de um trauma. A mente é um livro-caixa, com entradas e saídas: atrás de cada sofrimento, estranheza ou malvadez, deve haver alguma ofensa passada. Nossos sintomas e nossas aberrações seriam compensações ou retribuições: os que foram pouco ofendidos sofrem da reminiscência da injúria passada e os que passaram por abusos violentos atuam com a crueldade da qual já foram vítimas. Fomos maltratados quando crianças. Por isso temos medo do escuro ou então cortamos a garganta da vizinha.
Ora, de tudo que aprendi em minha formação clínica, há uma regra que se verifica a cada vez: nossos males são efeitos de nossas interpretações (mais ou menos capengas) do que os outros fizeram conosco ou quiseram de nós. Não são consequências diretas das ações dos outros.
Por isso é possível mudar. Por isso o passado não constitui propriamente um destino: porque nunca somos apenas o efeito dos abusos sofridos. Em alguma medida, sempre decidimos o sentido e o alcance que atribuímos à violência da qual fomos vítimas. Somos, portanto, os artesãos de nossas reações: escolhemos a vingança violenta contra o mundo ou uma vida consagrada a lamber nossas feridas. Ou, ainda, a coragem de ir em frente.
Em matéria de psicologia clínica, vale um ditado que escutei pouco tempo atrás, no norte rural do Estado de Nova York. Diz assim: "Não há como arregaçar as mangas se você continua apontando seus dedos aos outros para culpá-los".
P.S.: Muitos "psicopoliciais" são acessíveis em português. Há os livros de James Patterson, cujo Alex Cross, doutor em psicologia, foi levado para o cinema por Morgan Freeman, em "Beijos que Matam" e em "Na Teia da Aranha". Há as histórias do psicólogo Alex Delaware, por Jonathan Kellerman, as de Alan Gregory, por Stephen White, e as de Lincoln Rhymes, por Jeffery Deaver. Boa leitura.
08 agosto 2002
Crise do mercado ou crise do sujeito?
Muitos dizem que a crise de Wall Street em 2001 e 2002 é um efeito da ganância. A Bolsa estaria caindo porque a conduta dos dirigentes de várias empresas (Enron, Worldcom, Tyco etc.) feriu a confiança do investidor. Se for assim, a dificuldade será resolvida logo: os desonestos irão para a cadeia, as auditorias futuras serão de verdade, e a classe média reinvestirá suas economias. Tudo voltará a ser como antes.
Minha previsão é um pouco diferente.
Desde o início do século 19, deixamos de calcular o valor social de cada um com base no lugar, na classe e na família em que nasceu. Para definir o valor de uma pessoa, suas riquezas começaram a contar mais que sua origem. Passamos de uma época que venerava o "ser" (nobre, burguês ou escravo) para uma época que venerava o "ter". A mudança foi democrática: afinal, era difícil escapar do destino que nos reservavam as diferenças de nascença (só à força de casamentos), mas, no breve espaço de uma vida, por ventura ou pelo trabalho, um indivíduo podia transformar seu status, se esse dependesse apenas de sua riqueza.
Uma sociedade organizada pelas diferenças de posses e bens não é necessariamente espalhafatosa. "Eu sou mais rico, mas me visto, moro e vou para a igreja como você, que trabalha em minha fábrica." O capitalismo começou desse jeito: com uma moral calvinista, sem simpatia por pompas e luxos. Não podia durar assim: para produzir mais bens e riquezas (e, portanto, um pouco de bem-estar para todos), era preciso crescer. E, se os abastados não consumirem de uma maneira vistosamente diferente, quem absorverá os frutos do trabalho? No fim do século 19, as riquezas tornaram-se conspícuas: diferenças de consumo, e não só de carteira.
Essa nova ostentação era o primórdio de uma mudança da subjetividade que seria exigida poucas décadas mais tarde, quando a época do "ter" entrou em crise, em 1929. Até então, numa exuberância parecida com a nossa nos anos 90, acreditava-se numa expansão ilimitada. Os ricos se tornariam mais ricos e mais numerosos. Graças a isso, todos trabalharíamos e produziríamos cada vez mais. Mas a coisa encalhou.
O esbanjamento dos endinheirados não era suficiente para motivar a máquina produtiva. A saída da crise, depois da imediata intervenção dos governos e da guerra, veio por uma transformação que se impôs nos anos 60 e deu seus frutos nos anos 80 e 90.
Dessa vez, passamos de uma sociedade organizada pelas diferenças de bens e posses para uma sociedade comandada pela aparência. Não se trata mais da necessidade de o rico mostrar sua riqueza. Parecer rico torna-se mais importante do que ser rico. Vale mais um pobretão chique do que um ricaço maltrapilho. Essa nova hierarquia, fundada nos sinais exteriores de "invejabilidade" mais do que de riqueza, abre possibilidades insuspeitadas de consumo e de crescimento. Pois, de repente, os pobres são instigados a consumir tão conspicuamente quanto os ricos. Por um instante, qualquer um de nós pode parecer-se com os ricos, usando um sabonete de R$ 10. Vale a pena comprar uma bolsa que nos custa uma semana de trabalho. É normal gastar em estilo mais do que em aluguel e comida.
Para a subjetividade da época do parecer, não devemos o que somos nem ao berço nem às posses, mas ao olhar dos outros. Outro avanço democrático, não é? A calça certa, um lenço, um corpo malhado ou siliconado permitem o acesso ao clube dos que parecem privilegiados, que é o que importa.
Estávamos nessa "festa" desde os anos 80. Aconteceu o previsível: a subjetividade dominante impôs seu feitio à sociedade inteira, inclusive à economia. Na época do "ter" (conspícuo ou não), valiam as empresas que produziam, acumulavam e trocavam riquezas reais. Na época do parecer, a economia também preferiu o parecer: valiam as empresas que "pareciam" ricas, ou seja, que produziam sobretudo sua própria imagem. Ser "cool" tornou-se uma estratégia empresarial. "O pessoal aqui trabalha de calça de brim, tem academia no escritório, e toma-se chá orgânico à vontade. Somos "cool", e isso prova o valor de nossa empresa, mesmo que a gente só perca dinheiro." Obviamente, num mundo em que parecer é mais importante do que ser, as ações da empresa fazem parte da fachada. Valorizá-las (mesmo por um embuste contábil) é mais importante do que aumentar a produtividade ou equilibrar balanços.
Essa bolha estourou. Talvez estoure também o tipo de subjetividade que foi a alma da bolha. Assim como 1929 anunciou o fim da época do "ter", 2001 e 2002 anunciariam o fim da época do "parecer".
Nesse caso, poderíamos esperar que a crise de hoje prometesse figuras novas da subjetividade. Em vez do yuppie de Wall Street, os jovens que se engajam no Peace Corps. Em vez dos elegantes e dos malhadíssimos que povoam nossos shopping centers, membros de ONGs. Depois da subjetividade do "ser", do "ter" e do "parecer", quem sabe, seja a hora de uma subjetividade do fazer e do fazer, se possível, as coisas certas.
Mas, provavelmente, estou sonhando.
01 agosto 2002
Sofrendo de doenças futuras o custo da detecção precoce
Uma empresa da Flórida chamada CATscan 2000 manda pelos EUA afora seus caminhões transformados em laboratórios: oferece tomografias computadorizadas do corpo inteiro por menos de US$ 600. É possível parcelar -não a conta, mas o corpo, que é divisível em três zonas.
Chamo o número da empresa: 1-87-RU-AT-RISK (1-87-será que você está em perigo?). Confirmam que não é necessária nenhuma prescrição médica. Só o dinheiro. Infelizmente, no momento, nenhum dos laboratórios está próximo de meu domicílio. Em geral, eles param nos estacionamentos das igrejas de pequenas aglomerações. Segundo uma reportagem do "New York Times" de 27 de maio, uma tomografia grátis é oferecida em troca ao pároco ou ao pastor. Os caminhões lembram os vendedores ambulantes do elixir de longa vida, que, no passado, iam de feira em feira. O letreiro diz: "Faça sua tomografia. A detecção precoce do câncer e da doença cardíaca pode significar a cura!". Em cada caminhão, há um técnico e um recepcionista que marca horário e cobra. Os resultados são interpretados mais tarde por um radiologista e chegam pelo correio. Claro, nenhum seguro de saúde reembolsa o custo da tomografia, mas, se um problema for detectado, o paciente levará o exame a seu médico, que agirá em consequência.
Nas grandes cidades há laboratórios menos espetaculares que os caminhões, mas que também efetuam tomografias computadorizadas a pedido do cliente, sem uma indicação e uma razão médica específicas.
Essas práticas duvidosas são apenas sintomas das expectativas do paciente de hoje. Ninguém acredita mais no silêncio dos órgãos como prova de seu bom funcionamento. Não vale a idéia de que a doença começaria com o desconforto, com a dor e com as queixas. Nossa relação com o corpo é paranóica: ele nos esconde coisas, faz-se de saudável, mas, no meio disso, é capaz de alimentar cânceres e outras porcarias.
Essa atitude corresponde ao espírito da época: o futuro é nosso tempo preferido. Nossa capacidade de mudar, de progredir e de crescer importa mais do que o peso do passado. Nossas potencialidades nos definem muito mais do que nosso estado presente. Do mesmo jeito, a experiência atual do corpo não basta para definir a saúde, como seria o caso numa cultura que privilegiasse o presente. A saúde que nos importa é a futura.
A medicina, portanto, deve sobretudo prevenir (ou seja, prescrever condutas que favoreçam a saúde) e detectar precocemente (ou seja, espreitar os primeiríssimos sinais das doenças, para esmagá-las na hora). A partir dos 40 anos, pessoas que se sentem perfeitamente saudáveis esperam a verdade sobre o estado de seu corpo de investigações clínicas que são hoje, paradoxalmente, a rotina da vida saudável: mamografias, papanicolaous, toques variados, exames de PSA ou, no caso, tomografias computadorizadas do corpo inteiro.
Graças a isso, muitas vidas são salvas (no mínimo, prolongadas). Mas há um custo. Qual?
Quem leva suas economias para o caminhão da CATscan 2000 sonha com um check-up no estilo "Star Trek". Infelizmente, nossa realidade é menos hollywoodiana: talvez tenhamos um raio parecido com o da nave espacial Enterprise, mas não temos a mesma habilidade diagnóstica nem a mesma medicina.
Para cada vida salva, há casos em que aparecem lesões milimétricas que ninguém consegue interpretar com segurança ou nódulos tão ínfimos que seu sentido é incerto. A vontade de pegar as coisas a tempo não se traduz só em curas mais eficientes. Às vezes, a detecção precoce descobre anomalias que não autorizam a certeza de um plano de cura. É possível que essas anomalias não sejam prelúdio de nada ou, então, que anunciem o pior. Em geral, nesses casos, a medicina é honesta: confessa os limites de sua competência, descreve as perdas e os riscos acarretados pelo tratamento de lesões que poderiam ser inócuas e deixa os pacientes livres para decidir se tais microcalcificações do seio anunciam ou não um tumor ou se tal tecido suspeito da próstata crescerá ou seguirá dormindo. É uma escolha impossível: entre intervenções invalidantes que talvez sejam desnecessárias e uma abstenção pela qual o paciente talvez decrete sua morte. Milhões de pessoas circulam pelo mundo perguntando-se, como Sigourney Weaver depois do encontro com o monstro, se carregam ou não um "alien" no corpo.
Na tentativa de definir pelo futuro não só nossa vida, mas também nossa saúde, descobre-se o óbvio: para quem venera o futuro e vive na antecipação, o presente se banha facilmente na angústia.
P.S.: Estréia amanhã, no Brasil, "Minority Report - A Nova Lei", de Steven Spielberg. O filme (inspirado por um conto de Philip K. Dick) imagina um sistema policial capaz de reduzir a zero a criminalidade: basta que sejam punidos não os crimes passados, mas os crimes futuros.
Em matéria de saúde, parece que corremos atrás de um sonho parecido: o de sermos curados das doenças que teremos. Para muitos, o sonho vira pesadelo.
Chamo o número da empresa: 1-87-RU-AT-RISK (1-87-será que você está em perigo?). Confirmam que não é necessária nenhuma prescrição médica. Só o dinheiro. Infelizmente, no momento, nenhum dos laboratórios está próximo de meu domicílio. Em geral, eles param nos estacionamentos das igrejas de pequenas aglomerações. Segundo uma reportagem do "New York Times" de 27 de maio, uma tomografia grátis é oferecida em troca ao pároco ou ao pastor. Os caminhões lembram os vendedores ambulantes do elixir de longa vida, que, no passado, iam de feira em feira. O letreiro diz: "Faça sua tomografia. A detecção precoce do câncer e da doença cardíaca pode significar a cura!". Em cada caminhão, há um técnico e um recepcionista que marca horário e cobra. Os resultados são interpretados mais tarde por um radiologista e chegam pelo correio. Claro, nenhum seguro de saúde reembolsa o custo da tomografia, mas, se um problema for detectado, o paciente levará o exame a seu médico, que agirá em consequência.
Nas grandes cidades há laboratórios menos espetaculares que os caminhões, mas que também efetuam tomografias computadorizadas a pedido do cliente, sem uma indicação e uma razão médica específicas.
Essas práticas duvidosas são apenas sintomas das expectativas do paciente de hoje. Ninguém acredita mais no silêncio dos órgãos como prova de seu bom funcionamento. Não vale a idéia de que a doença começaria com o desconforto, com a dor e com as queixas. Nossa relação com o corpo é paranóica: ele nos esconde coisas, faz-se de saudável, mas, no meio disso, é capaz de alimentar cânceres e outras porcarias.
Essa atitude corresponde ao espírito da época: o futuro é nosso tempo preferido. Nossa capacidade de mudar, de progredir e de crescer importa mais do que o peso do passado. Nossas potencialidades nos definem muito mais do que nosso estado presente. Do mesmo jeito, a experiência atual do corpo não basta para definir a saúde, como seria o caso numa cultura que privilegiasse o presente. A saúde que nos importa é a futura.
A medicina, portanto, deve sobretudo prevenir (ou seja, prescrever condutas que favoreçam a saúde) e detectar precocemente (ou seja, espreitar os primeiríssimos sinais das doenças, para esmagá-las na hora). A partir dos 40 anos, pessoas que se sentem perfeitamente saudáveis esperam a verdade sobre o estado de seu corpo de investigações clínicas que são hoje, paradoxalmente, a rotina da vida saudável: mamografias, papanicolaous, toques variados, exames de PSA ou, no caso, tomografias computadorizadas do corpo inteiro.
Graças a isso, muitas vidas são salvas (no mínimo, prolongadas). Mas há um custo. Qual?
Quem leva suas economias para o caminhão da CATscan 2000 sonha com um check-up no estilo "Star Trek". Infelizmente, nossa realidade é menos hollywoodiana: talvez tenhamos um raio parecido com o da nave espacial Enterprise, mas não temos a mesma habilidade diagnóstica nem a mesma medicina.
Para cada vida salva, há casos em que aparecem lesões milimétricas que ninguém consegue interpretar com segurança ou nódulos tão ínfimos que seu sentido é incerto. A vontade de pegar as coisas a tempo não se traduz só em curas mais eficientes. Às vezes, a detecção precoce descobre anomalias que não autorizam a certeza de um plano de cura. É possível que essas anomalias não sejam prelúdio de nada ou, então, que anunciem o pior. Em geral, nesses casos, a medicina é honesta: confessa os limites de sua competência, descreve as perdas e os riscos acarretados pelo tratamento de lesões que poderiam ser inócuas e deixa os pacientes livres para decidir se tais microcalcificações do seio anunciam ou não um tumor ou se tal tecido suspeito da próstata crescerá ou seguirá dormindo. É uma escolha impossível: entre intervenções invalidantes que talvez sejam desnecessárias e uma abstenção pela qual o paciente talvez decrete sua morte. Milhões de pessoas circulam pelo mundo perguntando-se, como Sigourney Weaver depois do encontro com o monstro, se carregam ou não um "alien" no corpo.
Na tentativa de definir pelo futuro não só nossa vida, mas também nossa saúde, descobre-se o óbvio: para quem venera o futuro e vive na antecipação, o presente se banha facilmente na angústia.
P.S.: Estréia amanhã, no Brasil, "Minority Report - A Nova Lei", de Steven Spielberg. O filme (inspirado por um conto de Philip K. Dick) imagina um sistema policial capaz de reduzir a zero a criminalidade: basta que sejam punidos não os crimes passados, mas os crimes futuros.
Em matéria de saúde, parece que corremos atrás de um sonho parecido: o de sermos curados das doenças que teremos. Para muitos, o sonho vira pesadelo.
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