Há homens e mulheres que não aguentam conviver. Apaixonam-se, às vezes casam ou se juntam, mas logo se sentem sufocados. Alegam que falta liberdade, privacidade, silêncio. Algo, que não é apenas a variedade da vida sexual, estaria sendo impedido pelo parceiro (ou pela parceira).
Outros conseguem conviver durante anos ou para sempre, mas com a sensação constante de que estão sendo limitados, constrangidos. Ou seja, com a idéia ressentida de que, se o consorte não estivesse junto, a vida vingaria como nunca.
Essa atitude, entre lamento e reivindicação, é quase sempre presente quando um dos parceiros tem (ou imagina ter) uma vocação artística.
O diabo é que isso acontece hoje com frequência crescente. Não me estranha: numa cultura que valoriza o indivíduo, espera-se de cada um que se faça ouvir e reconhecer pelo que tem de mais singular. Um dos grandes imperativos da época diz que é preciso expressar-se. E acreditamos automaticamente que, se pudéssemos procurar fundo nas nossas tripas, encontraríamos pérolas.
Eu sou advogada, mas, lá no fundo, sou poeta ou romancista. Eu sou engenheiro, mas, lá no fundo, sou viajante como Amyr Klink. Eu sou bancário, mas, no fundo, sou músico e cantor. Eu sou médica, mas, no fundo, sou dançarina. O vínculo social tenta nos definir, mas a criatividade nos resgatará.
Valorizamos o indivíduo em suas expressões mais singulares. Portanto as relações sociais nos parecem sempre suspeitas: será que elas não ameaçam a expressão de nossa subjetividade, única e original? É apesar dos outros, imaginamos, que é possível ser "nós mesmos" e produzir algo de valor.
Muitos acabam pensando que, se eles não seguem sua vocação, é por causa do parceiro ou do casal. "Não posso deixar de trabalhar e, à noite, quando volto para casa, não dá. Precisaria de solidão para tocar, escrever, pensar, treinar. Estou cansado, as crianças pedem atenção e não há como não conversar." Em suma, as necessidades da vida em família seriam responsáveis por nossas falências expressivas.
Às vezes, o parceiro que se considera inibido pelo casal impõe uma condição: "Quero tempo, quero um espaço que seja só meu". E o outro (ou outra), generosamente, aceita e encoraja: "Claro, vamos alugar um pequeno escritório para você tocar, escrever, pensar e ficar tranquilo (tranquila) à noite e nos fins de semana. Ou, então, vamos usar a poupança, e você fica um ano sem trabalhar, mas não aqui; na casa de praia dos tios, lá, sem ninguém".
Surpresa e mistério: quando a reivindicação é satisfeita, em regra, ocorre um imprevisto. Na maioria dos casos, o sujeito, aliviado dos deveres da conjugalidade e das responsabilidades sociais, sozinho no lugar e com o tempo que pediu a Deus, livre e desembaraçado, não faz nada. Salvo, talvez, lamentar a época em que, para dedicar-se a sua paixão, ele roubava horas ao sono, aos filhos e às obrigações familiares do fim de semana.
O tempo e o espaço reservados transformam-se na caricatura do pior vácuo da adolescência: televisão, chat de computador, navegações a esmo na internet, infindáveis jogos de paciência. Em suma, uma preguiça que beira e anuncia a depressão.
"Agora que poderia, não sei o que acontece, não saio da cama." Resumindo: achava que o outro me impedia de realizar meus sonhos. Mas, uma vez livre de sua presença, constato que, sem ele (ou ela), mal consigo me mexer, perco a vontade. Descubro assim que: 1) o outro não era minha distração, mas talvez fosse minha motivação, 2) o tempo e o espaço que eu exigia, longe dele ou dela, eram, de fato, tempo e espaço para não fazer nada.
Em suma, quando um parceiro pede para ficar sozinho e, assim, dar livre curso a suas veias criativas, expressivas ou meditativas, seu pedido, embora sincero, alveja quase sempre um ócio avacalhado. Na maioria dos casos, o outro que queremos eliminar não é o carrasco de nossas aspirações, mas o penoso lembrete dessas aspirações. Como assim?
É simples e banal. Um casal serve (também) para isto: o outro é encarregado de encarnar nossas próprias exigências, sobretudo as mais frustrantes. Por exemplo, José se queixa da obsessão de Maria com a ordem nos armários. Qual importância? Só dá briga porque José, de fato, adora ordem e sonha com fileiras perfeitas de meias, cuecas, sapatos e camisas, mas sua vontade morre na praia. Maria torna-se assim a representante do desejo frustrado de José, ou seja, o lembrete de um encargo (fazer ordem nos armários) que é o próprio desejo dele, mas que ele não consegue cumprir -irritante, não é? O mesmo mecanismo vale para obrigações maiores e mais cansativas: se Maria ama e, portanto, idealiza um pouco José, ela certamente quer que ele siga seus anseios artísticos.
Consequência: quando José procura a solidão "para perseguir melhor sua vocação", muitas vezes, ele não tenta evitar a diversão do barulho das crianças, do papo e da transa compulsória com Maria. Ao contrário, ele pode estar fugindo de um amor que é incômodo porque lhe lembra seu próprio desejo.
27 fevereiro 2003
20 fevereiro 2003
Pacifistas e guerreadores
Segunda -feira dia 17, em Nova York, neva sem parar: a cidade está quase deserta. Nas avenidas, circula, de vez em quando, um esquiador.
Os nova-iorquinos, na semana passada, fizeram estoque de água, de enlatados e de fitas adesivas para fechar hermeticamente portas e janelas. Preparavam-se para ataques químicos e biológicos. Hoje, há uma sensação de trégua, como se fôssemos protegidos e isolados, cada um em sua casa, por uma embalagem de algodão.
Melhor assim, pois, nos bares e ao redor das mesas, não é fácil encontrar alguém com quem conversar sobre a complexidade do momento. Os interlocutores deslizam no pacifismo radical ou na belicosidade entusiasta. E eu não me identifico com nenhuma das duas posições. Aliás, suspeito que elas tenham algo em comum.
À vista das faixas e dos cartazes, os 250 mil manifestantes que, no sábado passado, encheram as ruas da cidade eram, em sua maioria, pacifistas radicais: opostos não só a esta guerra agora mas a qualquer guerra. Invocavam um argumento moral que parece decisivo: a vida é o valor supremo, não arriscaremos nem ameaçaremos vidas por conflito nenhum. É simpático. Certo, leva a algumas contradições insolúveis. Então não era para intervir em Kosovo? E tivemos razão ao não levantar um dedo em Ruanda? Mas isso é o de menos.
Um problema maior é que o pacifismo radical talvez seja um apêndice da ética narcisista das últimas décadas, segundo a qual é moral o que contribui ao bem-estar. Assim como a vida certa é a saudável, as escolhas políticas justas devem ser as que preservam a vida, a começar pela nossa.
Tradicionalmente, os valores morais se situam acima de nosso interesse e de nossa vontade de sobreviver. Claro, ninguém é de ferro: na Roma antiga, diante dos leões do Coliseu, provavelmente eu renegaria Deus e veneraria o imperador. Mas admitiria que não agi de maneira exemplar. Não tentaria me justificar afirmando que preservar a vida é moralmente mais importante do que professar minha fé.
No começo dos anos 80, a União Soviética parecia ameaçar uma espécie de coice do cavalo moribundo. Os EUA decidiram instalar baterias de mísseis de médio alcance na Europa. Os governos locais deixaram que os americanos pagassem essa última prestação da Guerra Fria. Houve manifestações pacifistas na Europa inteira. O slogan era: "Melhor vermelho do que morto". Leia-se: a vida é mais importante que as "baboseiras" políticas.
Alguns amigos tchecoslovacos, exilados em Paris, contemplavam as passeatas estupefatos. Teriam preferido que os manifestantes gritassem: "Queremos ser vermelhos, que a URSS nos invada". Contra isso eles saberiam lutar; afinal, já tinham lutado contra os tanques soviéticos no fim da Primavera de Praga. Mas eles não conseguiam entender estes filhos do privilégio (democrático e econômico) que, simplesmente, decretavam que não colocariam suas vidas em perigo por nenhuma causa.
Ironicamente, os pacifistas, que gostariam de mitigar as inimizades, são o protótipo do que os terroristas desprezam em nossa cultura. Os homens-bomba sentem-se seguros de encarnar uma moral antiocidental e anti-capitalista justamente porque não são guiados pela moral do bem-estar e da preservação da vida. Para eles, o suicídio confirma a moralidade de sua causa: sou moral porque me sacrifico (inversamente, quem não quer se sacrificar é exemplo de imoralidade).
Opostos aos pacifistas radicais, há os guerreadores, convencidos de que a intervenção no Iraque levará as luzes ao mundo muçulmano. Uma vez suprimido o tirano Saddam Hussein, os outros cairão por contaminação, as maternidades produzirão Montesquieus e Jeffersons em série, e logo surgirão parlamentos e partidos políticos laicos. Essa mesma visão animava os europeus na hora de deixar suas colônias. Receavam que as novas elites fossem progressistas demais. Ninguém previa que os povos "liberados" fossem escolher o fundamentalismo.
Pacifistas e guerreadores são filhos de um mesmo sonho desvairado da razão ocidental. Para os guerreadores, não há diferenças culturais que possam resistir ao poder e à sedução das luzes, as quais, mesmo impostas com as armas, conquistarão os espíritos pelo mundo afora. E os pacifistas acreditam que encontraram um valor racionalmente universal por ser biológico: a vida. Ao redor disso, imaginam que produzirão a unidade de todos. Para ambos, em suma, a pretensa universalidade da razão deve garantir a paz futura entre os homens.
Os dois grupos alegam em seu favor uma faculdade subjetiva: a razão. Não estranha, portanto, que cada grupo entenda a posição do outro como um desatino subjetivo. Para os guerreadores, os pacifistas são apenas covardes. Para os pacifistas, os guerreadores são apenas cobiçosos. Ou seja, ninguém pode querer guerra para promover um sistema de governo: é apetite de lucro disfarçado. Reciprocamente, ninguém pode querer paz a não ser para proteger seu conforto e sua pele.
Resultado: nenhum diálogo, apenas o clamor dos gritos, hoje abrandado pela neve.
Os nova-iorquinos, na semana passada, fizeram estoque de água, de enlatados e de fitas adesivas para fechar hermeticamente portas e janelas. Preparavam-se para ataques químicos e biológicos. Hoje, há uma sensação de trégua, como se fôssemos protegidos e isolados, cada um em sua casa, por uma embalagem de algodão.
Melhor assim, pois, nos bares e ao redor das mesas, não é fácil encontrar alguém com quem conversar sobre a complexidade do momento. Os interlocutores deslizam no pacifismo radical ou na belicosidade entusiasta. E eu não me identifico com nenhuma das duas posições. Aliás, suspeito que elas tenham algo em comum.
À vista das faixas e dos cartazes, os 250 mil manifestantes que, no sábado passado, encheram as ruas da cidade eram, em sua maioria, pacifistas radicais: opostos não só a esta guerra agora mas a qualquer guerra. Invocavam um argumento moral que parece decisivo: a vida é o valor supremo, não arriscaremos nem ameaçaremos vidas por conflito nenhum. É simpático. Certo, leva a algumas contradições insolúveis. Então não era para intervir em Kosovo? E tivemos razão ao não levantar um dedo em Ruanda? Mas isso é o de menos.
Um problema maior é que o pacifismo radical talvez seja um apêndice da ética narcisista das últimas décadas, segundo a qual é moral o que contribui ao bem-estar. Assim como a vida certa é a saudável, as escolhas políticas justas devem ser as que preservam a vida, a começar pela nossa.
Tradicionalmente, os valores morais se situam acima de nosso interesse e de nossa vontade de sobreviver. Claro, ninguém é de ferro: na Roma antiga, diante dos leões do Coliseu, provavelmente eu renegaria Deus e veneraria o imperador. Mas admitiria que não agi de maneira exemplar. Não tentaria me justificar afirmando que preservar a vida é moralmente mais importante do que professar minha fé.
No começo dos anos 80, a União Soviética parecia ameaçar uma espécie de coice do cavalo moribundo. Os EUA decidiram instalar baterias de mísseis de médio alcance na Europa. Os governos locais deixaram que os americanos pagassem essa última prestação da Guerra Fria. Houve manifestações pacifistas na Europa inteira. O slogan era: "Melhor vermelho do que morto". Leia-se: a vida é mais importante que as "baboseiras" políticas.
Alguns amigos tchecoslovacos, exilados em Paris, contemplavam as passeatas estupefatos. Teriam preferido que os manifestantes gritassem: "Queremos ser vermelhos, que a URSS nos invada". Contra isso eles saberiam lutar; afinal, já tinham lutado contra os tanques soviéticos no fim da Primavera de Praga. Mas eles não conseguiam entender estes filhos do privilégio (democrático e econômico) que, simplesmente, decretavam que não colocariam suas vidas em perigo por nenhuma causa.
Ironicamente, os pacifistas, que gostariam de mitigar as inimizades, são o protótipo do que os terroristas desprezam em nossa cultura. Os homens-bomba sentem-se seguros de encarnar uma moral antiocidental e anti-capitalista justamente porque não são guiados pela moral do bem-estar e da preservação da vida. Para eles, o suicídio confirma a moralidade de sua causa: sou moral porque me sacrifico (inversamente, quem não quer se sacrificar é exemplo de imoralidade).
Opostos aos pacifistas radicais, há os guerreadores, convencidos de que a intervenção no Iraque levará as luzes ao mundo muçulmano. Uma vez suprimido o tirano Saddam Hussein, os outros cairão por contaminação, as maternidades produzirão Montesquieus e Jeffersons em série, e logo surgirão parlamentos e partidos políticos laicos. Essa mesma visão animava os europeus na hora de deixar suas colônias. Receavam que as novas elites fossem progressistas demais. Ninguém previa que os povos "liberados" fossem escolher o fundamentalismo.
Pacifistas e guerreadores são filhos de um mesmo sonho desvairado da razão ocidental. Para os guerreadores, não há diferenças culturais que possam resistir ao poder e à sedução das luzes, as quais, mesmo impostas com as armas, conquistarão os espíritos pelo mundo afora. E os pacifistas acreditam que encontraram um valor racionalmente universal por ser biológico: a vida. Ao redor disso, imaginam que produzirão a unidade de todos. Para ambos, em suma, a pretensa universalidade da razão deve garantir a paz futura entre os homens.
Os dois grupos alegam em seu favor uma faculdade subjetiva: a razão. Não estranha, portanto, que cada grupo entenda a posição do outro como um desatino subjetivo. Para os guerreadores, os pacifistas são apenas covardes. Para os pacifistas, os guerreadores são apenas cobiçosos. Ou seja, ninguém pode querer guerra para promover um sistema de governo: é apetite de lucro disfarçado. Reciprocamente, ninguém pode querer paz a não ser para proteger seu conforto e sua pele.
Resultado: nenhum diálogo, apenas o clamor dos gritos, hoje abrandado pela neve.
13 fevereiro 2003
Casamentos sem sexo
Observei o encontro entre quatro homens de meia-idade que tinham cursado a mesma universidade e não se viam desde então. Eles lembravam nostalgicamente as bebedeiras, as conversas jogadas fora, a vida de estudante.
Alguém evocou os pôsteres que decoravam as paredes dos quartos: as páginas centrais da "Playboy" e uma gigantesca imagem pornográfica que ainda estava na memória de todos. De repente, um dos quatro perguntou para os outros: "E daí, há quanto tempo vocês não se masturbam?". Desencadeou-se uma crise de riso que quase jogou os quatro no chão.
Quis entender a hilaridade e fui colocando perguntas. Aprendi que eles eram todos casados, pais orgulhosos, maridos amorosos e quase CASTOS. Foi uma surpresa para todos eles, pois cada um achava que, nesse departamento, seu caso fosse único: de fato, a vida sexual do mais ativo consistia numa transa mensal, os outros não tocavam nos corpos de suas companheiras havia meses e, num dos casos, havia anos.
Gostavam de suas parceiras, não sonhavam com aventuras ou amantes, mas o desejo sexual se fora. Quando? Depois do nascimento dos filhos? Numa crise do escritório que multiplicou a carga de trabalho? Durante uma longa permanência dos sogros no quarto de hóspedes? Sei lá. Aos próprios ouvidos deles, as explicações indicavam apenas ocasiões, valiam como desculpas.
A descoberta os deixou envergonhados. Nossa cultura aceita com facilidade que as mulheres não estejam a fim. Uma dor de cabeça, uma indisposição (quem sabe, anunciando a menstruação) ou mesmo uma recrudescência de pudor condizem com a feminilidade.
Para os homens, é o contrário: não estar a fim é uma falha da virilidade. Eles preferem, eventualmente, camuflar sua pouca disposição com esporros e exasperação. Se a companheira estiver indisposta, em vez de insistir amorosamente, é a ocasião de indignar-se e afastar-se, evitando assim encarar sua própria ausência de desejo.
Já foi uma figura clássica de casal: a mulher procura ostensivamente duas aspirinas na hora de ir para a cama, enquanto o marido se irrita e encontra, em sua irritação, uma desculpa para virar as costas e apagar a luz.
Hoje, aparece uma figura um pouco diferente. Cada vez mais, escuto mulheres que se queixam abertamente do pouco interesse de seus parceiros pelas "brincadeiras". Parece que elas se cansaram de inventar mal-estares para fornecer álibis a seus companheiros. A famosa dor de cabeça estaria se tornando masculina?
Certo, muitos homens continuam contando vantagens para os amigos da esquina, deixam pairar subentendidos nas conversas sociais, compartilham comentários salazes quando cruzam com um decote generoso ou com uma saia curta e lançam olhares oblíquos e marotos ao passar por uma sex shop. Mas esses sinais aparentes de virilidade servem para levantar poeira e esconder pudicamente o desinteresse que os aflige.
Não sou o único a verificar essa recente "preguiça" dos homens. Por exemplo, num livro recente ("The Sex-Starved Marriage", o casamento faminto de sexo), Michele Weiner Davis, terapeuta de casais americana, faz constatações parecidas, embora administre conselhos um pouco primários, desde o Viagra até passar mais tempo juntos, fazer o parceiro sentir-se importante etc. Se quisesse procurar na vida dos casais os fatores que abalam o desejo masculino, eu começaria pela infantilização: as férias em Orlando, os domingos no parque aquático e as graças de nenê em lugar de conversa (o pichuchu ainda gosta da pichachá?).
Mas a novidade é um desinteresse sexual que se situa aquém dos percalços da vida de casal. Voltemos à conversa de bar dos quatro ex-colegas de faculdade. Eles riam, perturbados, porque a pergunta sobre a masturbação juvenil lhes revelava o fato seguinte: havia tempos, eles não pensavam mais em sexo.
Ora, únicos entre os mamíferos, nós não transamos graças a estímulos simples do tipo: a fêmea está no cio e fecunda, portanto chegou a hora do desejo. Nada disso: nossa excitação depende de representações, idéias, fantasias. E as fantasias não surgem naturalmente; elas pedem um trabalho psíquico, uma dedicação, um esforço.
Talvez falte lazer para isso, mas é também possível que os homens se sintam dispensados dessa antiga tarefa por viverem, hoje, num bazar de fantasias sexuais prêt-à-porter. A cultura de massa já é nossa enciclopédia das condutas desejáveis: nela encontramos os modelos para amar, odiar, ter sucesso ou fracassar, ser heróico ou modesto. Por que não recorrer a ela para nossas necessidades sexuais?
Caricaturando apenas, a vida sexual consistiria, nesse caso, em ir para um motel cada sábado às 17h e lá, antes do "quid", procurar inspiração no vídeo pornô do dia. Certamente economizaríamos assim o tempo (exorbitante) exigido pela elaboração e manutenção de fantasias sexuais próprias. Por que não?
Há apenas um problema: liberados do dever de fantasiar durante a semana, começaríamos a achar estranho e pesado o dever do sábado. Ir para o motel por quê? Só de pensar, já dá uma dor de cabeça...
Alguém evocou os pôsteres que decoravam as paredes dos quartos: as páginas centrais da "Playboy" e uma gigantesca imagem pornográfica que ainda estava na memória de todos. De repente, um dos quatro perguntou para os outros: "E daí, há quanto tempo vocês não se masturbam?". Desencadeou-se uma crise de riso que quase jogou os quatro no chão.
Quis entender a hilaridade e fui colocando perguntas. Aprendi que eles eram todos casados, pais orgulhosos, maridos amorosos e quase CASTOS. Foi uma surpresa para todos eles, pois cada um achava que, nesse departamento, seu caso fosse único: de fato, a vida sexual do mais ativo consistia numa transa mensal, os outros não tocavam nos corpos de suas companheiras havia meses e, num dos casos, havia anos.
Gostavam de suas parceiras, não sonhavam com aventuras ou amantes, mas o desejo sexual se fora. Quando? Depois do nascimento dos filhos? Numa crise do escritório que multiplicou a carga de trabalho? Durante uma longa permanência dos sogros no quarto de hóspedes? Sei lá. Aos próprios ouvidos deles, as explicações indicavam apenas ocasiões, valiam como desculpas.
A descoberta os deixou envergonhados. Nossa cultura aceita com facilidade que as mulheres não estejam a fim. Uma dor de cabeça, uma indisposição (quem sabe, anunciando a menstruação) ou mesmo uma recrudescência de pudor condizem com a feminilidade.
Para os homens, é o contrário: não estar a fim é uma falha da virilidade. Eles preferem, eventualmente, camuflar sua pouca disposição com esporros e exasperação. Se a companheira estiver indisposta, em vez de insistir amorosamente, é a ocasião de indignar-se e afastar-se, evitando assim encarar sua própria ausência de desejo.
Já foi uma figura clássica de casal: a mulher procura ostensivamente duas aspirinas na hora de ir para a cama, enquanto o marido se irrita e encontra, em sua irritação, uma desculpa para virar as costas e apagar a luz.
Hoje, aparece uma figura um pouco diferente. Cada vez mais, escuto mulheres que se queixam abertamente do pouco interesse de seus parceiros pelas "brincadeiras". Parece que elas se cansaram de inventar mal-estares para fornecer álibis a seus companheiros. A famosa dor de cabeça estaria se tornando masculina?
Certo, muitos homens continuam contando vantagens para os amigos da esquina, deixam pairar subentendidos nas conversas sociais, compartilham comentários salazes quando cruzam com um decote generoso ou com uma saia curta e lançam olhares oblíquos e marotos ao passar por uma sex shop. Mas esses sinais aparentes de virilidade servem para levantar poeira e esconder pudicamente o desinteresse que os aflige.
Não sou o único a verificar essa recente "preguiça" dos homens. Por exemplo, num livro recente ("The Sex-Starved Marriage", o casamento faminto de sexo), Michele Weiner Davis, terapeuta de casais americana, faz constatações parecidas, embora administre conselhos um pouco primários, desde o Viagra até passar mais tempo juntos, fazer o parceiro sentir-se importante etc. Se quisesse procurar na vida dos casais os fatores que abalam o desejo masculino, eu começaria pela infantilização: as férias em Orlando, os domingos no parque aquático e as graças de nenê em lugar de conversa (o pichuchu ainda gosta da pichachá?).
Mas a novidade é um desinteresse sexual que se situa aquém dos percalços da vida de casal. Voltemos à conversa de bar dos quatro ex-colegas de faculdade. Eles riam, perturbados, porque a pergunta sobre a masturbação juvenil lhes revelava o fato seguinte: havia tempos, eles não pensavam mais em sexo.
Ora, únicos entre os mamíferos, nós não transamos graças a estímulos simples do tipo: a fêmea está no cio e fecunda, portanto chegou a hora do desejo. Nada disso: nossa excitação depende de representações, idéias, fantasias. E as fantasias não surgem naturalmente; elas pedem um trabalho psíquico, uma dedicação, um esforço.
Talvez falte lazer para isso, mas é também possível que os homens se sintam dispensados dessa antiga tarefa por viverem, hoje, num bazar de fantasias sexuais prêt-à-porter. A cultura de massa já é nossa enciclopédia das condutas desejáveis: nela encontramos os modelos para amar, odiar, ter sucesso ou fracassar, ser heróico ou modesto. Por que não recorrer a ela para nossas necessidades sexuais?
Caricaturando apenas, a vida sexual consistiria, nesse caso, em ir para um motel cada sábado às 17h e lá, antes do "quid", procurar inspiração no vídeo pornô do dia. Certamente economizaríamos assim o tempo (exorbitante) exigido pela elaboração e manutenção de fantasias sexuais próprias. Por que não?
Há apenas um problema: liberados do dever de fantasiar durante a semana, começaríamos a achar estranho e pesado o dever do sábado. Ir para o motel por quê? Só de pensar, já dá uma dor de cabeça...
06 fevereiro 2003
Deus é brasileiro
Domingo assisti a "Deus É Brasileiro", de Cacá Diegues. Na porta do cinema, por telefone, um amigo tentava me dissuadir de entrar, por princípio. Seu preconceito contra filmes brasileiros deve ser parecido com o sentimento que, na minha adolescência, em Milão, me fazia detestar o cinema italiano, sobretudo as comédias. A maioria dos filmes me apresentava uma imagem da Itália que não tinha nada a ver com minha vida e meus problemas de jovem de classe média urbana. E essa imagem me cobria de uma espécie de vergonha. Parecia-me que a cultura nacional transformava nossos atrasos em risadas e em falsa glória. Um pouco como se resistíssemos à modernização recorrendo ao grotesco de nossa miséria e apresentando-o ao mundo para que achasse graça.
Em suma, entendo o preconceito do meu amigo, mas espero que, graças a esta coluna, ele veja o filme de Cacá Diegues. Eis a história: Deus procura um santo para quem ele possa entregar as rédeas durante suas férias. Ele viaja por Pernambuco, Alagoas e Tocantins com a ajuda de um jovem borracheiro endividado e de uma moça que quer ir embora para São Paulo. Homenagem aos atores: Antônio Fagundes voltará à minha memória a cada vez que, no futuro, me endereçar a Deus, Wagner Moura tem uma carga de simpatia despachada, e Paloma Duarte é o próprio enigma feminino, entre a amorosa, a santa e a possível prostituta.
À vista do resumo, meu amigo resistirá, pretextando que não quer descobrir o Brasil num passeio pelo Nordeste. Acrescentará que tem pouca simpatia pelo ufanismo: não tolera a junção da idéia de que Deus seria brasileiro com imagens de pobreza. Deve recear a mesma coisa que eu detestava no cinema italiano da época: a transformação da miséria num pitoresco exótico que definiria o país.
Mas o filme de Cacá Diegues não é nada disso. Saí do cinema comovido e alegre, não por ter descoberto sei lá qual Brasil, mas por ter encontrado o deus certo: vi o filme como uma obra de teologia (claro, sem as aporrinhações do gênero).
O Deus brasileiro é narcisista, capaz de ternura, irascível e, sobretudo, perdido e impotente diante da complexidade do mundo. Anota num caderno as coisas tortas que ele gostaria de endireitar, mas é óbvio que são apenas detalhes: o emaranhado de dor, santidade, feiúra e bondade não deixa espaço para uma reforma total. Aliás, talvez esse emaranhado constitua, em sua complexidade, a graça do mundo.
Aparece assim uma divindade para os dias de hoje, o Deus do qual precisamos, não como recurso, mas como modelo. Pois, embora seja cheio de si, ele encarna uma qualidade da razão que está fazendo falta: a humildade.
Nos últimos tempos, somos agredidos pelas prepotências assertivas. Os debates nacionais e internacionais tornaram-se vulgares pela simplificação, que é efeito da soberba.
Exemplifico. Ouço os que dizem que o programa Fome Zero resolverá os problemas da miséria no país e no mundo, como se não fosse um gesto generoso entre outros. Também ouço os que, nos desacertos do programa e em seu valor de propaganda, encontram o argumento decisivo contra o espírito do novo governo. Ouço os que levantam o punho declarando que Lula mudará a estrutura social e econômica do país. Ouço também os que apontam para a alta dos juros e declaram que não mudará nada. Ouço os pacifistas que acreditam cegamente no poder da razão diplomática e não pegariam as armas contra monstro nenhum. Ouço também os que pedem guerra para resolver logo um conflito que, de qualquer forma, nos espreita. Ouço os que são convencidos a agir só por razões sublimes e acusam Bush de agir por interesse. Também ouço os que acreditam que os EUA sejam o porta-estandarte do Iluminismo. E não há diálogo.
Ora, quem não tem um conhecido que vocifera sua opinião antes de saber qual é o tema da conversa? Podemos generosamente reconhecer que o tal conhecido é frágil a ponto de gritar para convencer-se de que ele existe.
Mas admitimos dificilmente que esse conhecido é nossa caricatura. Opinar sem escutar nem os interlocutores nem a complexidade do mundo é esporte de massa. Narcisistas, cronicamente dependentes do olhar dos outros, somos todos frágeis. E escondemos nossa fragilidade atrás de convicções cortantes. Somos as vítimas perfeitas das sondagens de opinião: você é contra ou a favor? A resposta certa seria, quase sempre, "Não sei". Mas pouco importa a questão em pauta, a urgência é afirmar que somos alguma coisa: pertencemos aos "contra" ou aos "a favor".
Talvez o Deus de Cacá Diegues tenha descido à Terra para lembrar à gente que ele mesmo não entende quase nada de como anda o mundo e, sobretudo, não faz milagres. Nisso ele é como a gente. Mas, à diferença de nós, consegue ser narcisista e inseguro a ponto de pagar quem o elogia, sem por isso se consolar com certezas fictícias. Nisso ele merece ser Deus.
PS: Falando em milagres, houve, na segunda-feira, a entrevista de Paul Singer na Folha. Se todos conseguíssemos adotar seu estilo, o mundo seria um bocado melhor.
Em suma, entendo o preconceito do meu amigo, mas espero que, graças a esta coluna, ele veja o filme de Cacá Diegues. Eis a história: Deus procura um santo para quem ele possa entregar as rédeas durante suas férias. Ele viaja por Pernambuco, Alagoas e Tocantins com a ajuda de um jovem borracheiro endividado e de uma moça que quer ir embora para São Paulo. Homenagem aos atores: Antônio Fagundes voltará à minha memória a cada vez que, no futuro, me endereçar a Deus, Wagner Moura tem uma carga de simpatia despachada, e Paloma Duarte é o próprio enigma feminino, entre a amorosa, a santa e a possível prostituta.
À vista do resumo, meu amigo resistirá, pretextando que não quer descobrir o Brasil num passeio pelo Nordeste. Acrescentará que tem pouca simpatia pelo ufanismo: não tolera a junção da idéia de que Deus seria brasileiro com imagens de pobreza. Deve recear a mesma coisa que eu detestava no cinema italiano da época: a transformação da miséria num pitoresco exótico que definiria o país.
Mas o filme de Cacá Diegues não é nada disso. Saí do cinema comovido e alegre, não por ter descoberto sei lá qual Brasil, mas por ter encontrado o deus certo: vi o filme como uma obra de teologia (claro, sem as aporrinhações do gênero).
O Deus brasileiro é narcisista, capaz de ternura, irascível e, sobretudo, perdido e impotente diante da complexidade do mundo. Anota num caderno as coisas tortas que ele gostaria de endireitar, mas é óbvio que são apenas detalhes: o emaranhado de dor, santidade, feiúra e bondade não deixa espaço para uma reforma total. Aliás, talvez esse emaranhado constitua, em sua complexidade, a graça do mundo.
Aparece assim uma divindade para os dias de hoje, o Deus do qual precisamos, não como recurso, mas como modelo. Pois, embora seja cheio de si, ele encarna uma qualidade da razão que está fazendo falta: a humildade.
Nos últimos tempos, somos agredidos pelas prepotências assertivas. Os debates nacionais e internacionais tornaram-se vulgares pela simplificação, que é efeito da soberba.
Exemplifico. Ouço os que dizem que o programa Fome Zero resolverá os problemas da miséria no país e no mundo, como se não fosse um gesto generoso entre outros. Também ouço os que, nos desacertos do programa e em seu valor de propaganda, encontram o argumento decisivo contra o espírito do novo governo. Ouço os que levantam o punho declarando que Lula mudará a estrutura social e econômica do país. Ouço também os que apontam para a alta dos juros e declaram que não mudará nada. Ouço os pacifistas que acreditam cegamente no poder da razão diplomática e não pegariam as armas contra monstro nenhum. Ouço também os que pedem guerra para resolver logo um conflito que, de qualquer forma, nos espreita. Ouço os que são convencidos a agir só por razões sublimes e acusam Bush de agir por interesse. Também ouço os que acreditam que os EUA sejam o porta-estandarte do Iluminismo. E não há diálogo.
Ora, quem não tem um conhecido que vocifera sua opinião antes de saber qual é o tema da conversa? Podemos generosamente reconhecer que o tal conhecido é frágil a ponto de gritar para convencer-se de que ele existe.
Mas admitimos dificilmente que esse conhecido é nossa caricatura. Opinar sem escutar nem os interlocutores nem a complexidade do mundo é esporte de massa. Narcisistas, cronicamente dependentes do olhar dos outros, somos todos frágeis. E escondemos nossa fragilidade atrás de convicções cortantes. Somos as vítimas perfeitas das sondagens de opinião: você é contra ou a favor? A resposta certa seria, quase sempre, "Não sei". Mas pouco importa a questão em pauta, a urgência é afirmar que somos alguma coisa: pertencemos aos "contra" ou aos "a favor".
Talvez o Deus de Cacá Diegues tenha descido à Terra para lembrar à gente que ele mesmo não entende quase nada de como anda o mundo e, sobretudo, não faz milagres. Nisso ele é como a gente. Mas, à diferença de nós, consegue ser narcisista e inseguro a ponto de pagar quem o elogia, sem por isso se consolar com certezas fictícias. Nisso ele merece ser Deus.
PS: Falando em milagres, houve, na segunda-feira, a entrevista de Paul Singer na Folha. Se todos conseguíssemos adotar seu estilo, o mundo seria um bocado melhor.
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