Uma queixa banal e barulhenta repete que a modernidade vai para a perdição. Aliás, parece que já foi: sumiram os valores que orientavam nossos pais ou, no mínimo, nosso avós. Dizem que ficamos como baratas tontas, sem rumo e sem critérios para distinguir o bem e o mal.
Pois bem, penso o contrário. A modernidade é uma época profundamente moral, de uma maneira inédita pela forma e pela intensidade.
A novidade é que valores e princípios não são respeitáveis por sua origem. Se foi Deus quem disse ou foram os anciões que nos legaram, tanto faz: de qualquer forma, isso não basta. Cada um de nós, em seu foro íntimo, tem a responsabilidade de decidir o que é certo e o que é errado. Tarefa difícil: visto que recusamos a autoridade (divina ou tradicional) das normas, nosso julgamento é sempre concreto. Claro, adotamos princípios gerais, que são os mesmos de sempre; mas, para nós, a moralidade de um ato só pode ser decidida examinando sua complexidade efetiva.
Por exemplo, "não roubar" é um bom princípio. No entanto, como fica se alguém rouba do narcotráfico para financiar um hospital? Roubar a mercadoria de uma loja por um irresistível impulso neurótico é diferente de roubar a mesma para revendê-la na esquina, não é? Ou ainda, ser deputado e extraviar dinheiro público é menos ou mais grave do que assaltar cidadãos no farol?
Não é suficiente verificar se um ato é ou não conforme à regra instituída, ainda devemos perguntar: "O sujeito desse ato, na infindável complexidade de suas motivações e do contexto, agiu justamente ou não?".
Ora, não há como julgar os outros (suas intricadas motivações e reações) sem aceitar que eles são meus semelhantes e sem, de alguma forma, identificar-me com eles por um instante. Para julgar, preciso entender os outros e, para entendê-los, preciso me conhecer o suficiente para encontrar em mim mesmo todos (ou quase) os traços da diversidade humana.
É reconhecendo em mim os desejos (reprimidos ou não) de matar, roubar, fornicar etc. que ganho a capacidade e a autoridade para avaliar as condutas de quem, eventualmente, reprime esses mesmos desejos menos do que eu.
O interesse pela psicologia, desde a franqueza exacerbada de Montaigne até a psicanálise, passando pela introspecção romântica, é uma condição cultural necessária da moralidade moderna. Quem não investiga e não reconhece sua própria complexidade não pode avaliar a complexidade das motivações de seus semelhantes.
Claro, a especificidade da moralidade moderna atrapalha qualquer atitude normativa, a começar pela administração da Justiça: para os modernos, julgar é difícil e condenar é penoso. Pois mesmo o criminoso hediondo ganha, para nós, figura humana. E, bem aquém do hediondo, como jogar pedras na adúltera? E na mãe que não quer que sua filha de 12 anos tenha um filho?
A forma da moralidade moderna não é o veredicto, mas a pergunta. Para nós, é moral quem passa constantemente pelos impasses insolúveis de questões morais concretas. E é propriamente imoral o moralista, que declara saber de antemão o que é o bem e o que é o mal.
O moralista é imoral porque, julgando o próximo segundo um sistema de regras instituídas, ele evita o rigor da exigência moral moderna. Castigar os outros é, para ele, o melhor jeito de desconhecer seus desejos menos confessáveis. Ou seja, o moralista condena para se absolver.
E há mais: o moralista escolhe a dedo os princípios que ele reconhece e quer impor ao mundo. Como ele supõe que o funcionamento da moral seja igual ao dos códigos penais, ele presume que seja permitido tudo o que não é proibido pelas normas que ele escolheu. Com isso, a preocupação moral do moralista é seletiva.
Por exemplo, ele pode censurar e condenar a interrupção de gravidez, os métodos anticoncepcionais, o uso de células-tronco para pesquisa, a pornografia e a libertinagem e, ao mesmo tempo, assinar cheques sem fundo ou legislar em causa própria para ordenar aumentos descabidos de seu salário. Afinal, seu decálogo não diz nada explicitamente sobre malversar os bens públicos, e um cheque sem fundo não é bem roubar...
Condenando para se absolver e selecionando princípios de maneira a inocentar seus atos piores, o moralista moderno é o verdadeiro sepulcro caiado que indignava o Cristo.
Qual é a fonte de seu sucesso? Por que ocupa os púlpitos das igrejas e os corredores do poder, de Washington a Brasília?
Num mundo atormentado pela dificuldade da questão moral, o moralista nos apresenta nossa atribulada perplexidade como se não fosse uma conquista de nossa cultura, mas um sinal de fraqueza, de crise, de decadência. Logo, ele promete alívio e nos sugere o caminho da nostalgia: voltem para a antiga moral normativa, julgar será tão fácil... A troco do descanso que lhes ofereço, só deixem um dízimo na saída, ok?
Assim os (autodenominados) campeões da norma moral ganham um respeito que não merecem.
Essas reflexões são inspiradas pela eleição de Severino Cavalcanti à presidência da Câmera dos Deputados.