O novo filme de Tim Burton, "A Fantástica Fábrica de Chocolate", é delicioso. Há chocolate para todo mundo: para as crianças, para os cinéfilos (hilárias citações de clássicos do cinema) e para os adultos que têm filhos.
A história é conhecida, pois o livro homônimo, de Roald Dahl, é um grande clássico da literatura infantil (ed. Martins Fontes). Willy Wonka vive recluso e solitário em sua fábrica. Um dia, ele decide abrir as portas de seu mundo achocolatado às cinco crianças que encontrarem um convite na embalagem de uma barra Wonka. Uma das cinco ganhará um prêmio especial; as outras, digamos assim, terão o que merecem. Detalhe: na verdade, contando Willy Wonka, as crianças são seis.
A idéia de um país de guloseimas, espécie de Pasárgada onde não conheceríamos frustração alguma, é antiga (vale a pena ler "Cocanha", de Hilário Franco Júnior, Ateliê Editorial). Todos ou quase todos, no mínimo, se lembram do país de Cocanha, onde Pinóquio passa cinco meses longe da presença chata dos adultos e de outros grilos falantes. Ao fim da estada, as orelhas de Pinóquio crescem e se tornam estranhamente peludas. As crianças de Cocanha se divertem à beça, mas são cruelmente punidas: transformam-se em burros.
Na língua portuguesa, "cocanha" é o pau-de-sebo, um mastro untado em cima do qual é colocado um prêmio: tente chegar ao cume, a gente dará risadas quando você aterrissar ruidosamente sobre seu bumbum. É a moral da aventura de Pinóquio em Cocanha: as crianças, quando chegam ao país de seus sonhos (sem adultos para mandar nelas), só fazem besteiras, tornam-se bestas.
E você se lembra de "Struwwelpeter", de Heinrich Hoffmann, com aqueles desenhos terrificantes? A criança que não come a sopa acaba morta e enterrada, a que chupa os dedos é mutilada a golpes de tesoura e por aí vai. Em "Struwwelpeter" não havia Cocanha, mas a idéia era a mesma: o horror espreita as crianças que não escutam pais e adultos.
Ora, a história de Dahl, contada admiravelmente por Tim Burton, é mais sutil. As crianças descontroladas acabam mal, com um certo requinte de crueldade (à la "Pinóquio" e à la "Struwwelpeter"), mas (aqui está a diferença) elas não vão sozinhas para Cocanha (para a fábrica): elas são acompanhadas pelo adulto que mais foi e é responsável por sua educação ou falta de educação.
Em suma, a história não contrapõe os apetites infantis à sabedoria dos grandes, que deveriam domá-los; ao contrário, na "Fábrica", os marmanjos mais insuportáveis são os dignos rebentos dos adultos que os acompanham. O filme funciona como um repertório das aberrações dos adultos em sua relação com as crianças.
Há o menino gordão, filho de uma mãe que decidiu dispensar ao filho uma infinita satisfação oral, do seio à barra de chocolate. Há a menina rica, cujo pai obedece a todos os caprichos da filha. São exemplos de pais preocupados não com o bem-estar dos filhos, mas com seu próprio prazer: quem não sabe dizer "não" goza com a ilusão de sua própria onipotência. "Consigo satisfazer sempre o desejo de meus filhos, produzo filhos sem faltas e sem falhas."
Há a menina que só sonha em deixar seu nome no livro dos recordes e cuja mãe quer uma filha campeã. Há o menino obcecado por videogames e outras tecnologias eletrônicas: as queixas do pai, que não entende a metade do que o filho diz, mal escondem a admiração pelo filho que sabe mais que os adultos. São exemplos em que amar os filhos significa apenas encarregá-los de realizar nossos sonhos frustrados.
Enfim, há o próprio Willy Wonka, cujo pai (não direi como para não estragar a surpresa) queria que o filho fosse a prova da excelência da arte paterna -um pouco como se pais psicanalistas quisessem criar filhos analisados desde nenês, isentos de conflitos e neuroses, monumentos comemorativos da "competência" dos pais.
Resta Charlie. Ele, aparentemente, foi criado da maneira certa. Como? Só duas explicações (o espectador encontrará outras): 1) entre os pais de Charlie vige uma solidariedade amorosa absoluta diante das adversidades, que não são poucas -assim é transmitida uma hierarquia de valores; 2) a família de Charlie inclui (imagem inesquecível) os quatro avós, que não param de falar, deitados numa mesma cama instalada no meio da casa -Charlie não é o porta-bandeira da frustração ou da obsessão de um genitor, ele é o resultado de uma história (polifônica), que lhe deixa a tarefa de ser "ele mesmo".
Sábado passado, num cinema paulistano, na sessão em que o filme é dublado (para as crianças entenderem), esgotaram-se os cadeirões que se encaixam nos assentos e impedem que os mais miúdos sejam engolidos pelas poltronas. Uma funcionária do cinema perguntou gentilmente a uma menina já de bom tamanho se ela poderia sentar como adulta e ceder seu cadeirão a uma criança bem menor. O pai da menina se indignou: "MINHA filha NÃO vai ceder seu cadeirão. O problema é de vocês, encontrem mais cadeirões" (fabriquem mais chocolate?).
Espero que o dito pai tenha tirado algum proveito do filme.
28 julho 2005
21 julho 2005
Um tempo para pensar e um tempo para concluir
Parece lógico: para tomar um decisão certeira, é preciso pesar prós e contras e, eventualmente, entender as motivações (mais ou menos ocultas) das escolhas possíveis. Depois disso, a gente decide direito.
Freud pedia que, pela duração do tratamento, os pacientes não tomassem nenhuma decisão importante (nada de casar, mudar de emprego etc.). Mesma lógica: a psicanálise e a psicoterapia nos ofereceriam um tempo para pensar e compreender antes de concluir. No fim, tomaríamos decisões melhores.
Ora, há um problema com essa idéia. Para muitas pessoas, a dificuldade não está na falta de pensamento ou de compreensão, mas na incapacidade de agir: uma ruminação infinita as impede de concluir.
Nesses casos, o tempo para pensar, que deveria ajudar a decidir, torna-se pretexto para adiar a decisão. Por que adiar? Porque uma decisão é sempre uma perda: quem pedir a musse de chocolate não comerá os morangos com chantilly e renunciará ao que poderia acontecer se ele saísse do restaurante sem saborear sobremesa alguma. Para não se privar de tudo isso, uma solução (obviamente capenga) consiste em prolongar indefinidamente o tempo da consulta do cardápio, sem escolher.
Assim, a vontade de preservar os futuros possíveis transforma o presente numa meditação infinita sobre qual seria a ação certa.
Existem patologias que correspondem a essa procrastinação. António Damásio, em "O Erro de Descartes", descreve sujeitos que, em conseqüência de uma lesão no córtex pré-frontal, perdem-se nos argumentos que justificam suas hesitações e nem sentem a urgência de chegar a uma decisão. Sem precisar de uma lesão cerebral, os neuróticos obsessivos se comportam do mesmo jeito.
Mas não é preciso recorrer a exemplos patológicos: o tempo para pensar e compreender pode fazer estragos, por exemplo, na vida amorosa de qualquer um.
Há amores que não vingam porque fulano não consegue decidir se seria bom ou não sair da casa da mãe, sicrana se pergunta se deveria casar-se já ou dedicar primeiro uma década à sua profissão, cada um dos dois quer saber com certeza se está mesmo apaixonado ou quer certificar-se (por sei lá quais testes) de que seu parceiro do momento é mesmo o melhor possível.
Há uniões infelizes que não se desfazem porque os parceiros acham que "ainda" não entenderam direito a razão do desastre. Os casamentos que se eternizam como debates sobre "a relação" são intermináveis tempos para pensar. Em geral, a infindável tentativa de compreender antes de separar-se mantém o "conforto" de uma convivência na qual ambos podem evitar a árdua tarefa de amar e ser amados.
Tudo bem, admitamos que nem sempre o tempo para pensar e compreender seja útil para concluir e agir. Mas alguém perguntará: sem tempo para pensar e compreender, como e em nome de quais argumentos tomaríamos nossas decisões?
Malcolm Gladwell acaba de publicar "Blink" (um piscar de olhos), em que descreve os méritos e deméritos das decisões e dos atos que dispensam longas ponderações. O balanço é previsível: há situações em que a ausência de um tempo para pensar leva ao desastre e outras em que, ao contrário, desastroso é o tempo para pensar.
Mas o que importa é que Gladwell mostra de maneira convincente que: 1) grande parte de nossas decisões, mesmo quando chegam depois de um longo tempo para compreender, não são o fruto da reflexão que as antecede, mas são tomadas num último piscar de olhos, 2) as decisões tomadas num piscar de olhos não são irracionais ou "inspiradas": várias pesquisas de psicologia experimental mostram que, de fato, elas se servem de informações complexas, que são recebidas e processadas sem que o sujeito se dê conta disso.
Em suma, existe um tempo para pensar que é longo, consciente e, sobretudo, procrastinador. E existe um outro tipo de tempo para pensar, que é rápido, encoraja à ação e não é consciente.
Freud, ao tentar dar conta de fenômenos ditos paranormais, suspeitou a existência de um tipo de conhecimento que, embora eficiente, não ultrapassaria o limiar da consciência. Exemplo: eu passeio na Paulista e, de repente, sem saber por quê, penso num amigo que não vejo há anos. Um minuto mais tarde, esbarro no amigo. Premonição? Proposta de Freud: uma percepção (extrema, mas inconsciente) fez que, sem me dar conta, eu reconhecesse, numa figura distante, alguns traços que evocaram o amigo (um jeito de caminhar, de mexer os braços).
Da forma análoga, quando tomamos uma decisão num piscar de olhos, é provável que tenhamos visto, ouvido e levado em conta muito mais do que imaginamos. Resta que a decisão nos parece ser o fruto de nosso capricho, o que é incômodo: preferiríamos não ter de invocar apenas nosso desejo como razão de nossa escolha. Portanto pedimos tempo para pensar (e justificar).
O diabo é que, freqüentemente, quem quer encontrar argumentos que autorizem todas as suas escolhas transforma a vida numa série de extenuantes reflexões preliminares.
Resumo: parodiando Hamlet, o tempo para pensar nos torna, às vezes, um pouco covardes.
Freud pedia que, pela duração do tratamento, os pacientes não tomassem nenhuma decisão importante (nada de casar, mudar de emprego etc.). Mesma lógica: a psicanálise e a psicoterapia nos ofereceriam um tempo para pensar e compreender antes de concluir. No fim, tomaríamos decisões melhores.
Ora, há um problema com essa idéia. Para muitas pessoas, a dificuldade não está na falta de pensamento ou de compreensão, mas na incapacidade de agir: uma ruminação infinita as impede de concluir.
Nesses casos, o tempo para pensar, que deveria ajudar a decidir, torna-se pretexto para adiar a decisão. Por que adiar? Porque uma decisão é sempre uma perda: quem pedir a musse de chocolate não comerá os morangos com chantilly e renunciará ao que poderia acontecer se ele saísse do restaurante sem saborear sobremesa alguma. Para não se privar de tudo isso, uma solução (obviamente capenga) consiste em prolongar indefinidamente o tempo da consulta do cardápio, sem escolher.
Assim, a vontade de preservar os futuros possíveis transforma o presente numa meditação infinita sobre qual seria a ação certa.
Existem patologias que correspondem a essa procrastinação. António Damásio, em "O Erro de Descartes", descreve sujeitos que, em conseqüência de uma lesão no córtex pré-frontal, perdem-se nos argumentos que justificam suas hesitações e nem sentem a urgência de chegar a uma decisão. Sem precisar de uma lesão cerebral, os neuróticos obsessivos se comportam do mesmo jeito.
Mas não é preciso recorrer a exemplos patológicos: o tempo para pensar e compreender pode fazer estragos, por exemplo, na vida amorosa de qualquer um.
Há amores que não vingam porque fulano não consegue decidir se seria bom ou não sair da casa da mãe, sicrana se pergunta se deveria casar-se já ou dedicar primeiro uma década à sua profissão, cada um dos dois quer saber com certeza se está mesmo apaixonado ou quer certificar-se (por sei lá quais testes) de que seu parceiro do momento é mesmo o melhor possível.
Há uniões infelizes que não se desfazem porque os parceiros acham que "ainda" não entenderam direito a razão do desastre. Os casamentos que se eternizam como debates sobre "a relação" são intermináveis tempos para pensar. Em geral, a infindável tentativa de compreender antes de separar-se mantém o "conforto" de uma convivência na qual ambos podem evitar a árdua tarefa de amar e ser amados.
Tudo bem, admitamos que nem sempre o tempo para pensar e compreender seja útil para concluir e agir. Mas alguém perguntará: sem tempo para pensar e compreender, como e em nome de quais argumentos tomaríamos nossas decisões?
Malcolm Gladwell acaba de publicar "Blink" (um piscar de olhos), em que descreve os méritos e deméritos das decisões e dos atos que dispensam longas ponderações. O balanço é previsível: há situações em que a ausência de um tempo para pensar leva ao desastre e outras em que, ao contrário, desastroso é o tempo para pensar.
Mas o que importa é que Gladwell mostra de maneira convincente que: 1) grande parte de nossas decisões, mesmo quando chegam depois de um longo tempo para compreender, não são o fruto da reflexão que as antecede, mas são tomadas num último piscar de olhos, 2) as decisões tomadas num piscar de olhos não são irracionais ou "inspiradas": várias pesquisas de psicologia experimental mostram que, de fato, elas se servem de informações complexas, que são recebidas e processadas sem que o sujeito se dê conta disso.
Em suma, existe um tempo para pensar que é longo, consciente e, sobretudo, procrastinador. E existe um outro tipo de tempo para pensar, que é rápido, encoraja à ação e não é consciente.
Freud, ao tentar dar conta de fenômenos ditos paranormais, suspeitou a existência de um tipo de conhecimento que, embora eficiente, não ultrapassaria o limiar da consciência. Exemplo: eu passeio na Paulista e, de repente, sem saber por quê, penso num amigo que não vejo há anos. Um minuto mais tarde, esbarro no amigo. Premonição? Proposta de Freud: uma percepção (extrema, mas inconsciente) fez que, sem me dar conta, eu reconhecesse, numa figura distante, alguns traços que evocaram o amigo (um jeito de caminhar, de mexer os braços).
Da forma análoga, quando tomamos uma decisão num piscar de olhos, é provável que tenhamos visto, ouvido e levado em conta muito mais do que imaginamos. Resta que a decisão nos parece ser o fruto de nosso capricho, o que é incômodo: preferiríamos não ter de invocar apenas nosso desejo como razão de nossa escolha. Portanto pedimos tempo para pensar (e justificar).
O diabo é que, freqüentemente, quem quer encontrar argumentos que autorizem todas as suas escolhas transforma a vida numa série de extenuantes reflexões preliminares.
Resumo: parodiando Hamlet, o tempo para pensar nos torna, às vezes, um pouco covardes.
14 julho 2005
Londres com Edward Said
Piero Gobetti (um grande intelectual italiano, que morreu aos 25 anos das seqüelas da tortura fascista) pensava que um povo, para existir, deve ter a coragem de contar sua história como uma autobiografia. Por exemplo, o fascismo podia ser mesmo um efeito da "era dos impérios" ou uma "ofensiva do capitalismo" (assim dizia a Terceira Internacional), mas os italianos perderiam sua dignidade e seu lugar no mundo se não reconhecessem que o fascismo era, antes de mais nada, o fruto da vontade de boa parte do proletariado e das classes médias nacionais.
A idéia de Gobetti é parecida com um princípio da prática da psicanálise: somos vítimas de violências e imposições, mas só tomamos conta de nossa vida quando, ao contar nossa história, deixamos de lado a contabilidade dos golpes recebidos para dar destaque a nossas reações, a nossas cumplicidades, a nossas escolhas diante da adversidade. É dessa forma que a história se torna história da gente: autobiografia.
Desde os atentados de Nova York, a maioria dos "ocidentais" (digamos assim, por aproximação) adota pensamentos fáceis: "Alguns árabes odeiam nossos valores", "Uma cultura inimiga nos ataca" ou (versão "progressista") "Eles se vingam com razão dos horrores que lhes fizemos". Poucos se aventuram a reconhecer a história milenar de influências, paixões e fascinação mútua entre Oriente e Ocidente; poucos estão dispostos a integrar o horror de hoje na autobiografia do Ocidente.
Os "orientais" (mesma aproximação) não parecem pensar melhor. Comentando as bombas de Londres, Tariq Ali escreve (Folha, 8/7): "A principal causa da violência é a violência infligida contra os povos do mundo muçulmano". Nessa linha, os sul-americanos deveriam festejar o ataque: chegou a vingança contra "os banqueiros de Londres", que, como aprendemos com Mário de Andrade, são os primeiros grandes responsáveis por nossos males. Os de Nova York, seus herdeiros, já foram punidos, não é? (estou sendo irônico).
Ora, para os orientais, entender os atentados como vingança "lógica" contra a opressão pós-colonial é um desastre: significa viver e pensar sua história como reação forçada à iniqüidade do outro, ou seja, significa relegar árabes, palestinos e, mais geralmente, muçulmanos à função de bombardeiros vingadores, incapazes de história própria (de autobiografia).
É compreensível que os líderes da luta contra o domínio colonial concebessem a história do Oriente como uma reação. Mas se esperava que os fundamentalistas islâmicos reencontrassem a veia de uma "autobiografia" possível; não aconteceu: justificaram seu rigor religioso e cultural como uma defesa da honra que foi ferida no passado colonial, transformaram o islã numa mensagem reativa de vingança.
Nestes dias, reli o livro de Edward Said, "Orientalismo", que, na época de sua publicação (1979), parecia desvendar os bastidores culturais da colonização.
Said apresenta as visões literárias (francesas e britânicas) do Oriente (sobretudo árabe) como expressão de uma vontade imperialista de conquista. O pano de fundo é uma idéia de Michel Foucault: o saber produz poder. Em suma, o Ocidente inventou um saber literário sobre o Oriente para melhor apoderar-se de suas terras e riquezas.
Desde 1979, o livro recebeu uma série de críticas (veja-se o artigo de K. Windshuttle, www.newcriterion.com/archive/17/jan99/said.htm), mas, aquém da discussão acadêmica, fica uma pergunta: por qual estranha redução Said consegue reunir numa mesma empreitada ideológica autores radicalmente diferentes, como Joseph Conrad, Rudyard Kipling e Lawrence da Arábia?
A literatura orientalista é uma viagem da cultura ocidental para seus paraísos perdidos e para o coração de sua próprias trevas. Ela diz pouco sobre a realidade do Oriente, pois narra sonhos e pesadelos que os ocidentais carregam dentro de si: devaneios sobre mundos diferentes e longínquos.
Said desconsidera essa obviedade porque decide entender a literatura ocidental sobre o Oriente (a literatura orientalista) não como um momento das paixões ocidentais, mas como um evento na história do Oriente. Logo ele percebe a literatura orientalista como mais um abuso imposto pelos inimigos ocidentais. Nessa ótica, "As Cidades Invisíveis", de Calvino, não falariam de nosso fascínio pelo mistério da viagem, mas traçariam o mapa de uma futura invasão da China.
Na Folha de sábado passado, Thomas Friedman escreveu: "Só o mundo muçulmano é capaz de derrotar essa seita de morte" [Al Qaeda]. É claro, para acabar com a guerra em curso, o mundo ocidental deve mudar sua conduta geopolítica. Mas é preciso, sobretudo, que o Oriente consiga pensar sua história como autobiografia, se apropriar dela e, portanto, transformá-la. Em suma, é preciso que o Oriente enxergue seus males não só como efeito de injustiças sofridas mas também como fruto da vontade de suas próprias elites e de seus próprios povos.
Nessa tarefa, Tariq Ali e Said não ajudam. Ao escutá-los, o homem-bomba se tornaria metáfora do destino do mundo árabe: uma história reativa sem valor autobiográfico, uma eterna vingança, que é um suicídio cultural.
A idéia de Gobetti é parecida com um princípio da prática da psicanálise: somos vítimas de violências e imposições, mas só tomamos conta de nossa vida quando, ao contar nossa história, deixamos de lado a contabilidade dos golpes recebidos para dar destaque a nossas reações, a nossas cumplicidades, a nossas escolhas diante da adversidade. É dessa forma que a história se torna história da gente: autobiografia.
Desde os atentados de Nova York, a maioria dos "ocidentais" (digamos assim, por aproximação) adota pensamentos fáceis: "Alguns árabes odeiam nossos valores", "Uma cultura inimiga nos ataca" ou (versão "progressista") "Eles se vingam com razão dos horrores que lhes fizemos". Poucos se aventuram a reconhecer a história milenar de influências, paixões e fascinação mútua entre Oriente e Ocidente; poucos estão dispostos a integrar o horror de hoje na autobiografia do Ocidente.
Os "orientais" (mesma aproximação) não parecem pensar melhor. Comentando as bombas de Londres, Tariq Ali escreve (Folha, 8/7): "A principal causa da violência é a violência infligida contra os povos do mundo muçulmano". Nessa linha, os sul-americanos deveriam festejar o ataque: chegou a vingança contra "os banqueiros de Londres", que, como aprendemos com Mário de Andrade, são os primeiros grandes responsáveis por nossos males. Os de Nova York, seus herdeiros, já foram punidos, não é? (estou sendo irônico).
Ora, para os orientais, entender os atentados como vingança "lógica" contra a opressão pós-colonial é um desastre: significa viver e pensar sua história como reação forçada à iniqüidade do outro, ou seja, significa relegar árabes, palestinos e, mais geralmente, muçulmanos à função de bombardeiros vingadores, incapazes de história própria (de autobiografia).
É compreensível que os líderes da luta contra o domínio colonial concebessem a história do Oriente como uma reação. Mas se esperava que os fundamentalistas islâmicos reencontrassem a veia de uma "autobiografia" possível; não aconteceu: justificaram seu rigor religioso e cultural como uma defesa da honra que foi ferida no passado colonial, transformaram o islã numa mensagem reativa de vingança.
Nestes dias, reli o livro de Edward Said, "Orientalismo", que, na época de sua publicação (1979), parecia desvendar os bastidores culturais da colonização.
Said apresenta as visões literárias (francesas e britânicas) do Oriente (sobretudo árabe) como expressão de uma vontade imperialista de conquista. O pano de fundo é uma idéia de Michel Foucault: o saber produz poder. Em suma, o Ocidente inventou um saber literário sobre o Oriente para melhor apoderar-se de suas terras e riquezas.
Desde 1979, o livro recebeu uma série de críticas (veja-se o artigo de K. Windshuttle, www.newcriterion.com/archive/17/jan99/said.htm), mas, aquém da discussão acadêmica, fica uma pergunta: por qual estranha redução Said consegue reunir numa mesma empreitada ideológica autores radicalmente diferentes, como Joseph Conrad, Rudyard Kipling e Lawrence da Arábia?
A literatura orientalista é uma viagem da cultura ocidental para seus paraísos perdidos e para o coração de sua próprias trevas. Ela diz pouco sobre a realidade do Oriente, pois narra sonhos e pesadelos que os ocidentais carregam dentro de si: devaneios sobre mundos diferentes e longínquos.
Said desconsidera essa obviedade porque decide entender a literatura ocidental sobre o Oriente (a literatura orientalista) não como um momento das paixões ocidentais, mas como um evento na história do Oriente. Logo ele percebe a literatura orientalista como mais um abuso imposto pelos inimigos ocidentais. Nessa ótica, "As Cidades Invisíveis", de Calvino, não falariam de nosso fascínio pelo mistério da viagem, mas traçariam o mapa de uma futura invasão da China.
Na Folha de sábado passado, Thomas Friedman escreveu: "Só o mundo muçulmano é capaz de derrotar essa seita de morte" [Al Qaeda]. É claro, para acabar com a guerra em curso, o mundo ocidental deve mudar sua conduta geopolítica. Mas é preciso, sobretudo, que o Oriente consiga pensar sua história como autobiografia, se apropriar dela e, portanto, transformá-la. Em suma, é preciso que o Oriente enxergue seus males não só como efeito de injustiças sofridas mas também como fruto da vontade de suas próprias elites e de seus próprios povos.
Nessa tarefa, Tariq Ali e Said não ajudam. Ao escutá-los, o homem-bomba se tornaria metáfora do destino do mundo árabe: uma história reativa sem valor autobiográfico, uma eterna vingança, que é um suicídio cultural.
07 julho 2005
Roberto Jefferson e a "Guerra dos Mundos"
Na coluna da semana passada, disse que os discursos politicamente incorretos são aqueles que tratam seus ouvintes como menores ou como idiotas.
Aparentemente, esses discursos são também uma estratégia política fadada ao fracasso.
Roberto Jefferson está com a palavra, constantemente, desde sua primeira entrevista a Renata Lo Prete (Folha, 6 de junho). Claro, podemos nos perguntar se há provas de tudo o que ele avança e podemos detestar seu passado "collorido". Mas não paramos de escutá-lo. Por quê? Acontece que ele é o único que parece nos tratar como gente grande.
Os que são objeto de suas acusações travam uma luta diária, feita de desculpas, evocações de passados gloriosos e declarações de justas intenções. Eles não têm nenhuma chance de ganhar a batalha. Roberto Jefferson fala mais alto porque ele não faz apelo ao nosso entusiasmo, à nossa fidelidade a grandes convicções ou à nossa suposta grandeza moral. Sua atitude não é a de quem propõe um ideal ou se propõe como ideal (sempre improvável) para as crianças. Ele não pretende estar acima da gente, pois sua autoridade vem de suas manchas. Tampouco ele nos interpela como se fôssemos muito melhores do que realmente somos. Ele nos fala, por assim dizer, de adulto para adulto.
Triunfo do cinismo? Não exatamente. As razões do sucesso de Roberto Jefferson são as mesmas que fazem o charme do filme "Guerra dos Mundos", em suas duas versões, a de Byron Haskin (1953) e a de Spielberg, que está em cartaz.
Vi a primeira aos sete anos, em 55, pois, no cinema que freqüentava, os filmes chegavam tarde. Ficaram, na minha memória, os periscópios dos extraterrestres (que me valeram, na época, algumas noites insones) e uma sensação final de otimismo, tanto mais estranha que, no começo dos anos 50, minha cidade (Milão) se parecia com as ruínas produzidas pela invasão dos marcianos. Nestes dias, revi o filme de 53 e experimentei a mesma sensação sem saber bem por quê.
Logo, assistindo ao filme de Spielberg, que me produziu um efeito parecido, entendi a razão de meu otimismo. No filme de 53, os humanos, bem prosaicos, acham uma boa idéia instalar um quiosque de hambúrgueres ou sorvetes ao lado do objeto misterioso que acaba de cair do céu. No filme de Spielberg, o protagonista é um pai adolescente atrasado, irresponsável e egoísta. Em ambos os casos, os humanos, perseguidos e acuados, revelam-se capazes do pior: saques e vale-tudo para salvar a pele. Em ambos os casos, nossas armas não chegam a amassar a carroçaria dos extraterrestres, que nos exterminam tranqüila e metodicamente. E não aparece nenhum super-herói, nenhum presidente piloto de caça, à la "Independence Day".
Não quero estragar o prazer de quem planeja ver o filme, mas, em resumo, a conclusão é esta: os humanos não são salvos pela sua força nem pela sua inteligência nem pela duvidosa nobreza de seu caráter. O que salva o planeta e a gente é nossa sujeira.
Ambos os filmes poderiam terminar com um aviso aos invasores, canibais, vampiros e outros: cuidado, os humanos são fracos, mas eles são indigestos. Na hora de morder, desconfie de gambás e porcos-espinhos.
Comentando comigo o filme de Spielberg, um adolescente brincou: por que os extraterrestres estão sempre pelados? Se são mais avançados que a gente, como é que ainda não inventaram calças e saias? Respondi-lhe o seguinte: é por isso mesmo que eles são mais "avançados" que a gente. Se nossa ciência é capenga e não consegue produzir viagens interestelares, escudos magnéticos e raios letais, talvez seja porque nosso pensamento é parasitado por desejos reprimidos, sentimentos de culpa, inibições, preocupações com a opinião dos outros, brigas de casais e outras ninharias que nos levam, por exemplo, a cobrir algumas partes do corpo. Nossa civilização é uma vasta neurose, sem a qual, sem dúvida, seríamos muito mais racionais e eficientes.
Num tom mais sério, meu jovem interlocutor notou também que os extraterrestres da "Guerra dos Mundos" nos exterminam sem nenhum problema de consciência. Se os papéis fossem invertidos, muitos de nós se inibiriam na hora de massacrar, pois reconheceriam no corpo esverdeado dos estrangeiros não uma rã, mas um semelhante. Afinal, se as baleias e os golfinhos são dos nossos, por que não os marcianos? Com isso, meu interlocutor começou a pensar que a neurose que atrapalha nossa razão e produz nosso "subdesenvolvimento" talvez tenha lá seus aspectos positivos.
Alguns estranharam que Spielberg retomasse uma história que parece afastada de seu humanismo habitual. Nada disso: o enredo de "Guerra dos Mundos" dá prova de um humanismo exacerbado, embora propriamente pós-moderno; não celebra a excelência, o gênio e os músculos idealizados de nossa espécie, mas sugere que nossa força está em nossas misérias reais: bicho ruim não morre fácil.
Da mesma forma, Roberto Jefferson (ai do extraterrestre que tentasse comê-lo) é um personagem pós-moderno. Como acontece com os humanos da "Guerra dos Mundos", sua força é sua imperfeição.
Aparentemente, esses discursos são também uma estratégia política fadada ao fracasso.
Roberto Jefferson está com a palavra, constantemente, desde sua primeira entrevista a Renata Lo Prete (Folha, 6 de junho). Claro, podemos nos perguntar se há provas de tudo o que ele avança e podemos detestar seu passado "collorido". Mas não paramos de escutá-lo. Por quê? Acontece que ele é o único que parece nos tratar como gente grande.
Os que são objeto de suas acusações travam uma luta diária, feita de desculpas, evocações de passados gloriosos e declarações de justas intenções. Eles não têm nenhuma chance de ganhar a batalha. Roberto Jefferson fala mais alto porque ele não faz apelo ao nosso entusiasmo, à nossa fidelidade a grandes convicções ou à nossa suposta grandeza moral. Sua atitude não é a de quem propõe um ideal ou se propõe como ideal (sempre improvável) para as crianças. Ele não pretende estar acima da gente, pois sua autoridade vem de suas manchas. Tampouco ele nos interpela como se fôssemos muito melhores do que realmente somos. Ele nos fala, por assim dizer, de adulto para adulto.
Triunfo do cinismo? Não exatamente. As razões do sucesso de Roberto Jefferson são as mesmas que fazem o charme do filme "Guerra dos Mundos", em suas duas versões, a de Byron Haskin (1953) e a de Spielberg, que está em cartaz.
Vi a primeira aos sete anos, em 55, pois, no cinema que freqüentava, os filmes chegavam tarde. Ficaram, na minha memória, os periscópios dos extraterrestres (que me valeram, na época, algumas noites insones) e uma sensação final de otimismo, tanto mais estranha que, no começo dos anos 50, minha cidade (Milão) se parecia com as ruínas produzidas pela invasão dos marcianos. Nestes dias, revi o filme de 53 e experimentei a mesma sensação sem saber bem por quê.
Logo, assistindo ao filme de Spielberg, que me produziu um efeito parecido, entendi a razão de meu otimismo. No filme de 53, os humanos, bem prosaicos, acham uma boa idéia instalar um quiosque de hambúrgueres ou sorvetes ao lado do objeto misterioso que acaba de cair do céu. No filme de Spielberg, o protagonista é um pai adolescente atrasado, irresponsável e egoísta. Em ambos os casos, os humanos, perseguidos e acuados, revelam-se capazes do pior: saques e vale-tudo para salvar a pele. Em ambos os casos, nossas armas não chegam a amassar a carroçaria dos extraterrestres, que nos exterminam tranqüila e metodicamente. E não aparece nenhum super-herói, nenhum presidente piloto de caça, à la "Independence Day".
Não quero estragar o prazer de quem planeja ver o filme, mas, em resumo, a conclusão é esta: os humanos não são salvos pela sua força nem pela sua inteligência nem pela duvidosa nobreza de seu caráter. O que salva o planeta e a gente é nossa sujeira.
Ambos os filmes poderiam terminar com um aviso aos invasores, canibais, vampiros e outros: cuidado, os humanos são fracos, mas eles são indigestos. Na hora de morder, desconfie de gambás e porcos-espinhos.
Comentando comigo o filme de Spielberg, um adolescente brincou: por que os extraterrestres estão sempre pelados? Se são mais avançados que a gente, como é que ainda não inventaram calças e saias? Respondi-lhe o seguinte: é por isso mesmo que eles são mais "avançados" que a gente. Se nossa ciência é capenga e não consegue produzir viagens interestelares, escudos magnéticos e raios letais, talvez seja porque nosso pensamento é parasitado por desejos reprimidos, sentimentos de culpa, inibições, preocupações com a opinião dos outros, brigas de casais e outras ninharias que nos levam, por exemplo, a cobrir algumas partes do corpo. Nossa civilização é uma vasta neurose, sem a qual, sem dúvida, seríamos muito mais racionais e eficientes.
Num tom mais sério, meu jovem interlocutor notou também que os extraterrestres da "Guerra dos Mundos" nos exterminam sem nenhum problema de consciência. Se os papéis fossem invertidos, muitos de nós se inibiriam na hora de massacrar, pois reconheceriam no corpo esverdeado dos estrangeiros não uma rã, mas um semelhante. Afinal, se as baleias e os golfinhos são dos nossos, por que não os marcianos? Com isso, meu interlocutor começou a pensar que a neurose que atrapalha nossa razão e produz nosso "subdesenvolvimento" talvez tenha lá seus aspectos positivos.
Alguns estranharam que Spielberg retomasse uma história que parece afastada de seu humanismo habitual. Nada disso: o enredo de "Guerra dos Mundos" dá prova de um humanismo exacerbado, embora propriamente pós-moderno; não celebra a excelência, o gênio e os músculos idealizados de nossa espécie, mas sugere que nossa força está em nossas misérias reais: bicho ruim não morre fácil.
Da mesma forma, Roberto Jefferson (ai do extraterrestre que tentasse comê-lo) é um personagem pós-moderno. Como acontece com os humanos da "Guerra dos Mundos", sua força é sua imperfeição.
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