30 março 2006
O discurso dos políticos
A idéia é simples: uma renda mínima (suficiente para evitar a miséria) para todos os cidadãos, TODOS, indiscriminadamente.
Alguém dirá: o que vai fazer o presidente da Fiesp com, sei lá, R$ 300 por mês? Não seria melhor reforçar os programas de assistência, ou seja, oferecer R$ 600 a uma família em apuros e nada a quem não precisa?
Quando meu filho nasceu, em Paris, em 1981, fui beneficiado por um programa de alocações distribuídas a todas as gestantes que passassem pelos exames pré-natais recomendados. Ao receber o primeiro cheque (devia ser o equivalente de R$ 200), ficamos perplexos. O valor era inferior ao de nossas contribuições mensais (obrigatórias) ao próprio sistema do qual nos tornávamos beneficiários. Então, por quê?
Argumenta-se, por exemplo e com razão, que a distribuição de uma renda básica para todos evitaria o custo burocrático necessário para estabelecer quem precisa mesmo de ajuda.
Mas o verdadeiro interesse do projeto está no próprio princípio de uma renda que todos receberiam, simplesmente por serem cidadãos. As conseqüências mais relevantes são, ao meu ver, psicológicas.
1) Quem precisa de ajuda não deverá comprovar sua indigência, ele não estará recorrendo à "generosidade" social, apenas desfrutando de um direito. Será ajudado não por ser pobre, mas por ser cidadão.
2) O direito de todos a uma renda básica mudaria nossa maneira de conceber a comunidade na qual vivemos. Aquém das diferenças sociais e econômicas, mesmo extremas, nossa comunidade nos apareceria como um empreendimento comum, que reverte seus dividendos para todos.
Trata-se de uma prática política que afirma com força a dignidade de todos e, sobretudo, que instila em cada um a convicção de que existe uma coisa pública.
O programa valeria como uma terapia comportamental em que, mudando os atos, tenta-se modificar o estado de espírito do paciente: no caso, seriam modificados nosso entendimento e nossa experiência da coletividade. Não seria nada mal.
Somos expostos a uma massa de discursos de campanha. São palavras, logicamente, que querem nos seduzir, ou seja, são exercícios retóricos, em que o que importa é a arte da persuasão.
Uma das formas da persuasão consiste em invocar um princípio que os outros são compelidos a compartilhar. Se falo "em nome de tudo o que é sagrado e bonito...", por exemplo, sugiro que, ao discordar de mim, você estará desprezando o sagrado e o bonito. Claro, a gente não cai em qualquer armadilha, mas a persuasão trabalha às escondidas.
Ora, poucos dos discursos políticos que estamos ouvindo invocam, como princípio comum, a existência e a dignidade da coisa pública.
Há o discurso (sempre presente) que invoca genericamente a esperança: "Amanhã o Sol se despertará cantando".
Há o discurso paternalista, que invoca o amor pela autoridade de nossa infância: "Terão um pai bondoso que cuidará de vocês, meus pequenos". Em sua versão populista, ele invoca a generosidade para com o "povo sofrido". Ao ouvi-lo, sempre me lembro de uma inscrição que apareceu, em 1968, na fachada da universidade de Milão. Na época, existia um grupo "revolucionário" que se chamava "Servire il popolo" (servir ao povo). A inscrição dizia: "Eu não sirvo a ninguém, que o povo se sirva sozinho".
Há os discursos fracionários, que invocam o partido ou a classe acima do interesse público. Por exemplo, a deputada Angela Guadagnin não fez um discurso, mas dá na mesma: celebrou com passes de samba a impunidade de um colega de partido que trapaceou na contabilidade dos fundos de campanha (ela acaba de inventar, aliás, uma nova figura do Carnaval: a "trapassista").
Há os discursos que fazem apelo a princípios morais, fés religiosas, valores "tradicionais" etc. A relação disso com a gestão da coisa pública é um enigma.
Há o discurso nacionalista, que parece fazer apelo à nação como bem comum, mas, de fato, só esquenta identificações: "Ganharemos a Copa, o biocombustível é nosso, e Santos-Dumont foi o primeiro". Mas o que isso tem que ver com a gestão da coisa pública?
A ausência de uma retórica republicana é responsável, ao menos em parte, pela estranha situação atual, em que o caixa dois e o uso de fundos públicos para partido e campanha parecem "naturais" -inclusive aos olhos da gente.
Na quebra do sigilo do caseiro Francenildo Costa, espanta-me, além do abuso de poder, a suposição que a motivou: o caseiro só poderia ter sido pago por alguém. Aparentemente, nem Palocci nem seus assessores consideraram que um cidadão pudesse testemunhar por dever cívico, em nome da coisa pública.
A ausência da retórica republicana é crônica no Brasil, talvez com a exceção da Primeira República (o livro de Luiz Felipe D'Avila, "Os Virtuosos", que estou lendo, confirma essa tese).
Mas não é proibido mudar: afinal, quem está com o controle remoto na mão somos nós. Agora, cuidado: a retórica da coisa pública é chata, não dá jingle nem samba para passista.
23 março 2006
Dois tipos de homem solitário
Por sorte, acaba de estrear "A Garota da Vitrine", de Anand Tucker, que traz para o cinema "A Balconista" (Record), um breve e excelente romance de Steve Martin, mais conhecido como ator.
"A Garota da Vitrine" é um filme divertido e tocante. Só me atrapalharam um pouco as (raras) intervenções da voz em off do narrador; é como se Steve Martin (que assina também o roteiro) quisesse esclarecer a moral da história. É uma pena, pois a história tem mais "moral" do que cabe na voz em off do narrador. A literatura e o cinema são livres matrizes de sonhos, pesadelos e reflexões sobre nossa vida, e sempre acho chatos os cineastas e os romancistas que nos dizem o que deveríamos pensar dos acontecimentos que eles nos contam.
"A Garota da Vitrine" é a história da jovem Mirabelle, dividida entre o charme de Ray Porter, um homem que poderia ser seu pai (só que bem mais rico do que o dito pai), e as investidas de Jeremy, um rapaz muito desajeitado. Mas o filme é também o drama de Ray Porter, dividido entre seu amor por Mirabelle e suas "razões" para continuar solteiro.
Ora, existem várias categorias de homens solitários; destaco as duas mais gerais.
Há os que decidiram que a vida divertida é a do beija-flor e vão esvoaçando de parceira em parceira. Aqui, aparentemente, nenhum drama, apenas a comédia das juras falsas e das mentiras que têm as pernas curtas.
E há os que se apaixonam, amam, mas não conseguem se engajar numa relação e ainda menos numa convivência. Eles são (e se vivem como) personagens trágicos, num conflito insolúvel entre sua paixão amorosa e a necessidade de preservar a solidão da qual, literalmente, adoram sofrer.
Os primeiros invocam, às vezes, como razão de sua escolha, a "fraqueza" (ou seja, a força) da carne: declaram-se incapazes de resistir às tentações de uma aventura. Na verdade, seu santo protetor é Dom Juan, cujo objeto de cobiça não eram as mulheres, mas os sinais de que sua sedução funcionava: "Uma vez confirmado que a outra me deseja, não preciso levá-la até a cama, já posso inscrevê-la no meu catálogo das conquistas; é isso que importa e me dá prazer". Por causa dessa paixão pelo desejo do outro (e não pelo outro), Jean-Pierre Winter, num bonito livro de psicanálise, "Os Errantes da Carne", faz de Dom Juan um protótipo de histeria masculina.
Os segundos -os que amam, mas não se engajam- não sabem direito qual razão invocar para explicar sua conduta. Genuinamente apaixonados e amados pela parceira, eles continuam sozinhos. Ray Porter é um desses.
Por que ele não faz de Mirabelle sua companheira? Esqueça a diferença de idade, que é a racionalização da qual ele se serve para justificar seu celibato. O que sobra, em contraponto aos encontros prazerosos do casal, são as imagens de uma solidão que é, ao mesmo tempo, sofrida (com uma certa complacência com a dor produzida pela falta do outro) e esplendorosa, cinematográfica e, portanto, desejável. No filme, propositadamente, a solidão de Ray é um clichê: sozinho no seu avião particular, Ray contempla o pôr-do-sol pensando em Mirabelle ou, então, sozinho na beira da piscina de sua casa vazia, Ray olha para as estrelas e, claro, pensa em Mirabelle.
A solidão pode ser um clichê cinematográfico porque a visão de nós mesmos (nós homens) sozinhos é uma grande utopia -uma utopia cultural e subjetiva.
Em 1970, Paul Slater publicou "The Pursuit of Loneliness" (a procura da solidão). Era uma análise impiedosa dos valores da cultura moderna que transformam a solidão em ideal: autonomia, independência, vontade de preservar as potencialidades futuras, liberdade para se transformar em outra pessoa etc.
Era também um panfleto profético, que previa um mundo urbano (o dos anos 80 e 90) de "yuppies" enclausurados em apartamentos desenhados por decoradores, espaços que não tolerariam a intrusão caótica de mais um ser humano.
O livro de Slater continua valendo, mas a psicanálise pode acrescentar algo para explicar o drama dos Ray Porters e a comédia dos dom-juans. Ambos devem sua aparente e solitária "liberdade" a uma extraordinária fidelidade ao primeiríssimo amor de sua vida.
Os dom-juans, tentando seduzir todas as mulheres, reconhecem e proclamam que, de fato, só uma lhes importa, a que nunca estará no seu catálogo, por ela ser irremediavelmente a mulher de um outro: a mãe.
Os Ray Porters escolhem um caminho diferente, mas que leva para o mesmo lugar: "Visto que não posso ter a única que me importa, não terei nenhuma. E aposto que a mãe se enternecerá diante da imagem sublime de minha solidão, que é dolorosa, mas heróica por ser a prova de minha eterna fidelidade".
Sofrer de solidão pode se tornar, assim, mais prazeroso do que trocar carícias, tapas e beijos.
16 março 2006
"Mentiras Sinceras"
O título original é "Separate Lies", mentiras separadas, mas gostei da tradução brasileira. "Mentiras Sinceras" evoca o estranho balé de verdade e mentira em todo triângulo amoroso: "Minto quando escondo minha paixão por outro ou por outra? Ou, então, a verdadeira mentira é o casamento que vivo e a insatisfação que escondo?".
Ser sempre sincero não é fácil. No filme, Anne (Emily Watson) tenta ser sincera com o marido, James (Tom Wilkinson), e também com seu próprio desejo. Mas a verdade não é simples: Anne, por exemplo, não sabe bem o que a joga nos braços de William (Rupert Everett), seu amante. Quando explica ao marido o que lhe acontece, ela não invoca o amor ou a paixão; apenas consegue dizer que não sabe renunciar a William porque os encontros com ele são "easy", fáceis: o amante não lhe pede nada ou quase.
Talvez a maioria dos relacionamentos amorosos adoeçam e morram por causa disto: não porque o parceiro deixou crescer uma barriga displicente nem porque a gente estaria cansado da mesmice e a fim de novidades, mas porque, ao vivermos juntos, aos poucos, perdemos a generosidade. E a generosidade é (ou, melhor, deveria ser) o próprio do amor; ela está quase sempre presente, aliás, quando a gente se apaixona. Explico.
O amor que nasce idealiza o amado, mas essa idealização é contemplativa, não é normativa. Ou seja, pedimos, eventualmente, que o amado ou a amada estejam perto de nós, mas não que mudem e ainda menos que renunciem a serem quem eles são.
Claro, enxergamos neles algo que eles podem não ser, mas o encanto amoroso é justamente esse engano: "Seja como você é, pois é assim que descubro em você tudo o que quero, mesmo que talvez você não seja nada disso". Em suma, o amor, inicialmente, é respeitoso. Se você não é bem o que vejo em você, o engano é meu; amar consiste em querer e saber continuar se enganando.
As coisas mudam quando começamos a medir a distância entre o ser amado e o ideal que lhe penduramos nas costas. De repente, o engano nos parece ser uma artimanha do outro; é ele que deveria se emendar para voltar a ser o ideal que inspirava nosso amor.
O encanto do começo se transforma, assim, numa lista inesgotável de pequenas ou grandes exigências. Tudo o que pedimos ao ser amado (que ele ganhe mais, que seja simpático com nossos amigos, que nos acolha com um sorriso, que pare de roncar no nosso ouvido, que leia Goethe em alemão, que não coma com as mãos, que não caminhe na nossa frente na rua, que esteja em casa na hora certa) é apenas um derivativo. O que queremos é a volta do que nós mesmos perdemos: o encanto pelo qual enxergávamos nosso ideal no ser amado. Esse encanto impunha o respeito, ou seja, permitia que deixássemos o amado e a amada serem, simplesmente, eles mesmos.
A trama de "Mentiras Sinceras" é a de sempre quando, num casal, um dos dois se interessa por um terceiro. Anne ama James e James ama Anne. Mas Anne encontra William, que não tem nada de especial, mas é "easy", e ela quer viver esse amor. James sofre. Anne também sofre. Não se sabe bem como a história de Anne e James terminará (minha hipótese é que o casal resistirá).
A história acontece numa sólida burguesia (ou mesmo aristocracia) inglesa, em que a dificuldade do triângulo amoroso não é parasitada por problemas financeiros ("Se nos separarmos, quem ficará com o quê?"). Anne e James não têm filhos e não devem se preocupar com os efeitos de seus atos e sentimentos nas crianças ("Como ficarão? O que pensarão? Quanto anos de análise tudo isso lhes custará?"). O triângulo amoroso, em suma, é reduzido ao essencial.
É também graças a essa redução ao essencial que o filme pode oferecer uma extraordinária lição de amor. Anne é exemplar por ela não saber as razões de seu amor por William e por continuar amando James. James é exemplar porque sofre, mas trabalha com afinco para evitar transformar seu sofrimento em mais uma cobrança ciumenta. Ao contrário, James se serve da ocasião para reinventar sua capacidade de amar Anne com a generosidade e o respeito do amor que nasce, ou seja, sem lhe pedir que ela seja diferente do que ela é.
A lição que James aprende (e nós com ele) é que o amor, quando não é atravessado e deformado pelas piores exigências neuróticas e narcisistas, confere ao amante um dever para com o amado, mas nenhum direito sobre ele.
Jacques Lacan, um grande psicanalista francês, disse mais de uma vez (a primeira foi, talvez, em seu seminário de 56/57) que o maior sinal de amor é (deveria ser?) o dom do que a gente não tem. Algo assim: "Ofereço-lhe o que não tenho e que você não quer e não me pede". Seja qual for nossa interpretação desse aforismo, ele é certamente o oposto da miséria amorosa ordinária, em que amar significa pedir ao outro o que a gente quer. Ou, pior ainda, pedir-lhe aquela "coisa" de que a gente precisa.
09 março 2006
Os Iks, Kitty Genovese e o Engenho de Dentro
Numa madrugada, os moradores encontraram um carro com dois cadáveres retalhados; uma das cabeças estava exposta em cima do capô. Provavelmente, tratava-se de uma desova "exemplar" do tráfico. Pois bem, foi uma algazarra de zombarias e fotografias (utilidade comprovada dos celulares com câmara digital).
Propus uma primeira reflexão, que resumo brevemente. Num mundo higienista, a subjetividade é definida pelo corpo, visto que, entre os sonhos que dão sentido à vida, prevalece o ideal do bem-estar físico. É ótimo para a saúde, mas a conseqüência é que a morte do outro não é mais um espetáculo propriamente angustiante; o cadáver nos mostra o que já acreditamos: no fundo, somos apenas alguns quilos de carne e ossos.
Não conseguirei responder a todos os leitores que me escreveram, mas, encorajado pelos comentários, proponho mais duas reflexões suscitadas pelo caso do Engenho de Dentro.
Como entender, além da indiferença, o escárnio dos corpos massacrados?
1) Um antropólogo inglês, Colin Turnbull, viveu três anos (de 1964 a 1967) entre os Iks (leia: iiiks), um povo de caçadores-coletores nas montanhas de Uganda. Em princípio, os caçadores-coletores estão sempre em movimento: os homens caçam e as mulheres colhem produtos espontâneos da natureza (raízes, sementes etc.).
Os Iks eram uma sociedade tradicional com costumes de cooperação tanto na caça como na colheita, mas, a partir dos anos 50, as nações africanas começaram a cuidar de suas fronteiras, criaram parques nacionais etc. Conclusão: os Iks foram aprisionados num território limitado e inóspito.
Em "The Mountain People" (o povo da montanha), de 1972, Turnbull narra a catástrofe cultural dos Iks, assolados por fome e miséria. Foram-se solidariedade e cooperação. Os homens pararam de levar suas presas para as mulheres e as crianças se alimentarem: eles comiam sozinhos, na hora. O mesmo valia para as mulheres em sua colheita. A sociedade se desfazia no "cada um por si". Sobreviver era a tarefa imperativa de cada indivíduo, e o infortúnio do outro passou a ser, justamente, divertido: "Melhor ele do que eu".
2) Em 13 de março de 1964, Kitty Genovese, aos 29 anos, foi assassinada numa rua tranqüila de classe média, no bairro de Queens, em Nova York. Voltando do trabalho, de madrugada, ela foi esfaqueada 17 vezes por um estuprador. Seu martírio durou meia hora; repetidamente, o agressor foi embora e voltou para completar sua "obra". Por que essas interrupções? Os gritos de Kitty acordaram os vizinhos, alguns abriram a janela para apostrofar o assassino: "Deixe aquela moça em paz". Mas, entre as 38 testemunhas desse horror, ninguém desceu na rua e ninguém chamou a polícia.
A morte de Kitty teve várias conseqüências. Para começar, foi instituído um número único e simples (911, em Nova York) para contatar a polícia em caso de urgência e mudou o atendimento: nada de "Quem está falando? Seu RG? Seu CPF?", mas, ao contrário, "Senhora, fique calma, estamos a caminho, só me diga exatamente onde você está".
Os psicólogos sociais americanos se dedicaram a entender o acontecido. Poucos meses depois da morte de Kitty, reuniu-se um simpósio sobre a inércia do espectador urbano. Seis anos e muita pesquisa mais tarde, em 1970, Latané e Darley publicaram "The Unresponsive Bystander: Why Doesn't He Help?" (o espectador inerte: por que não ajuda?), que ainda é uma obra de referência.
Latané e Darley constataram alguns funcionamentos instrutivos: a "abdicação da responsabilidade" ("Isso não é comigo, é com as autoridades, com a polícia") e a "difusão da responsabilidade" ("Não preciso chamar a polícia, pois um outro certamente já se encarregou disso"). Esse segundo funcionamento cria um paradoxo curioso: quanto mais numerosos forem os espectadores, tanto menos cada um deles se sentirá compelido a intervir. Da próxima vez que você for esfaqueado, escolha um lugar com uma ou duas testemunhas no máximo.
Poucas semanas depois da morte de Kitty, Stanley Milgram, outro genial psicólogo social, publicou seu comentário na revista "The Nation". No fim do texto, ele observava que talvez a inércia dos espectadores fosse um efeito da divisão urbana. Nos anos 60, para os nova-iorquinos de classe média que foram acordados pelos gritos de Kitty, a rua e a madrugada eram uma outra cidade, se não um outro país. Uma vez fechada a porta de sua casa e até à manhã seguinte, eles consideravam (e constatavam) que o espaço urbano pertencia a um povo que não tinha nada a ver com eles, um povo de drogados, bêbados, miseráveis e criminosos. Quem circulava naquele espaço não fazia parte de sua comunidade.
É o que podem ter pensado os moradores do Engenho de Dentro: "São cadáveres do tráfico, destinados a intimidar drogados que não pagam suas dívidas. Nada a ver com a gente. Podemos festejar, pois são mortos de uma outra tribo, uma tribo inimiga".
02 março 2006
Apocalipse agora
Na Folha de 20 de fevereiro, uma ótima reportagem de Elvira Lobato me deixou perplexo e enjoado. Clovis Rossi, no dia seguinte, manifestou uma reação parecida.
Eis os fatos relatados.
O Engenho de Dentro é um bairro antigo, de classe média, da zona norte do Rio de Janeiro. Nesse bairro, numa rua tranqüila de casas antigas e calçamento de pedras, foi abandonado um Honda Fit "com uma cabeça sobre o capô, e os corpos de dois jovens negros, retalhados a machadadas, no interior do veículo".
As vítimas eram "moradores da favela Camarista Meier e teriam sido executados pelo Comando Vermelho em razão de dívidas com o tráfico". Até aqui o horror é ordinário: há sociopatas malucos nas fileiras do crime.
Mas Lobato continua: "A reação dos moradores foi tão chocante como as brutais mutilações. Vários moradores buscaram seus celulares para fotografar os corpos, e os mais jovens riram e fizeram troça dos corpos.
Os próprios moradores descreveram a algazarra à reportagem. "Eu gritei: Está nervoso e perdeu a cabeça?", relatou um motoboy que pediu para não ser identificado, enquanto um estudante admitiu ter rido e feito piada ao ver que o coração e os intestinos de uma das vítimas tinham sido retirados e expostos por seus algozes.
"Ri porque é engraçado ver um corpo todo picado", respondeu o estudante ao ser questionado sobre a causa de sua reação."
Conversei com Elvira Lobato. Soube assim qual foi a "piada" do estudante, que, sobriamente, ela não quis relatar; vendo as tripas expostas, o jovem perguntou ao cadáver (peço desculpa aos leitores sensíveis): "O que foi, cagou pelo umbigo?".
Uma moça teve a reação normal: "sentiu náuseas". Mas o que aconteceu com os outros?
Os meios de comunicação modernos nos servem uma dose inédita de corpos aos pedaços, vítimas estraçalhadas de atentados, guerras e catástrofes naturais. Será que a morte dos outros se tornou banal, indiferente à força de aparecer no noticiário? Essa explicação não me satisfaz.
Freud definiu a angústia como "sinal de alerta para o Eu". Ela nos assola quando uma experiência ameaça ou anula as mil razões que inventamos para dar uma significação à nossa existência -por exemplo, quando nos sentimos reduzidos a alguns quilos de matéria sem sentido. A náusea e o vômito (reações habituais diante de um cadáver aberto) tentam expulsar de nós aquele mesmo interior do corpo cuja visão sugere que, no fundo, atrás das histórias, das imagens e das idéias que compõem nossa subjetividade, somos só isto: carne e ossos.
No pronto-socorro de qualquer hospital, o humor sardônico e gozador é o jeito de manter afastada uma angustia que tornaria impraticável a tarefa dos médicos e da enfermagem. É possível que a zombaria do Engenho de Dentro se explique da mesma forma, como uma defesa maníaca contra a presença excessiva do intolerável.
Mas há uma outra hipótese, pela qual a zombaria não seria uma defesa contra o intolerável, mas o sinal de que, para muitos, a morte dos outros cessou de ser angustiante -e isso não por simples efeito de sua transformação em espetáculo cotidiano. A hipótese é esta: num mundo em que a subjetividade fosse cada vez menos definida por valores, sonhos ou ideais e cada vez mais confundida com o corpo, nesse mundo, a visão da carne de decepados e torturados não seria angustiante, pois ela não ameaçaria nossa subjetividade, apenas a apresentaria num arranjo inusitado, "engraçado".
Ora, já faz quase dois séculos que o higienismo de nossa cultura celebra a simples sobrevivência e o bem-estar físico como valores centrais, se não supremos. Claro, se cultuamos o bom funcionamento do corpo, detestamos a idéia de NOSSA morte. Em compensação, podemos ser insensíveis à morte DOS OUTROS; sua carne inerte e atormentada nos lembra apenas o que já "sabemos": a subjetividade se reduz ao corpo, estes quilos de matéria sangrenta são nossa última "verdade".
Mais de 1 milhão de pessoas visitaram, até hoje, "BodyWorlds", a exposição itinerante de Gunther Von Hagens (www.bodyworlds. com), que leva pelo mundo afora cadáveres esfolados e fatiados, no intento de "democratizar a anatomia". Pois é, para que essa "democratização" seja possível sem angústia, é necessário que os esfolados não ameacem nossa subjetividade, ou seja, que a gente possa se conceber e resumir pela anatomia.
Nestes dias, pude folhear o fac-símile de um maravilhoso código iluminado de 1313, "Apocalipse". As torturas dos pecadores são horrendas: corpos esfolados, serrados, martelados, fervidos, cegados. Para o homem da Idade Média, essa carne supliciada era o triunfo do sentido da vida, o juízo final em que se revelava que, justamente, o que contava não era o corpo, eram as intenções e os atos.
Para nós, os cadáveres de Von Hagens, os trucidados do Rio, os corpos ensangüentados das vítimas de guerras e atentados talvez confirmem a tese oposta: somos só isto, corpos. No crepúsculo do sentido da vida, o "apocalipse now" não é angustiante e pode ser cínico e gozador, como no filme de Coppola.