21 março 2008

Corpos idosos e eróticos



Não é mais ridículo, aos 60 ou mais, querer uma companhia de vida, um amor ou só uma transa


SE ME lembro direito, 20 anos atrás era freqüente participar de conversas animadas em que se discutia a questão seguinte: devemos ou não deixar nossos filhos e nossas filhas adolescentes dormir em casa com suas namoradas ou seus namorados?

Aparentemente, o partido do sim ganhou. Em geral, a razão que ele invocava (e ainda invoca) era a segurança: é melhor que minha filha esteja no seu quarto com o namorado do que em baladas perigosas ou, pior ainda, "brincando" no carro numa rua deserta. Também contava o fato, comprovado, de que um namoro é quase sempre uma experiência mais rica e mais "madura" do que a agitação das turminhas.

Naquelas conversas dos anos 80, eu ficava em cima do muro e torcia, de leve, pelo partido do não. Achava problemático que os adolescentes tivessem uma espécie de vida conjugal sem ter conquistado sua autonomia: para juntar-se com um parceiro ou uma parceira (a ponto de dormir na mesma cama com ele ou com ela a cada noite ou quase) seria melhor, primeiro, não precisar mais se definir como filho ou filha.

Continuo pensando que eu tinha um pouco de razão: prova disso, os inúmeros casamentos em que um dos membros do casal se queixa de que o outro continua sendo mais filho ou filha do que marido ou mulher.

Mais um detalhe. Freqüentemente, a conjugalidade precoce e protegida de dois adolescentes na casa dos pais é uma caricatura da conjugalidade adulta menos interessante: consiste mais em assistir, na cama, a filmes alugados do que em sair juntos pelo mundo ou mesmo em praticar a arte difícil de se descobrir mutuamente.

Seja como for, o partido do sim ganhou sobretudo por uma razão que não se confunde com as justificações habitualmente propostas.

Acontece que, nas últimas décadas, pela freqüência dos divórcios, a metade dos jovens viveram sua adolescência em companhia de apenas um de seus pais. E muitos desse jovens foram espectadores assíduos (e, às vezes, até confidentes) do folhetim das aventuras e dos namoros de sua mãe ou de seu pai.

E, claro, com que moral o pai ou a mãe divorciados proibiriam o filho ou a filha de levar seus amores para casa se eles mesmos não fazem diferente? Essa grande mudança na vida familiar teve dois efeitos significativos e, a bem dizer, positivos.

O primeiro é que os adultos começaram a levar mais a sério a vida amorosa de seus filhos adolescentes: as brincadeiras condescendentes (o detestável "e aí, tem namorado?") acabaram ou quase.

O segundo efeito aparece agora, 20 anos depois: à força de conviver com os namoros, os namoricos e as decepções, em suma, com as alegrias e as tristezas das paixões de seus pais divorciados, os adolescentes abandonaram a idéia (freqüente em minha geração) de que a vida amorosa e sexual dos adultos seria uma mesmice comportada -que, aliás, no caso dos pais, teria acabado de vez depois da troca mínima que foi necessária para que eles, os filhos, fossem concebidos.

Os adolescentes que tiveram essa experiência são agora jovens adultos, e seus pais são idosos. Apesar da valorização cultural do corpo jovem e sarado como se fosse o único desejável e capaz de desejar, é lógico que esses jovens adultos estejam dispostos a reconhecer que a terceira idade não corresponde a nenhuma aposentadoria do amor e do sexo, ou melhor ainda, que ela não corresponde a nenhuma "maturidade" das paixões: os "idosos" amam e desejam com o mesmo transporte e a mesma ingenuidade dos adolescentes (e, claro, dos ditos adultos).

De repente, hoje, não é ridículo ter 60 anos ou mais e propor um perfil num site de encontros amorosos na internet; não é ridículo, aos 60 ou mais, querer uma companhia para o resto da vida, um amor ou mesmo apenas uma transa.

O bonito filme de Laís Bodanzky, "Chega de Saudade", que estreou na semana passada, nos leva para um baile. Há muitos assim, pelo país afora, em que homens e mulheres da terceira idade se procuram e dançam a cada semana.

Estamos aprendendo, aos poucos: a grandeza (e a mesquinhez) do amor e do desejo não têm estação.

Mas não é apenas por isso que o filme é tocante: é porque no baile, na pista de dança, o enlace do parceiro ou da parceira revela que estes corpos, que talvez tenham chegado mancando, endurecidos pela idade e de pés inchados, são corpos bonitos, eróticos, vivos.


20 março 2008

O moralizador


Moralizador é quem impõe ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar

ELIOT SPITZER era governador do Estado de Nova York até sua resignação na semana passada.

Sua fortuna política e sua popularidade eram ligadas à sua atuação prévia como procurador agressivo e inflexível contra os crimes financeiros e contra as redes de prostituição e seus clientes.

Ora, descobriu-se que ele era freguês de uma rede de prostituição de luxo e que também recorria a artimanhas financeiras para que seus pagamentos -substanciais: US$ 80 mil (R$ 140 mil)- não fossem identificados.

Esse fato de crônica (no fundo, trivial) foi para a primeira página dos jornais do mundo inteiro -aparentemente, pela surpresa que causou: quem podia imaginar tamanha hipocrisia? Esse "espanto" geral foi, para mim, a verdadeira notícia da semana.

Começou no dia em que Spitzer deu sua primeira declaração pública, reconhecendo os fatos e a culpa, ao lado de sua mulher, impávida.

No programa "360", da CNN, o âncora, Anderson Cooper, convocou dois comentaristas. Um deles, uma mulher, psicóloga ou psiquiatra, ofereceu imediatamente uma explicação correta e óbvia. Ela disse, mais ou menos: é muito freqüente que um moralizador raivoso castigue nos outros tendências e impulsos que são os seus e que ele não consegue dominar. Cooper (que já passeou pelos piores cenários de guerra e catástrofes naturais) quase levou um susto e cortou rapidamente, acrescentando que essas eram, "claramente", suposições, hipóteses etc. Não é curioso?

Em regra, prefiro as idéias que são propostas, justamente, como hipóteses ou sugestões que cada um pode testar no seu foro íntimo.

Mas, hoje, considerar a dita declaração da especialista como uma suposição parece ser uma hipocrisia pior (e mais perigosa) do que a de Spitzer.

Afinal, depois de um bom século de psicologia e psiquiatria dinâmicas, estamos certos disto: o moralizador e o homem moral são figuras diferentes, se não opostas. 1) O homem moral se impõe padrões de conduta e tenta respeitá-los; 2) O moralizador quer impor ferozmente aos outros os padrões que ele não consegue respeitar.

Na mesma primeira declaração, Spitzer confessou, contrito, que ele não conseguira observar seus próprios padrões morais. Tudo bem: qualquer homem moral poderia confessar o mesmo. Mas ele acrescentou imediatamente que, a bem da verdade, esses eram os padrões morais de quem quer que seja.

Aqui está o problema: o padrão moral que ele se impõe, mas não consegue respeitar, é considerado por ele como um padrão que deveria valer para todos. Com que finalidade? Simples: uma vez estabelecido seu padrão como universal, ele pode, como promotor ou governador, impô-lo aos outros, ou seja, ele pode compensar suas próprias falhas com o rigor de suas exigências para com os outros.

Quem coloca ruidosamente a caça aos marajás no centro de sua vida está lidando (mal) com sua própria vontade de colocar a mão no pote de marmelada. Quem esbraveja raivosamente contra "veados" e travestis está lidando (mal) com suas fantasias homossexuais. Quem quer apedrejar adúlteros e adúlteras está lidando (mal) com seu desejo de pular a cerca ou (pior) com seu sadismo em relação a seu parceiro ou sua parceira.

O exemplo da adúltera, aliás, serve para lembrar que a psicologia dinâmica, no caso, confirma um legado da mensagem cristã: o apedrejador sempre quer apedrejar sua própria tentação ou sua culpa.

A distinção entre homem moral e moralizador tem alguns corolários relevantes. Primeiro, o moralizador é um homem moral falido: se soubesse respeitar o padrão moral que ele se impõe, ele não precisaria punir suas imperfeições nos outros. Segundo, é possível e compreensível que um homem moral tenha um espírito missionário: ele pode agir para levar os outros a adotar um padrão parecido com o seu. Mas a imposição forçada de um padrão moral não é nunca o ato de um homem moral, é sempre o ato de um moralizador.

Em geral, as sociedades em que as normas morais ganham força de lei (os Estados confessionais, por exemplo) não são regradas por uma moral comum, nem pelas aspirações de poucos e escolhidos homens exemplares, mas por moralizadores que tentam remir suas próprias falhas morais pela brutalidade do controle que eles exercem sobre os outros. A pior barbárie é isto: um mundo em que todos pagam pelos pecados de hipócritas que não se agüentam.

16 março 2008

Os filmes de Rambo retratam as variações do espírito americano nos últimos 25 anos

Rambo


"RAMBO 4" está em cartaz no Brasil desde a sexta-feira passada.
Assisti ao filme mais de um mês atrás, no dia de sua estréia nos Estados Unidos. Foi numa sala do cinema AMC, na rua 42, em Nova York, e o espetáculo era mais na platéia do que na tela: já durante as propagandas e os trailers, surgiam gritos que queriam apressar a chegada do guerreiro: "Rambooo!!".

É fácil entender por que John Rambo é um herói popular: ele é um concentrado dos devaneios do indivíduo ocidental. É o pistoleiro de "Gatilho Relâmpago": ninguém imagina quem ele é e do que ele é capaz (parecemos inócuos pais de família, mas somos tigres adormecidos, viu? Não cutuque). É Shane, o andarilho misterioso de "Os Brutos Também Amam" (e de seu remake "O Cavaleiro Solitário"), que chega, faz justiça e vai embora ferido, levando consigo o coração de mulheres e crianças. É o delegado de "Matar ou Morrer", que, sozinho ou quase, enfrenta a todos. E é também, desde o primeiro filme da série, um homem à procura de um pai. Que mais poderíamos querer da vida?

Claro, Rambo é execrado por quem gostaria que nosso repertório de sonhos fosse diferente. Além disso, os filmes de Rambo são, no mínimo, desiguais. Mas não quero falar nem da qualidade cinematográfica dos filmes nem da relação de Rambo com o protótipo do herói promovido pelo western hollywoodiano.

Há um outro aspecto da série que me interessa mais: os filmes de Rambo traçam um retrato das variações de um estado de espírito dos norte-americanos nos últimos 25 anos.

O primeiro, "First Blood" (primeiro sangue, mas, no Brasil, o título foi "Rambo"), de 1982 (inspirado num romance de 1972), expressava perfeitamente o conflito de uma nação que passava da oposição contra a guerra no Vietnã, nos anos 70, à sensação culpada de ter traído seus próprios soldados.

O segundo, de 1985, era a conseqüência imediata do primeiro: o resgate dos hipotéticos prisioneiros da mesma guerra lavava, enfim, a honra nacional. Poucos anos mais tarde, o sucesso do musical "Miss Saigon" confirmava essa peripécia espiritual: a vergonha de uma guerra impopular era substituída pela vergonha de ter abandonado amigos, aliados, presos e (essa era a novidade do musical) as crianças nascidas dos amores de guerra.

No terceiro, de 1988, Rambo já desistira de guerrear. Ele só ia à luta, no Afeganistão ocupado pelos soviéticos, para salvar o coronel Trautman, seu mentor. Mesmo na Guerra Fria "tradicional", em suma, só vale a pena lutarmos se for para defender os "nossos", ou seja, os mais próximos.

Hoje, o quarto (e último, imagino) filme de Rambo é uma espécie de conclusão lógica: intervir, meter-se na casa dos outros é impossível. Os missionários, com Bíblias e remédios, não mudam nada no horror que eles visitam. No melhor dos casos, eles satisfazem sua própria consciência culpada; no pior, eles acabam mortos. A força tampouco muda nada, ela deixa mais um rastro de sangue, e as coisas continuam iguais. Só resta voltar para casa.

No meio da atual aventura iraquiana, que não tem saída em vista e produziu, como efeito, a substituição de um horror por outro, a derradeira aventura de Rambo completa uma longa argumentação pelo isolacionismo -que é uma antiga tentação americana, crescente desde a Guerra do Vietnã.

É possível que uma vitória dos democratas nas eleições presidenciais de novembro leve os EUA a adotar a escolha final de Rambo. Seria um alívio? Pode ser. Mas talvez seja mais sábio ficar com um "veremos".

Afinal, não sabemos como seria o mundo sem o intervencionismo americano.

Na semana passada, também estreou "Jogos de Poder", de Mike Nichols. O filme narra a história verídica (e, aliás, francamente engraçada) de como se decidiu e se tornou possível a ajuda dos EUA à resistência mujahidin contra a ocupação soviética, nos anos 80. Considerando que adotamos facilmente um estilo paranóico na interpretação das decisões políticas (ou seja, imaginamos conclaves sofisticados e maquiavélicos), o filme é, ao mesmo tempo, salutar e inquietante. Saí da sala com esta impressão: no caso, aparecem duas diferenças básicas entre uma improvisação dos Parlapatões e a suposta "decisão estratégica" do governo dos EUA: 1) O espaço dos Parlapatões é na praça Roosevelt, e o governo dos EUA está em Washington; 2) Os Parlapatões têm muito menos dinheiro do que os EUA.

13 março 2008

É proibido viajar


A modernidade, que começou com a livre circulação, acaba proibindo a viagem

NO EPISÓDIO dos jovens pesquisadores brasileiros barrados em Madri, as autoridades espanholas agiram como se o cônsul-geral do Brasil contasse lorotas para facilitar o trânsito de imigrantes ilegais. O desrespeito justifica a "retaliação" brasileira.

No mais, a cada dia, as fronteiras do mundo (não só do primeiro) barram alguém que tenta viajar, sobretudo se for jovem, solteiro e sem as aparências de uma "vida feita".

Ao atravessar uma fronteira, o passaporte prova que estamos em paz com a Justiça de nosso país. As outras nações devem decidir se somos hóspedes desejáveis. Nas últimas décadas, as "condições" para ser desejável se multiplicaram. Hoje, no caso da Espanha: 1) 70 por dia de permanência planejada; 2) passagem de volta marcada; 3) reserva de hotel, já pago; 4) para quem se hospedar com parentes, formulário preenchido pelos mesmos; 5) quem se desloca para trabalhar deve dispor de um contrato assinado. Normas muito parecidas valem na maioria dos países.

O escândalo é que essas condições podem nos parecer "aceitáveis". Afinal, qualquer Estado quer proteger o emprego de seus cidadãos impedindo a chegada de imigrantes não-autorizados, não é? Pois é, Michel Foucault é mesmo o pensador para os nossos tempos: o sistema social e produtivo dominante ordena nossas vidas furtivamente, convencendo-nos de que não há opressão, mas apenas necessidades "racionais". Se achamos essas regras "aceitáveis", é porque já adotamos a idéia de que, no nosso mundo, só é legítimo ter moradia fixa e profissão estável.

As pessoas com moradia fixa podem, quando elas dispõem dos meios necessários, adquirir uma passagem de ida e volta e sair de seu lar seguindo um programa pré-estabelecido -ou seja, podem ser, ocasionalmente, turistas.

Escárnio: prefere-se que os turistas sejam otários, pagando de antemão. Há uma pousada melhor da que estava prevista? Você quer encurtar a viagem? Pena, você já pagou. Mas isso é o de menos. Importa o seguinte. A modernidade, que começou com a circulação (livre ou forçada) de todos os agentes econômicos, acaba parindo, nem mais nem menos, a proibição da viagem. Como assim? Pois é, viajar não tem nada a ver com férias num resort ou com ser transportado de cidade em cidade para que os cicerones nos mostrem as coisas "memoráveis".

Para começar, viajar é usar uma passagem só de ida.
- Quanto tempo você vai ficar?
- Não faço a menor idéia. Um dia? Três meses? Um ano?
- E você vai para onde?
- Não sei. Talvez eu curta uma pequena enseada, alugue um quarto numa casa de pescadores e fique comendo caranguejos com os pés na areia. Talvez, já no avião ou pelas ruas de Barcelona, eu me apaixone por uma holandesa, um russo ou uma argelina e os siga até o país deles, por uma semana ou um mês.

Se a paixão durar, ficarei por lá.
- E o dinheiro?
- Não sei, meu amigo. Toco violão, posso ganhar um trocado numa esquina ou no metrô. Também posso lavar pratos, ajudar na colheita, cortar lenha, lavar carros e vender pulôveres. E, se a coisa apertar, tenho endereços de parentes e conhecidos que nem sabem que estou viajando, mas não me recusarão uma sopa e um banho quente. Além disso, em Paris, quando fecha o mercado da rua Saint Antoine, sobram na calçada as frutas e as saladas que não foram vendidas; em São Paulo, Londres e Nova York, conheço dezenas de igrejas que oferecem um pão com manteiga; em Varanasi, ao meio dia, distribuem riso com curry e carne aos peregrinos.

Cem anos depois da invenção do passaporte com fotografia, chegamos nisto: uma ordem que só permite se movimentar para consumir férias ou para se relocar segundo os imperativos da produção.

As regras que barram o viajante expressam nossa própria miséria coletiva: perdemos de vez o sentimento de que a vida é uma aventura. Preferimos a vida feita à vida para fazer.
Para quem quiser ler sobre a história da documentação de viagem, uma sugestão: "Invention of the Passport: Surveillance, Citizenship and the State" (invenção do passaporte: vigilância, cidadania e o Estado), de Torpey, Chanuk e Arup (Cambridge University Press).
Para quem quiser viajar, outra sugestão: a mentira, num mundo opressivo, é uma forma aceitável de resistência.

08 março 2008

Batalha de mitos: casamento ou liberdade?



Em 1973, em plena efervescência do feminismo americano, Marabel Morgan publicou um livro de conselhos às mulheres que quisessem construir relacionamentos satisfatórios ou reanimar casamentos moribundos. Chamava-se "The Total Woman" (A Mulher Total) e foi um best sel-ler. A autora propunha que as mulheres se submetessem à liderança de seus maridos e fossem sempre sexy e atenciosas. Ficou famosa a sugestão de esperar a chegada do homem, às seis da tarde, de "baby-doll" e salto alto (variando cores e modelos, pois a surpresa é a mãe do desejo).

Na época, li o livro com raiva. Seu sucesso provava que a América profunda continuava longe do espírito dos anos 60. As propostas de Morgan só podiam seduzir um público que, para nossa geração rebelde, era o protótipo da alienação. Os verdadeiros casais felizes, pensávamos, serão os que inventaremos, feitos de indivíduos que se manterão autônomos em qualquer relacionamento.

Não deu muito certo: os anos 60 não inventaram o casal feliz. Talvez as reivindicações de autonomia e de liberdade não sejam os melhores ingredientes para um bolo de casamento.
Eis que as idéias de Morgan encontram uma segunda vida no recente livro de Laura Doyle: "The Surrendered Woman" (A Mulher Rendida -ou submissa, vencida, entregue). Doyle acaba de causar sensação na imprensa americana (e brasileira: deu uma entrevista para a "Veja" no fim de janeiro), propondo 27 conselhos às mulheres para que vivam casamentos valiosos.
Como no caso de Morgan, é fácil reduzir o livro de Doyle a uma série de sugestões pitorescas que parecem feitas para suscitar piadas. Há, por exemplo, a proposta de nunca criticar o marido que está dirigindo. Imagine que ele pegue a auto-estrada na direção errada. Você, mulher, não diga nada, deixe que ele se afaste de sua destinação durante quilômetros, mas não critique, não se faça de sabida e não profira nenhum comentário sardônico.

Exagero? É possível, mas Doyle sabe muito bem qual é o pior momento de um casal: quando os cônjuges colocam o prazer de zombar, de criticar e de controlar o outro acima do que poderiam esperar do convívio harmonioso.

Marabel Morgan também sabia disso e escrevia: "O que causa a maioria dos problemas em seu casamento? Acho que o culpado é geralmente o conflito entre dois egos separados... cada um gritando "eu, eu, eu".".

Moral da história: para inventar um relacionamento agradável e produtivo, o projeto de conviver deve ser mais importante do que as exigências individuais. No fundo, o que Doyle pede não é tanto que a mulher se submeta ao marido, mas que ela se submeta ao bem da relação. Sem isso o casamento não passa de uma arena onde dois indivíduos gostam de se pegar.

A maioria das pessoas que se queixam de sua vida de casal não está disposta a sacrificar quase nada para que a relação funcione. Queixam-se, mas não querem negociar suas exigências solitárias. Decida: é mais importante para você ter razão numa briga ou conviver amorosamente com o outro? É mais importante prevalecer ou desistir para que o companheirismo seja mantido?

O casamento perfeito é um grande ideal da modernidade: um sonho de felicidade amorosa, sexual e reprodutiva. Mas frequentemente esse ideal é abstrato: todos dizem que querem realizá-lo, mas poucos estão dispostos a colocar as mãos na massa.

Somos este paradoxo: sonhamos com casamentos perfeitos, mas curtimos sobretudo nossas neuroses celibatárias.

As leitoras de Doyle podem objetar: tudo bem, é necessário dedicar-se ao bem do casal, mas por que essa tarefa seria só das mulheres? Cadê os sacrifícios pedidos aos homens? Doyle responde que obviamente ambos os parceiros devem entregar as armas. Se ela se endereça às mulheres, é porque conhece bem os jeitos de elas sabotarem um casal. Os homens que encontrem seus caminhos próprios. De qualquer forma, a pergunta "por que logo eu deveria mudar antes do outro?" é sempre uma reação celibatária que seria melhor esquecer. Quem se preocupa com isso não está se preocupando com o casamento, apenas não quer perder uma competição com o parceiro. O que importa mais, enfim: o relacionamento ou a vontade de ganhar um jogo no qual quem se corrigisse primeiro perderia por humilhação?

O ideal do casamento perfeito é um mito moderno -e uma maldição, por ser um imperativo impossível de ser realizado. Ao ler Doyle, surge a suspeita de que talvez esse ideal seja perfeitamente realizável, mas com a condição de querer, ou seja, de sacrificar uma porção de nossas ambições de autonomia. O problema é que idealizamos a autonomia ainda mais loucamente do que o casamento perfeito. Em suma, sofremos de uma batalha entre mitos.

Errata: muitos leitores notaram que, na coluna da semana passada, chamei Edward Osborne Wilson, o autor de "Sociobiology", de Edmund Wilson. Nenhuma injúria: Edmund Wilson é um grande crítico literário. E confesso que admiro mais a obra de Edmund do que a de Edward. Peço vênia.