25 fevereiro 2010

Um herói americano


Adeus a um amigo que enlouqueceu pela exigência impossível de viver livre, sem amarras


EM 1967 , Diane Bond e eu nos casamos. Ficamos casados até meados dos anos 70, e não sei por que a gente se separou.
 
Dos irmãos de Diane, eu conheci Gerald quando ele viajou pela Europa, no fim de seu serviço militar na Alemanha. E conheci Debbie e James no Colorado, em 68 ou 69. Ficamos na casa de James, em Boulder, perto de Denver, e, desde então, James Bond, para mim, foi meu cunhado, e não um agente secreto.
 
De Boulder, fomos acampar, pescar e caçar pelo Parque Nacional da Rocky Mountain. Não pescamos nada que pudéssemos colocar na panela e não achamos nenhum peru selvagem. Mas o marido de Debbie, que acabava de voltar do Vietnã, matava esquilos por nada e com um ódio que a gente não entendia.
 
Também de Boulder, fomos a Cascade, perto de Colorado Springs, só para ver de fora a casa em que James, Diane e Gerald tinham passado a infância (Debbie, mais jovem, deve ter chegado quando a família já estava para se mudar). Era uma casa de madeira, encostada na montanha.
 
A família era de classe média. No Colorado, naqueles anos, isso significava comida farta, carro, e, sobretudo, um cavalo para as crianças que tivessem idade para subir na sela.
 
No começo da primavera, os cavalos eram soltos para que corressem e pastassem, livres e selvagens, pelos bosques e gramados do Parque Nacional de Pike's Peak. Depois de um certo tempo (semanas talvez), as crianças saiam à procura dos cavalos, sacudindo baldes de grãos, para que, de longe, os cavalos ouvissem.
 
Em geral, a procura levava dias, e as crianças acampavam nos bosques. Quando, enfim, os cavalos eram encontrados, eles já estavam acostumados a errar livres pela montanha, e era difícil montá-los: você baixava a cabeça agarrando o pescoço de seu cavalo, fechava os olhos e deixava o animal galopar até ele não poder mais. Aí você conseguia levá-lo de volta para casa.
 
Na semana passada, James morreu. Nos anos 70, incapaz de ficar parado, ele se afastara da mulher e dos filhos ainda pequenos e se tornara carpinteiro, marceneiro, poeta e escritor andarilho.
 
Enlouquecido pelo anseio de uma liberdade absoluta e pela cocaína, James passou 30 anos de internação em internação, psiquiátrica ou penal. No fim de cada uma dessas estadias manicomiais, ele estava mais calmo, medicado e desintoxicado.
 
Mas não durava muito. Ele recaía -na droga, é claro, mas, talvez mais grave, na instância impossível de viver sem amarra alguma.
 
Um dia, ele escreveu para Diane: "Tenho uma vocação obstinada: estou sempre preocupado em fazer o que eu quero, o que inclui a liberdade completa de estar com o pé na estrada, diante de Jack Kerouac e de Lao Tzu".
 
Como muitos de nossa geração, James acreditava que a divindade estivesse em cada canto da criação; nisso, ele era taoísta.
 
Diane, Debbie e Gerald jogaram as cinzas de James no vento de Pike's Peak.
Diane reuniu os manuscritos deixados por James. Havia poemas, o começo de um romance intitulado "VagaBond", e milhares de páginas em que aparecia uma verdade paradoxal: a liberdade pode ser uma exigência terrivelmente impiedosa.
 
Nessas páginas, estava repetida uma mesma ordem, "Quero que James Bond seja o maior cavalo de coca no mundo inteiro", assinada por qualquer figura de autoridade, do xerife Billings (da polícia de Pueblo, responsável por uma das prisões de James) ao prefeito de Houston, Texas, e a Barack Obama. "Cavalo de coca", estranha expressão, não é? Talvez, na coca e na estrada, James procurasse a liberdade absurda daquelas galopadas da infância, levando os cavalos de volta para a casa de Cascade.
 
Diane não sabia o que fazer com os escritos de James; recorreu a dois amigos índios siú, que inventaram um ritual para queimar os manuscritos. James teria apreciado; quem sabe, dispersando-se na fumaça, as palavras fossem, enfim, soltas, desatadas, como a vida que ele desejava.

É um momento difícil para os Estados Unidos, e não paro de ler americanistas (improvisados ou não) se debruçando sobre a nação dividida entre, sei lá, progressistas urbanos da Costa Leste, conservadores evangélicos do centro e do sul etc. Um conselho: se quiser entender o que são os EUA comece com a loucura libertária de James, que é o grande fundo trágico da alma americana.
Goodbye, James. Se o grande espírito permitir, a gente ainda se encontrará um dia, e subiremos galopando pelas encostas de Pike's Peak.

ccalligari@uol.com.br

18 fevereiro 2010

A lealdade das mulheres




Basta olhar as filas das visitas nos presídios para saber que lealdade não é qualidade masculina


NA TARDE de quinta-feira passada, estive no Presídio Feminino do Butantã, situado na rodovia Raposo Tavares, longe do bairro paulistano do Butantã.
 
Aconteceu assim: antes do fim de ano, Wagner Paulo da Silva, que eu não conhecia, me escreveu explicando que ele organizava um grupo de leitura regular para detentas desse presídio. O grupo (mais ou menos 25 mulheres) tinha discutido uma de minhas colunas; quem sabe eu me dispusesse a proporcionar um "encontro com o autor"?
 
Soube depois que Wagner da Silva e Durvalino Peco animam há anos esse grupo de leitura para detentas do presídio do Butantã e, agora, com o apoio do Estado de São Paulo, estendem o programa a 26 penitenciárias da região metropolitana (para isso, eles promovem, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, um curso gratuito de formação de mediadores -as inscrições já estão encerradas, mas vale a pena conferir: www.fespsp. org.br/leiturativa/).
 
Enfim, voltando das férias, liberei uma tarde para aceitar o convite e encontrar minhas leitoras. Ficamos conversando mais ou menos duas horas, e saí de lá com algumas reflexões. Eis uma delas.
 
A prisão, para as mulheres, é uma punição mais severa do que para os homens, e a causa dessa diferença é um atributo feminino.
 
Claro, há homens leais e mulheres desleais, mas, em regra, a lealdade é uma qualidade mais feminina do que masculina. Não estou pensando na fidelidade amorosa e sexual -nesse campo, homens e mulheres são capazes das mesmas "traições". Penso numa lealdade mais fundamental, que uma comparação vai explicar facilmente.
 
Em dia de visita numa penitenciária masculina, a fila de mulheres (esposas, mães, filhas, irmãs) é longa: facilmente, é mais de uma visita feminina por cada preso.
 
Em dia de visita numa penitenciária feminina, a fila é curta e, em sua grande maioria, composta pelas mães das detentas; os homens aparecem num número irrisório. Sei lá, por 700 mulheres no presídio, uma dúzia de gatos pingados visitando. Os homens se esquecem de suas companheiras assim que as portas do presídio se fecham sobre elas. Abandonada pelo companheiro ou marido, a mulher (outra prova de lealdade) prefere duvidar de si: será que o marido nunca comparece porque ela não é, nunca foi, a mulher que ele queria?
 
A deslealdade masculina aparece também quando os homens são presos; eles são bem felizes de receber a visita das mulheres que voltam a cada semana, lealmente, anos a fio, mas, com frequência, se esquecem dos filhos que deixaram fora do presídio.
 
As mulheres presas, ao contrário, só pensam nas crianças que estão lá fora (em geral, com a avó; quase nunca com o pai). E, de novo, a lealdade com as crianças as leva a duvidarem de si mesmas: no dia em que sairão do presídio, os filhos não as reconhecerão, ou então, de qualquer forma, eles já gostam de avós, vizinhas, tutores e tutoras mais do que delas -e por aí vai.
 
Facilmente, as mães detentas vivem o afastamento das crianças não como consequência da punição pelos crimes que elas cometeram, mas, bem mais sofrido, como punição por elas não "merecerem" ser mães -como se os filhos estivessem longe porque elas não souberam e não saberiam ser mães.
 
As mulheres, qualquer criminologista sabe, agem criminosamente por razões diversas das dos homens. Em regra, matam por paixão amorosa; quando traficam ou assaltam é, frequentemente, para acompanhar o parceiro. Com isso, a prisão feminina é uma espécie de pena do talião: crimes cometidos por amor são punidos pelo sumiço dos homens amados e pelo medo da perda do amor das crianças.

Na época em que trabalhei em instituições psiquiátricas fechadas, quando o expediente terminava e estava na hora de ir embora, no fim do dia, eu era acometido por uma tristeza profunda. Acabava de compartilhar um bom tempo com os que estavam lá internados, e eis que, agora, eu ia embora, para uma casa, uma companhia, o convívio dos amigos. E eles, não; eles ficavam. A tristeza era uma espécie de culpa por abandoná-los no que era, de fato, uma desolação. Pois bem, ao sair da penitenciária do Butantã, não senti nada disso, pois não havia desolação. Não teria como fazer elogio maior à direção do presídio, à equipe que lá trabalha e às detentas que encontrei, pela resiliência de sua vontade de viver.

11 fevereiro 2010

A injeção do dia depois



Você sofreu um assalto? Morfina intravenosa previne estresse pós-traumático


EM JANEIRO , o "New England Journal of Medicine" (362; 2) publicou uma pesquisa, de Holbrook e outros, que mostra o seguinte: os feridos de guerra que recebem rapidamente morfina por via intravenosa tendem a sofrer menos de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
 
Só para explicar, sofrer de TEPT significa, meses e anos depois do evento traumático, ser invadido por lembranças e pesadelos recorrentes que forçam a revivê-lo, perder-se em "flashbacks" que podem durar horas, sofrer psicológica e fisiologicamente quando se esbarra em algo que evoque um aspecto qualquer do evento, estar constantemente numa hipervigilância assustadiça e por aí vai. Quem sofre de TEPT tenta evitar estímulos associados ao trauma, a ponto de se tornar, às vezes, amnésico e, geralmente, de preferir um isolamento apático ao comércio com outras pessoas.
 
Ora, a pesquisa selecionou 696 militares feridos em combate no Iraque, para os quais eram disponíveis dados médicos detalhados.
 
Até dois anos depois do ferimento, mais ou menos um terço tinha desenvolvido um transtorno de estresse pós-traumático. Comparando o tratamento desse terço com o dos dois terços que não apresentaram TEPT, foi possível concluir que o uso de morfina no tratamento imediato de uma ferida reduz o risco de que, mais tarde, o paciente desenvolva um transtorno de estresse pós-traumático.
 
Outros analgésicos, embora suprimam a dor, não inibem o TEPT de maneira comparável com a eficácia da morfina, a qual, por ser um opioide, suprime tanto a dor física quanto a dor emocional. Com essa supressão, a memória do evento traumático não se consolida: sem aflição, a lembrança se torna fragmentária e, no fundo, trivial.
 
Inevitavelmente, a grande imprensa norte-americana (por exemplo, o "The New York Times" de 14/ 1) apressou-se a ampliar o alcance da pesquisa: se a morfina pode prevenir o TEPT porque ela evita a consolidação da lembrança do trauma, então ela pode ser usada para cada tipo de trauma -não só para feridas de guerra.
 
A lista é longa dos eventos que podem ser traumáticos e levar, às vezes, a um transtorno de estresse: agressões violentas (estupro, assalto), sequestro, encarceramento, calamidades, acidentes de carro, diagnósticos de doenças que ameaçam a vida etc. E, para que esses eventos sejam traumáticos, não é necessário ser vítima deles. É suficiente ser espectador ou, às vezes, apenas aprender que eles aconteceram.
 
Levando em conta que o TEPT é uma condição severa e invalidante (o que implica custos sociais e perdas econômicas), poderíamos administrar o fármaco preventivamente, a cada vez que alguém esbarra num evento potencialmente traumático. As farmácias seriam equipadas para injetar morfina intravenosa a quem se apresentasse imediatamente após um trauma. "Acabo de assistir a um assalto no farol"; nenhum problema: "Deite aqui e aperte o punho". Seria a injeção do dia depois, ou melhor, da hora seguinte.
 
Mas vamos mais fundo: qualquer clínico sabe que a potencialidade traumática de um evento é singular, depende de cada um de nós. Pela unicidade de nossa constituição, acontece que eu serei traumatizado pelo atropelamento de um cachorro enquanto você precisará, no mínimo, de um ser humano ou dois. Para alguém, assistir ao noticiário sobre o terremoto no Haiti pode ser traumático. Para outro, serão mais traumáticos um filme de ficção ou um romance.
 
Na ausência de um critério geral do que pode ser traumático, minha sugestão é que se instale em cada cidadão uma bomba subcutânea de morfina, ativada por um botão controlado pelo usuário. Reconhecendo situações que poderiam nos traumatizar, injetaríamos imediatamente uma dose (sem perigo; há, nessas bombas, um mecanismo que impede a hipermedicação).
 
Imagine só. Alguém me xinga no trânsito? Bomba. Meu tio entrou na UTI? Bomba. Três da manhã e nosso filho ainda não voltou? Bomba duas vezes.

O resultado seria, certamente, uma diminuição dos transtornos de estresse pós-traumático. Agora, haveria também uma diminuição generalizada da intensidade da experiência. Mas, enfim, parodiando a sabedoria dos estóicos, na falta da felicidade propriamente dita (na qual só os ingênuos ainda acreditam), quem sabe a morfina para todos nos permita viver num mundo sem excessos, tranquilo, de dores e alegrias suavemente entorpecidas.
 
Moral da história: infelizmente, viver é se machucar; para não se machucar, é sempre possível deixar de viver.

04 fevereiro 2010

A fraqueza faz a força




O ideal masculino hoje é o homem corroído ou, no mínimo, arranhado por demônios internos


NA SEMANA passada, escrevi sobre a dilacerante tristeza dos crepúsculos. Uma leitora, Júlia Hokama, perguntou-me, brincando: "Psicanalistas também sofrem de melancolia?".
 
Bom, em "Uma Mente Inquieta" (WMF Martins Fontes), Kay Redfield Jamison, uma grande psicóloga clínica, contou seu próprio calvário ao ser sacudida por seus humores variáveis, entre mania e depressão profunda. O livro ainda é, ao meu ver, a contribuição mais tocante e decisiva em matéria de transtornos bipolares. Jamison escreveu também "Touched by Fire" (tocados pelo fogo: a doença maníaco-depressiva e o temperamento artístico), em que diagnosticou como maníaco-depressivos uma série de grandes escritores, deixando-nos com a pergunta: foram escritores e grandes por causa de sua doença ou pelo esforço de ultrapassá-la pela arte?
 
Seja como for, em 1941, bem antes de Jamison, Edmund Wilson, o crítico literário, publicou "The Wound and the Bow" (a ferida e o arco). Em seis ensaios, ele mostrou como Dickens, Kipling, Wharton, Hemingway, Joyce e Casanova transformaram sua ferida mais dolorosa e central em arte, ou seja, mostrou como eles encontraram sua força em sua maior fraqueza.
Em mais um ensaio, que dá nome ao livro, Wilson aborda uma tragédia de Sófocles, "Filoctetes", que era um guerreiro grego, dono e usuário legítimo do arco e das flechas que tinham pertencido a Héracles (armas poderosíssimas).
 
À caminho de Troia, Filoctetes foi mordido por uma serpente, e sua ferida doía e fedia terrivelmente; os gregos, cansados do fedor e das lamentações do guerreiro, abandonaram-no na ilha de Lemnos.
 
Dez anos mais tarde, os mesmos gregos entenderam que, sem Filoctetes, eles não ganhariam a guerra; eles voltaram a Lemnos para pegar, ao menos, o famoso arco. Um jovem convenceu a todos de que o arco sem Filoctetes seria inútil. Enfim, Filoctetes se reintegrou na armada grega e foi um dos guerreiros escondidos no ventre do famoso cavalo de Troia.
 
Para Wilson, Filoctetes é o protótipo do herói trágico segundo Sófocles, o herói cuja força e habilidade extraordinárias são inseparáveis do fedor e da dor de uma ferida, física ou moral, que nunca sara.
 
Essa ideia, de que a força é indissociável da fraqueza e talvez, às vezes, coincida com ela, é tão antiga quanto a invenção mítica de heróis e heroínas. Aquiles não seria ninguém sem seu calcanhar, o Super-homem seria insosso sem sua sensibilidade à kryptonita etc.
 
Em particular, mesmo nos anos 1950-1970, quando Hollywood parecia preferir que seus "machos" fossem heróis sem falha ou quase, sempre apareciam Filoctetes feridos, que conquistavam a admiração dos homens e o amor das mulheres.
 
Entre as fileiras dos John Waynes, insinuava-se, sei lá, James Stewart desesperadoramente fóbico das alturas, em "Um Corpo que Cai", de Hitchcock, ou Montgomery Clift compondo um Freud atormentado, em "Freud, Além da Alma", de John Houston.
 
Esses dois tipos de herói brigavam entre si -nos corações das plateias e na realidade do set: por exemplo, durante a filmagem de "Rio Vermelho", de Howard Hawks, John Wayne e Walter Brennan manifestavam publicamente sua indignação com a "bichice" de Montgomery Clift.
 
Talvez os heróis "de uma peça só" (digamos assim) ainda prevaleçam, mas há claros sinais de que o ideal masculino da década que acaba é o do homem corroído ou, no mínimo, arranhado por seus próprios demônios internos.

Na televisão, por exemplo, a década começou com um chefão da máfia tendo que recorrer a uma psicoterapeuta ("Família Soprano", HBO) e acabou com o terapeuta de "In Treatment" (HBO), que é verossímil (e adorável, aliás) justamente por ser tão perturbado quanto seus pacientes. Além disso, tanto o herói de "The Mentalist" (Warner) quanto o de "Lie To Me" (Fox) parecem dever suas aptidões extraordinárias às feridas de seu passado. O mesmo, provavelmente, vale para "House" (Universal).

Em 2009, foi montada, em São Paulo e no Rio, uma peça de minha autoria, "O Homem da Tarja Preta" (sinto-me autorizado a mencioná-la pois ela está no fim de sua última temporada, em Salvador). Pois bem, quando eu a escrevi, cinco anos atrás, parecia-me ousado expor assim a fragilidade do "macho". Hoje, já acho que as dúvidas, os conflitos psíquicos e as fraquezas atormentadas são o equivalente da ferida de Filoctetes, ou seja, quase o fundamento da eventual força do homem contemporâneo. É um progresso, não é?