Para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos
Somos crédulos, queremos acreditar que, a cada encruzilhada, exista sempre uma saída mais malandra, pela qual nos daremos bem. Em sua maioria, as alternativas nos seduzem e funcionam, justamente, quando elas exaltam nossa falsa fé em soluções que não sejam totalmente perdedoras.
Jacques Lacan, o grande psicanalista francês, para ilustrar nossa "alienação" diante das "escolhas forçadas" (palavras dele), recorria ao exemplo do assaltante que nos mandaria decidir: "A bolsa ou a vida!".
Basta pensar um instante para constatar que a alternativa é furada, visto que, se eu decidir ficar com a bolsa, não vou perder só a vida -vou perder também a bolsa, pois o assaltante não vai deixá-la com meu cadáver.
De maneira tristemente engraçada, a outra possibilidade é igualmente furada no Brasil. Aqui, se escolhermos ficar com a vida e entregarmos a bolsa com docilidade, há uma boa chance que mesmo assim o assaltante nos mate, pegando, com a bolsa, nossa vida também.
Em suma: escolha zero. No exterior, "A bolsa ou a vida!" significa "Passa a bolsa, e ponto". E, no Brasil, considere-se sortudo que não signifique "Passe a bolsa E a vida, E ponto" -como dizem os bandidos, "Você perdeu geral".
O exemplo de "A bolsa ou a vida" sugere (com pertinência) que qualquer um que tente nos impor uma escolha forçada seja provavelmente um bandido, interessado sobretudo em afirmar e consolidar seu poder sobre nós.
A política, na segunda metade do século passado, alimentou-se de uma alternativa desse tipo, uma alternativa bandida e falsa, segundo a qual deveríamos escolher entre, de um lado, as ditas liberdades burguesas (liberdade de opinião, de culto, de ir e vir pelo mundo, de ter nossa privacidade respeitada etc.) e, do outro lado, uma nova justiça social, que acabasse com miséria e fome.
Eu mesmo já pertenci a essa bandidagem. Quando me mostravam que os países ditos socialistas esmagavam as liberdades básicas, eu respondia "E a liberdade de não morrer de fome, hein?". Como se, para se livrar da fome, renunciar às liberdades burguesas fosse o preço necessário e, portanto, aceitável, se não módico.
Isso aconteceu, entre outras coisas, porque não escutei direito ao meu pai. Giustizia e Libertá (justiça e liberdade) era o nome do movimento no qual ele se reconhecia, nos anos 1930. Era um movimento socialista, antifascista e anticomunista, para o qual justiça e liberdade não podiam constituir uma alternativa.
Em geral, quem nos diz que só teremos liberdade sem justiça é um aproveitador econômico e social (quer ser livre de perseguir seus interesses sem ter que se preocupar com os outros). E quem nos diz que só teremos justiça sem liberdade é um aproveitador político (quer que abandonemos nossas liberdades de modo que ele possa se eternizar no poder sem oposição). Essas duas espécies de aproveitadores se valem.
A alternativa "liberdade ou justiça" é tão falsa quanto "a bolsa ou a vida". Em particular, a troca da liberdade pela justiça produziu mundos sem liberdade (isso era previsto) e (isso não era) totalmente injustos, corrompidos por burocracias apenas interessadas em se manter no poder.
Ora, na ocasião da chegada ao Brasil da blogueira cubana Yoani Sánchez, houve pessoas para ressuscitar essa falsa alternativa: como pode ela criticar a falta de liberdade em Cuba, quando o regime acabou com a fome na ilha?
O fato é que, para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos.
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Nota. Muitos leitores debateram comigo por e-mail a coluna da semana
passada, "Para que serve a tortura?". Ontem, Marcelo Coelho, em sua
coluna nesta página, comentou meu texto e o tema. Anteontem, Vladimir
Safatle, na página 2 da Folha, fez a mesma coisa sem citar minha coluna (sei lá por quê). Seja como for, contribuirei ao debate na próxima quinta.