03 novembro 1997

Um silêncio barulhento

Cada escritor que se esconde deve ter suas razões para evitar a praça pública.

Mas, atrás de fobias, timidez ou filosofias orientais, também há um drama que é próprio do nosso mundo, do jeito que somos. A escolha de Salinger, Pynchon e outros eremitas aponta para uma dificuldade de nossa cultura.

No mundo ocidental moderno, apesar de restos patrimonialistas e aristocratas, se presume e se espera que cada um faça suas provas. O passado prescreve muito pouco: para decidir nossa miséria ou excelência, importam os atos dos quais nos revelaremos capazes.

Esta liberdade obrigatória não é um mar de rosas. Pois quem decide qual é o valor dos atos dos quais seremos ou não capazes? Não existem critérios canônicos como aqueles que diferenciavam a gente por nascimento. Só existe o tribunal permanente e misterioso da opinião pública. Se nossos atos ou nossas produções caem na graça do público, valem (e nós subimos). Sem isso, eles não têm valor (e nós descemos). A sociedade moderna, em suma, se diferencia segundo a reputação que cada um consegue conquistar.

Seria natural presumir, no entanto, que haja alguma relação entre nossa reputação e a qualidade de nossos atos. Por exemplo, ser um médico de valor significa ser reputado bom médico, mas isso em princípio acontece quando curamos mais pacientes do que matamos. Se formos romancistas reputados, se presume que nossos escritos tenham a qualidade intrínseca de interessar ou divertir os leitores etc.

Ora, apesar dessa presunção, um sistema social baseado na reputação acaba se transformando em um sistema de "celebrity". A expressão inglesa faz uma distinção interessante entre fama ou reputação, de um lado, e "celebrity", do outro. A fama é merecida, depende da qualidade de nossos atos; a "celebrity" pode ser puro efeito do favor público sem que o sujeito célebre e seus atos eventuais tenham outro valor do que a capacidade de produzir celebridade.

Afinal, se o alvo é a fama, os atos de um indivíduo não precisam de outra qualidade do que a capacidade de torná-lo famoso. Portanto, para a pessoa de sucesso (grande ou pequeno), permanece uma questão: será que meu valor social é efeito de minha habilidade e competência ou então é apenas a consequência de uma notoriedade abstrata e portanto não merecida?
Em uma sociedade diferenciada pela reputação, ninguém está assegurado da legitimidade de seu sucesso. A dúvida de não valer nada nos espreita, desde que seja possível levar fama sem motivo outro do que a própria sede de fama. Esta dificuldade leva a maioria a procurar incessantemente uma prova a mais de seu valor, ou seja, mais reputação (o que, evidentemente, não resolve em nada a dúvida).

Também pode levar alguns a tentar demonstrar (sobretudo para si mesmo) que seu sucesso e sua reputação são efeitos da qualidade de suas produções. Como? Por exemplo, pelo anonimato: se o autor ficar afastado do olhar público, seu sucesso deveria então depender só do interesse despertado por seus produtos. O escritor parece aqui privilegiado, pois ele não precisa aparecer. Ora, infelizmente ou não, nesta sociedade, os caminhos para conseguir valor sem celebridade são precários.
Thomas Pynchon conseguiu se tornar um romancista famoso sem nunca mostrar a cara. Há até quem suspeite que ele seja um pseudônimo. Pessoalmente, o que ele escreve me entusiasma. Mas será que seu anonimato garante (para ele mesmo) a qualidade intrínseca de seus escritos? Não está nada certo, pois poderia se pensar que sua vistosa ausência é justamente o que o torna famoso e portanto desperta interesse em seus romances.

Nos anos sessenta, um jovem autor frustrado, na Itália, quis demonstrar o arbitrário dos comitês editoriais: ele transcreveu e propôs a uma grande editora um romance de Thomas Mann. O texto foi recusado com uma série de críticas. O episódio demonstrava a incompetência dos redatores e queria denunciar o sistema de "celebrity": uma vez anônimo, Mann era recusado. Vice-versa: Thomas Mann então estava no catálogo da editora talvez não porque a gente gostasse de lê-lo, mas porque era Thomas Mann e fazia parte do cânone. Um outro caso de "celebrity"?

Salinger mostrou sua cara na época do sucesso de "O Apanhador no Campo de Centeio". Mas desde então se escondeu e, na verdade, parou até de mostrar serviço. Presume-se que esteja escrevendo ou pensando coisas incríveis. Veja-se a contradição na qual está enroscado. Se escreve, publica e tem sucesso, o favor encontrado por seus textos lhe parecerá decidido por sua fama. Portanto seu valor pessoal dependerá de sua notoriedade e não da qualidade de seus escritos. Se não escreve e publica, também não há produtos que possam ser julgados. Mas, quanto menos ele se mostra e escreve, tanto mais seu silêncio se torna barulhento: acaba produzindo uma notoriedade abstrata.

Essas contradições levam à constatação do que, nesta altura, tanto Pynchon quanto Salinger devam fazer: não têm como evadir das condições da cultura da qual somos filhos. Quanto mais eles se escondem tanto mais ficam famosos. Será que Pynchon seria objeto do mesmo culto se a gente conhecesse sua cara e endereço? Será que Salinger seria objeto da atenção da "Esquire" e da Ilustrada se não vivesse atrás de um muro?

Paradoxalmente, o esforço deliberado de se subtrair aos charmes da celebridade acaba produzindo celebridade. Conscientemente ou não, é esta uma regra social que todos conhecemos. Para ser perseguido por paparazzi é melhor sair pela porta traseira do Hotel Ritz em Paris do que pela frente. É bom também se indignar periodicamente contra o sistema de celebridade e, quem sabe, dar um soco em um fotógrafo ou quebrar um gravador ou dois.

Ou então soltar detalhes íntimos contra a difusão dos quais será bom protestar (confira a recente biografia de Lady Di escrita por Morton graças a revelações feitas por ela mesma). Ou ainda, como Salinger, dirigir carros furiosos na saída de sua casa. Escritores, produtores, artistas, sujeitos contemporâneos, ainda um esforço para aceitar as regras deste nosso (corajoso ou não) mundo novo! Até porque não têm muita saída, a não ser pela eventualidade de se tornar uma "celebrity" por recusar o sistema da celebridade.

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