A justiça é sempre de natureza política e depende do quadro social em que age |
CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha
Frequentemente nossa insatisfação com a administração da justiça se expressa da seguinte forma: a Justiça não consegue ser cega. Gostaríamos que nossos tribunais julgassem sem nenhuma consideração política.
Achamos injusto que a Justiça favoreça cidadãos de classes sociais privilegiadas. Achamos indigno que, por exemplo, no Brasil existam prisões diferenciadas para cidadãos com nível superior de estudos. Podemos achar injusto que a criminalidade de colarinho-branco seja menos severamente reprimida do que a violência desesperada da miséria. Reciprocamente, nos Estados Unidos de hoje, podemos achar injusto que o fato de se pertencer a uma minoria étnica ou social desfavorecida possa constituir uma espécie de desculpa. Assim como achávamos injusto que, no passado, pertencer à mesma minoria fosse, ao contrário, uma espécie de agravante.
Quando pensamos nos fundamentos de uma democracia moderna, imediatamente evocamos a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como uma condição não negociável. E esta exigência parece incluir a idéia de que a Justiça não deve nem pode ser expressão de vontades políticas.
Ora, Susan Estrich -advogada e professora de direito e ciência política na Universidade da Califórnia- acaba de publicar "Getting Away with Murder -How Politics is Destroying the Criminal Justice System" (Matando Impunemente -Como a Política Está Destruindo o Sistema de Justiça Criminal), Harvard University Press. O título é enganador: deixa supor que seja mais um livro preocupado com os efeitos maléficos da política na administração da Justiça. Um livro, em suma, que confirmaria tudo o que já pensamos.
Não é nada disso. Estrich constata que em uma sociedade ocidental moderna -salvo os que alimentam nostalgias para julgamentos divinos e santas inquisições- a fonte da autoridade da lei e de sua administração é a própria comunidade dos cidadãos. Ou seja, se em nossas sociedades é proibido matar, estuprar, roubar etc., isso não acontece porque essa foi a regra transmitida pelos antepassados ou por Deus. Acontece, ao contrário, por decisão política da comunidade. Idéias, valores, princípios morais e leis valem porque concordamos de alguma forma em sermos orientados e regidos por essas normas.
Esta primeira constatação, excessivamente banal, acarreta uma consequência: não faz sentido protestar contra a ingerência da política na administração da justiça, pois, em nossas sociedades, a justiça é de natureza política, já que a própria idéia do que seria justo ou não só vige graças ao acordo da comunidade política.
As imperfeições (ou pior) do sistema jurídico, portanto, não são devidas à iníqua invasão da política na esfera pretensamente purificada da lei. Não são contaminações da justiça por um corpo estranho. Ao contrário, lei e justiça são e só podem ser expressões políticas da vida social.
Um marxista não diria diferente, e acrescentaria que por isso mesmo o exercício da justiça é mais um teatro (falsamente neutro) onde se desdobra a luta entre classes. Mas uma liberal, como Estrich, acreditando nas virtudes da democracia, propõe, ao contrário, o silogismo seguinte: 1. Em uma sociedade moderna, a fonte de toda autoridade é a própria comunidade dos cidadãos; 2. O que é justo (e o que não é) depende da suposta vontade da comunidade; 3. Portanto, se a administração da justiça não funciona, isto não acontece por ela estar sendo "invadida" por considerações políticas, mas por algum fracasso da vida política da comunidade que deveria se expressar na sua capacidade de fazer justiça. Uma comunidade mais ou menos politicamente doente é incapaz de articular uma voz comum que sirva de fundamento à administração da justiça.
O problema da justiça no Brasil, por exemplo, não seria uma questão de separação insuficiente entre judiciário e legislativo ou executivo, mas uma expressão do fato de que a comunidade nacional está dividida, impedida de funcionar como comunidade. Se uma classe é privilegiada na administração da justiça, isto não manifesta sua usurpação do Judiciário, mas sim sua usurpação da comunidade.
As idéias de Estrich parecem particularmente evidentes em um sistema jurídico - como o americano - fundado na "Common Law", ou seja, onde distintamente o que tem valor de lei são em última instância as idéias compartilhadas (os "standards") da comunidade. Mas é fácil constatar que, mesmo os países de direito romano e napoleônico (como o Brasil), evoluem nesta direção por um caminho indireto, mas seguro. Pois acontece que o legislador é inevitavelmente chamado a atuar segundo os costumes comunitários.
Para medir os padrões comunitários em matéria de justiça, Estrich oferece um conceito interessante: "A pessoa razoável". Bem distinta do "ser racional", cujas ações corretas seriam decididas por princípios pretensamente deduzidos de alguma razão universal, a pessoa razoável é quem age de uma forma compatível com a comunidade e compreensível por ela. Uma comunidade (e portanto sua justiça instituída) decide o que é punível ou não, assim como o que pode ser considerado como uma circunstância atenuante ou agravante, a partir da idéia vigente da pessoa razoável.
Contrariamente ao ser racional, a pessoa razoável evolui no tempo. Por exemplo, 30 anos atrás, o homem razoável poderia aparentemente ser desculpado caso matasse sua mulher surpreendendo-a com um amante. A mulher razoável da mesma época não seria desculpada. Já hoje parece que, seja qual for seu sexo, a pessoa razoável é menos ciumenta. Mas o que mais importa é que, na evolução saudável da vida de uma democracia, a pessoa razoável deveria sobretudo se tornar cada vez mais representativa da comunidade em seu conjunto.
A pessoa razoável da Justiça americana, até os anos 60, era masculina e branca. Já hoje ela pode ser negra, hispânica, feminina. Portanto, a comunidade que achava razoável quem linchava um negro ou batia em uma mulher, pode hoje achar razoável a raiva do mesmo negro e desculpar Lorena Bobbitt, que cortou o pênis do marido. A pessoa razoável, em suma, vem a ser a unidade de medida da Justiça, se conseguir se tornar representativa do conjunto da comunidade.
Ora, as dificuldades da Justiça americana, seu vaivém às vezes cômico de decisões extremas e frequentemente compensatórias, derivam do caráter peculiar do projeto comunitário americano: compor e manter uma comunidade que reconheça e exalte todas as diferenças particulares. Os paradoxos deste projeto aparecem na administração da justiça, pois a "pessoa razoável" se torna um arlequim multicolor impossível de ser reconstituído, mesmo pela assembléia de 12 jurados. A Justiça aparece assim como o incerto teatro político de uma luta entre facções da comunidade.
No Brasil é outra história: faltam as condições básicas, materiais, de uma comunidade. As diferenças sociais fazem com que, para um adolescente filho de ministro, seja razoável atropelar, matar e omitir socorro, com a condição de que o morto seja um trabalhador passante -quando certamente não seria razoável que o dito trabalhador atropelasse e matasse um filho de ministro.
Segundo Estrich, o problema não é de má administração da justiça. Ao contrário, por nossa vida política e social, temos a justiça que merecemos.
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