14 outubro 1999

Serial killer: um ideal para os nossos tempos



Lembram "O Silêncio dos Inocentes", o filme de Jonathan Demme com Anthony Hopkins e Jodie Foster que ganhou cinco Oscar em 1992? Pois é, o psiquiatra canibal e a jovem agente do FBI estão de volta. Saiu em junho a sequência literária pelo mesmo Thomas Harris, sob o título "Hannibal"". Foi um sucesso. O filme não vai tardar.

Neste segundo volume, o dr. Hannibal Lecter se torna o verdadeiro herói da história. Já era o caso em "O Silêncio dos Inocentes", mas agora estamos mesmo autorizados: podemos enfim idealizar tranquilamente um serial killer canibal.

Cada cultura se diverte imaginando maneiras de desobedecer à lei e ao próprio pacto social. Afinal, viver em sociedade nos custa um esforço de repressão e autocontrole suficientes para que se torne engraçado sonhar com heróis que mostram um soberano desprezo para com as leis que nós respeitamos.

A coisa vale especialmente para a modernidade, que tem a tarefa impossível de conciliar as exigências da vida em sociedade com um ideal de liberdade individual. Por isso, a cultura pop moderna inevitavelmente idealiza criminosos.

Esses delinquentes de sonho (literário ou cinematográfico) são reveladores, pois eles encenam nossas esperanças de evasão.

Por exemplo, na cultura americana, há o pistoleiro do "far west" e o gângster. O pistoleiro é o herói que, no mundo selvagem da fronteira, inventa uma moral acima dos códigos - uma moral do indivíduo. Ele faz o que é justo, mesmo que não seja conforme a lei. Nisso, ele é um herói individualista clássico.

A figura do gângster nasce entre as duas guerras, tanto na realidade quanto na cultura popular. Naqueles anos difíceis de depressão econômica e invenção do imposto de renda, ele consegue ser um empreendedor de sucesso. Se torna assim, aliás, o ideal inconfessado de quem sonha com dinheiro.

Talvez o cangaceiro seja o equivalente brasileiro do caubói bandido, com a mística de uma moral individual acima da lei. Mas de fato, na cultural pop nacional, o jagunço ganha do cangaço. O jagunço é uma imagem saudosa que situa a honra na subserviência, numa sociedade fundada no favor e no clientelismo. O jagunço não é o equivalente do pistoleiro, mas do mafioso. Nele celebramos uma evasão da necessidade moderna de inventar as leis, descansando na nostálgica fidelidade a um código tradicional. Enfim, há espaço para uma história cultural do delinquente idealizado. E seria bem interessante, nesse quadro, seguir as peripécias do ideal do malandro brasileiro.

Mas hoje é dia de serial killer. Voltemos então a Hannibal Lecter. Objeto imediato de tratamentos jornalístico-literários, Ted Bundy, Jeffrey Dahmer ou outros maníacos do parque inspiram uma curiosidade que me parecia até agora psicopatológica. Assim como há leitores para a história do homem que tomava sua mulher por um chapéu, por que não haveria para alguém que sistematicamente mata, estupra ou frita e come seus semelhantes?

Ora, com a história do Dr. Lecter, o serial killer se torna pela primeira vez herói pop.
O serial killer pop (nisso, aliás, próximo ao de verdade) não conhece culpa nem remorso. Sua vontade de gozar nos termos exatos de sua fantasia está para ele acima de qualquer consideração ou incômodo moral. Ele não precisa de desculpas nem justificativas. Pois (aqui está a novidade de ""Hannibal") ele tem o bom direito de matar a vontade. De onde vem este bom direito?

Hannibal Lecter é o homem que sabe e consegue gozar plenamente a vida. Como James Bond, ele combina os vinhos certos com os pratos certos e sabe escolher carros e roupas. Mais próximo de um aristocrata do que de um emergente, não ignora o gozo estético: encanta uma platéia de eruditos com uma palestra sobre Dante e é conservador de uma preciosa coleção florentina.

Sua competência em gozar a vida estabelece para nós leitores seu direito de gozá-la livremente. Ao risco de sermos digeridos sem escrúpulos, aplaudimos, portanto, quando ele come banais mortais.

O serial killer tem tudo para ser um herói de nosso anseio de gozar sem compromissos ou perplexidades morais. Com o dr. Lecter, este ideal um pouco abjeto encontra legitimidade, pois quem sabe como gozar a vida ganha o direito de gozar dela sem estorvos.

O novo serial killer pop é uma curiosa mistura de privilégio medieval com a constatação de Veblen segundo a qual o poder moderno se mantém e confirma pelo esbanjo de riqueza e consumo. O serial killer pop, em suma, é nosso ideal monstruoso de uma classe dirigente cuja legitimidade está e se sustenta acima da lei, graças à admiração do povo.

Ou seja, quem sabe gastar merece receber nosso dízimo. Ou então, quem conhece o conforto de lençóis de linho engomados tem direito à primeira noite de nossas noivas. E quem sabe colocar a mesa, escolher o vinho e a música certa, tem mesmo direito de nos comer. Bom apetite!

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