05 julho 2001

Gorilas entre nós

Num pequeno hall, seis jovens estão dispostos num círculo. Três estão de branco, e três, de preto, intercalados, ou seja, há um de branco, um de preto etc. Constituem dois times, cada um dos quais dispõe de sua bola própria. Os times movimentam essa bola entre seus integrantes com passes rápidos. Ao mesmo tempo, o círculo inteiro dos seis jovens gira em sentido horário. Os times não lutam entre si, mas, por causa do movimento, do espaço restrito e da simultaneidade dos passes dentro dos dois times, o jogo é bem animado.
De repente, chega um gorila, na verdade, um sujeito disfarçado de gorila. Ele atravessa o círculo dos jogadores e pára no meio. Os jovens continuam jogando como se não percebessem nada. O gorila olha para você, bate furiosamente no peito, como se espera de um gorila, e sai de cena. O bicho ficou no hall durante nove segundos.

Numa experiência recente do Laboratório de Cognição Visual de Harvard (www.wjh.harvard.edu), essa cena foi mostrada em vídeo a pessoas que, antes de assistirem à fita, receberam a tarefa de contar o número de passes efetuados pelo time branco. Foi suficiente para que a metade dos participantes não notasse a passagem do gorila.

No site do laboratório, é possível ver um trecho do vídeo. Quem assistir achará incrível que alguém não note o gorila. Mas nós não somos mais sujeitos "inocentes", pois sabemos do gorila. Por isso ele catalisa nosso olhar.

A experiência (publicada em "Perception", vol. 28) é uma contribuição ao estudo da dita "cegueira por desatenção" diante de objetos visuais complexos e dinâmicos (seis jogadores, todos se movimentando etc). Aprendemos que a capacidade de perceber um objeto inesperado depende de sua similaridade com os objetos sobre os quais está concentrada a atenção: no caso, a similaridade é mínima, pois o gorila é escuro e os circunstantes devem contar os passes do time branco. Outra variável é a complexidade da tarefa imposta aos presentes: contar os passes pede bastante concentração.

Seja como for, a denominação "cegueira por desatenção" é equivocada. De fato, a cegueira é produzida por um excesso de atenção. Os sujeitos não vêem o gorila porque têm algo para fazer que é, para eles, mais importante do que observar o que acontece: devem e querem contar os passes.

Os psicoterapeutas e os psicanalistas simpatizarão com a experiência. Freud recomendava que os pacientes fossem escutados com uma atenção "flutuante", ou seja, aberta, não-focalizada -justamente para não perder a entrada dos gorilas. Ele também aconselhava que os psicanalistas não se entregassem ao furor de curar. Qualquer terapia se propõe a melhorar a vida dos pacientes, mas o anseio de sarar pode funcionar como uma atenção excessiva consagrada ao número dos passes do time branco.

Bem além do campo da psicoterapia, a experiência do laboratório de Harvard sugere uma revisão do triunfalismo das teorias, digamos assim, "ativas" do conhecimento, pelas quais a crítica e a vontade de mudar as coisas seriam os caminhos privilegiados para entender o mundo -mote: conheçam transformando.

Ora, segundo a experiência do gorila, uma percepção plena exige um olhar não-orientado e não-atarefado, ou seja, ela precisa de uma certa aceitação do mundo. Em outras palavras, é importante querer construir pontes, mas, se olharmos para o vale sempre e só com essa intenção, perderemos de vista o rio, as montanhas e até as pessoas que queremos ajudar a atravessar. Quando nos deparamos com uma análise de situações sociais, políticas ou mesmo familiares decididamente orientada por intenções reformadoras, sugiro que paremos um instante para perguntar: "Alguém viu um gorila por aqui?".

Durante as férias escolares, canso de ouvir pais receosos de que os filhos adolescentes se encontrem sem nada para fazer, desconcentrados. Gostariam de que seus rebentos fossem sempre atarefados, sem tempo para vagabundear. Entendo por quê: uma das figuras ideais do sucesso é o sujeito ocupadíssimo e focadíssimo. Não por acaso o sofrimento psíquico é hoje frequentemente resumido segundo duas vertentes principais: a depressão e a dificuldade de concentrar-se, o dito Attention Deficit Disorder (ADD). Essas categorias são exatamente o inverso da figura que mencionei acima: o deprimido não se ocupa o suficiente, e o sujeito com déficit de atenção não focaliza. Nos termos da experiência de Harvard, o deprimido acharia que não vale a pena contar esses passes, e o sujeito com déficit de atenção não se concentraria o suficiente para contar. Com isso eles certamente enxergariam o gorila.

O sujeito ideal, no fim do vídeo, mostrará a conta certa, orgulhoso e convencido de responder às expectativas que foram depositadas nele.

Infelizmente, a metade desses sujeitos prestativos, por mostrarem serviço, não verá o gorila.
Entretanto talvez ninguém esteja a fim mesmo de reparar nos eventuais gorilas que circulam no meio da gente

3 comentários:

  1. Muito bom o post, foi publicado ate no gizmodo na materia relacionada no link: http://gizmodo.com.br/conteudo/como-e-que-ninguem-viu-este-anel-gigantesco-no-sistema-solar-ate-agora

    Parabens!

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  2. PS: sei que o comentario nao é lido pelo adm (ou seja la quem for), postei para os leitores :D

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  3. Só para constar.
    Acho que o sujeito ideal, no final do video, além de mostrar a conta certa, deveria ver o gorila.
    Temos que ser o cupados e focados, mas não podemos esquecer o mundo a nossa volta.

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