Converso com um garoto de 16 anos e com sua mãe, exasperada. O garoto decidiu mudar de estilo. Jogou fora todas as suas roupas folgadas, sem perguntar isso, para prevenir uma eventual hesitação dos pais na hora de financiar a troca de vestuário.
Agora, ele quer calças estreitas e camisetas justas. O problema é que uma cena parecida já aconteceu um ano atrás. Naquela ocasião, a roupa apertada foi para o lixo -substituída por calças e camisetas que pareciam velas mestras.
A mãe: "Por que mudar, assim, de repente?". O garoto: "Agora todo o mundo que é legal se veste assim". A mãe, irritadíssima: "Você não deveria ser você mesmo? Ter um estilo seu, sem preocupar-se com os outros?".
É fácil simpatizar com a mãe, embora não saibamos muito bem o que é "ser você mesmo". De qualquer forma, concordemos: não é bom estar sob o domínio do que pensam os outros. Seja você mesmo, livremente, escute e respeite seus impulsos mais singulares: essa é uma das regras preferidas da modernidade. Uma outra regra diz, ao contrário: preocupe-se bastante com o olhar dos outros, pois, nesse mundo, todos os cargos são eleitorais ou seja, cada um deve seu lugar à aprovação que encontra e suscita. O garoto, mudando de estilo, busca conciliar as duas regras. Ele renova seu aspecto para ser mais "ele mesmo". Mas precisa da aprovação do grupo das calças justas: sem o olhar dos outros, seu novo "ele mesmo" não vale nada.
Após a conversa (que aconteceu em Nova York), fui ao Metropolitan Museum, para ver a exposição "Beleza Extrema: O Corpo Modificado" (apresentada, na Folha de ontem, por Inês Bogéa).
A exposição (com seu catálogo excelente) mostra como o corpo humano é amoldado a cânones de beleza. O pescoço, o ombro, o peito, a cintura, os quadris e os pés desfilam transformados em sua aparência (e, às vezes, em sua anatomia) por inúmeros apetrechos indumentários: espartilhos para a cintura e para o pescoço, saltos, sutiãs etc.
A disposição dos objetos sugere que a vontade e as maneiras de modificar o corpo sejam universais ou quase. Assim, por exemplo, vemos a espécie de rosca de cobre que estica e sustenta o pescoço da mulher Ndebele (África do Sul). Logo ao lado, contemplamos uma rosca de pérolas num modelo Christian Dior de 1997.
É bem possível que os ditos primitivos tenham inspirado e inspirem nossas modas. Mas há uma diferença radical entre o costume da mulher Ndebele e a escolha fashion da mulher Christian Dior. Qual?
Para responder, uma lembrança de minha infância, aos sete anos: minha avó percorria o "Corriere della Sera", conversando sobre roupas e costureiras com minha mãe e com uma tia. De repente, apontando para o jornal, ela anunciou "as cores do próximo inverno" -marrom e preto, se me lembro direito. Eu deduzi em voz alta que, então, naquele inverno, todos se vestiriam só de marrom e de preto. Elas acharam a maior graça e sucumbiram a um acesso de riso que lhes arrancou lágrimas.
Seria fácil demais se a moda fornecesse regras tão rigorosas quanto as instituições de uma tribo -tipo: mulher casada usa rosca. Mas a moda é uma inquietude, não uma norma.
Durante esta semana (a São Paulo Fashion Week), veremos, inevitavelmente, inúmeras fotografias de modelos. Ao contemplá-los, além de um eventual fascínio estético, talvez sintamos um certo incômodo. A origem tanto do fascínio quanto do incômodo pode ser a seguinte: os modelos são lembretes da tarefa penosa do sujeito moderno.
Devemos ser "nós mesmos" (vai saber o que isso significa) e, ao mesmo tempo, tornar nossa singularidade reconhecível e apreciável pelos outros. Será que os modelos encontraram uma solução? Seus olhares parecem nos encorajar (ou desafiar): façam como a gente, inventem e promovam um estilo, seu estilo. Esse é o sonho do garoto que troca muito de roupa. E talvez seja o sonho de todos nós: inventarmos um estilo que expresse quem somos e que encante os outros.
O problema é que, ao encarnar e promover um estilo, os modelos parecem transformar-se em puras poses. De repente, eles não são mais "eles mesmos".
Também no Metropolitan, nestes dias, é possível ver uma surpreendente série de nus femininos fotografados por Irving Penn nos anos 50. Título da exposição: "Earthly Bodies" (corpos terrestres -aberta até 21/4). Penn é um grande nome da fotografia glamourosa para revista de moda. Os nus dessa série ficaram num sótão, porque deixavam os diretores de arte perplexos, se não horrorizados. São corpos de formas imperfeitas e em posições impiedosas.
Logo Penn, que retratou tantas mulheres posudas, guardava, como um segredo amoroso, essas imagens de corpos que parecem deitados em camas desfeitas. Corpos para desejar, amar, tocar -não só para fotografar.
P.S. Enquanto termino a coluna, chega em minhas mãos o livro de Erika Palomino "A Moda" (Publifolha), que sai esta semana. No mundo clubber ou no universo da moda, Erika é a cronista (bem-humorada) da procura moderna por um estilo que diga (e nos diga) quem somos.
31 janeiro 2002
24 janeiro 2002
Sem posse da rua, não há comunidade
Parece que a rua não é mais nossa. De noite ou de dia, a pé, de carro ou num transporte público, sozinhos ou acompanhados, em áreas escuras e/ou na frente de restaurantes com seguranças de plantão, tanto faz. Tocamos nossas vidas com a sensação de que participamos de um jogo de azar. É uma nova roleta-paulista: não é mais necessário atravessar um cruzamento à disparada e sem olhar. Basta, aparentemente, ir para a rua, que não é mais nossa.
Claro, poderemos sobreviver sem a rua. Mas o preço que pagaremos por entregá-la é mais alto do que a dor das mortes e das violências sofridas. No dia em que perdermos mesmo o uso da rua, provavelmente não existiremos mais como comunidade. O Brasil e suas cidades, São Paulo e seus municípios serão expressões meramente geográficas. Designarão lugares onde vivem pessoas que trabalham e comerciam (alguns prosperando, outros menos), mas que, fora essa contingência econômica, não têm nenhuma razão de estarem juntas naquele canto do mapa. Pessoas, em suma, que não imaginam uma história comum e não sonham com um futuro comum.
Amanhã, em São Paulo, festeja-se o aniversário da cidade. Em princípio, celebra-se a aventura de uma vila de bandeirantes e índios que, à força de migrações, lutas, sacrifícios e uma certa dose de horrores, se tornou uma das maiores metrópoles do mundo -onde uma extravagante diversidade étnica e social de pessoas compartilha a esperança de seguir convivendo e de encontrar, nessa convivência, alguma prosperidade não só econômica.
Ora, se entregarmos a rua, poderemos celebrar apenas o aniversário da ocupação dos triângulos desenhados pelo encontro entre o rio Tietê e o rio Pinheiros.
Não estou exagerando: uma comunidade, para existir minimamente, não pode renunciar à forma básica de sua presença, que é a garantia de um espaço público amigável para seus membros -área comum do condomínio democrático.
O Brasil tem uma longa história de prevalência dos interesses privados sobre os interesses públicos. Afinal, como é lembrado sempre, o país nasceu da ganância solitária dos colonizadores. Mas os tempos estão mudando. Aos poucos, sem milagres, mas estão mudando. A novidade das últimas décadas é o surgimento progressivo de uma comunidade nacional, animada por novos cuidados com o bem comum e por novos anseios de justiça. Celso Daniel era um dos artesãos dessa mudança.
Infelizmente a comunidade nascente é tímida, inibida na hora de reivindicar e de proteger o espaço público. Essa inibição manifesta-se, em particular, na (inesgotável) indagação das causas da violência.
Por exemplo, entendemos a violência como uma herança histórica da exploração colonial e da escravatura. Então, fazer o quê? Parece que só nos resta sonhar com o que seria o Brasil hoje se tivesse sido colonizado por puritanos ingleses. É um estranho fatalismo. Pois, se você adoecer e a origem da doença for genética, será que por isso você desistiria dos tratamentos químicos ou cirúrgicos?
Outro exemplo. Entendemos a criminalidade como um efeito direto da desigualdade e da miséria. Implicação: não adianta tentar combatê-la até que chegue o reinado da justiça social. Entretanto só sobra espaço para agitações retóricas e para anseios de reforma, que são justos, mas, no caso, ineficientes.
Talvez a paralisia que resulta da indagação das causas seja uma maneira mórbida de expiar nossas culpas sociais. Assim: há bastante miséria e nos sentimos culpados, social e historicamente; que a criminalidade, então, vingue os injustiçados.
Seria bom renunciar ao deleite doentio da culpabilidade e fazer o necessário para devolver a rua à comunidade. Será que a morte de Celso Daniel nos convencerá de que, sem a posse da rua, a comunidade que queremos nunca poderá existir?
De conferência em debate, não é difícil constatar que, nos últimos 15 anos, constituiu-se um consenso comprovado sobre como conter e diminuir drasticamente a violência criminosa urbana.
A lista de medidas necessárias é conhecida, a ponto que dá vergonha repeti-la. Começa por uma reforma da polícia (qualificação, treinamento, inserção e valorização social dos policiais) e de sua atuação (comando unificado, policiamento comunitário, contabilidade dos crimes por setor etc.). Passa pela criação e valorização dos espaços públicos (repressão dos crimes contra a qualidade de vida, operações "belezura" etc.). E por aí vai.
Alguns dirão que o Brasil não tem os meios para tantas reformas. Não sei fazer essas contas. Mas é lícito concluir que, se for assim, o Brasil não tem os meios para se tornar a comunidade que todos esperamos. Pois essa comunidade não existirá sem a posse da rua.
Numa triste volta do desânimo cínico dos anos 80 (a época de "O Brasil não presta"), um conhecido me dizia anteontem que, se fosse sequestrado ou se entrassem na sua casa, ele diria: "Fica tudo com vocês, sem problema. Só deixem, por favor, um cartão para eu comprar a passagem e uma nota de R$ 50 para o táxi até Guarulhos".
Claro, poderemos sobreviver sem a rua. Mas o preço que pagaremos por entregá-la é mais alto do que a dor das mortes e das violências sofridas. No dia em que perdermos mesmo o uso da rua, provavelmente não existiremos mais como comunidade. O Brasil e suas cidades, São Paulo e seus municípios serão expressões meramente geográficas. Designarão lugares onde vivem pessoas que trabalham e comerciam (alguns prosperando, outros menos), mas que, fora essa contingência econômica, não têm nenhuma razão de estarem juntas naquele canto do mapa. Pessoas, em suma, que não imaginam uma história comum e não sonham com um futuro comum.
Amanhã, em São Paulo, festeja-se o aniversário da cidade. Em princípio, celebra-se a aventura de uma vila de bandeirantes e índios que, à força de migrações, lutas, sacrifícios e uma certa dose de horrores, se tornou uma das maiores metrópoles do mundo -onde uma extravagante diversidade étnica e social de pessoas compartilha a esperança de seguir convivendo e de encontrar, nessa convivência, alguma prosperidade não só econômica.
Ora, se entregarmos a rua, poderemos celebrar apenas o aniversário da ocupação dos triângulos desenhados pelo encontro entre o rio Tietê e o rio Pinheiros.
Não estou exagerando: uma comunidade, para existir minimamente, não pode renunciar à forma básica de sua presença, que é a garantia de um espaço público amigável para seus membros -área comum do condomínio democrático.
O Brasil tem uma longa história de prevalência dos interesses privados sobre os interesses públicos. Afinal, como é lembrado sempre, o país nasceu da ganância solitária dos colonizadores. Mas os tempos estão mudando. Aos poucos, sem milagres, mas estão mudando. A novidade das últimas décadas é o surgimento progressivo de uma comunidade nacional, animada por novos cuidados com o bem comum e por novos anseios de justiça. Celso Daniel era um dos artesãos dessa mudança.
Infelizmente a comunidade nascente é tímida, inibida na hora de reivindicar e de proteger o espaço público. Essa inibição manifesta-se, em particular, na (inesgotável) indagação das causas da violência.
Por exemplo, entendemos a violência como uma herança histórica da exploração colonial e da escravatura. Então, fazer o quê? Parece que só nos resta sonhar com o que seria o Brasil hoje se tivesse sido colonizado por puritanos ingleses. É um estranho fatalismo. Pois, se você adoecer e a origem da doença for genética, será que por isso você desistiria dos tratamentos químicos ou cirúrgicos?
Outro exemplo. Entendemos a criminalidade como um efeito direto da desigualdade e da miséria. Implicação: não adianta tentar combatê-la até que chegue o reinado da justiça social. Entretanto só sobra espaço para agitações retóricas e para anseios de reforma, que são justos, mas, no caso, ineficientes.
Talvez a paralisia que resulta da indagação das causas seja uma maneira mórbida de expiar nossas culpas sociais. Assim: há bastante miséria e nos sentimos culpados, social e historicamente; que a criminalidade, então, vingue os injustiçados.
Seria bom renunciar ao deleite doentio da culpabilidade e fazer o necessário para devolver a rua à comunidade. Será que a morte de Celso Daniel nos convencerá de que, sem a posse da rua, a comunidade que queremos nunca poderá existir?
De conferência em debate, não é difícil constatar que, nos últimos 15 anos, constituiu-se um consenso comprovado sobre como conter e diminuir drasticamente a violência criminosa urbana.
A lista de medidas necessárias é conhecida, a ponto que dá vergonha repeti-la. Começa por uma reforma da polícia (qualificação, treinamento, inserção e valorização social dos policiais) e de sua atuação (comando unificado, policiamento comunitário, contabilidade dos crimes por setor etc.). Passa pela criação e valorização dos espaços públicos (repressão dos crimes contra a qualidade de vida, operações "belezura" etc.). E por aí vai.
Alguns dirão que o Brasil não tem os meios para tantas reformas. Não sei fazer essas contas. Mas é lícito concluir que, se for assim, o Brasil não tem os meios para se tornar a comunidade que todos esperamos. Pois essa comunidade não existirá sem a posse da rua.
Numa triste volta do desânimo cínico dos anos 80 (a época de "O Brasil não presta"), um conhecido me dizia anteontem que, se fosse sequestrado ou se entrassem na sua casa, ele diria: "Fica tudo com vocês, sem problema. Só deixem, por favor, um cartão para eu comprar a passagem e uma nota de R$ 50 para o táxi até Guarulhos".
17 janeiro 2002
Separações difíceis e, muitas vezes, inúteis
Na semana retrasada, a juíza Megan Lake Thornton, de um tribunal distrital de Kentucky, EUA, tomou uma decisão surpreendente.
Para entender o que aconteceu, precisa-se conhecer um tipo de determinação que é frequente nas cortes americanas, sobretudo nos casos de violência doméstica. O juiz, sem ter de entrar no mérito, constata que a proximidade dos parceiros é perigosa (para eles mesmos, para as crianças ou para os tímpanos dos vizinhos). Ele emite, portanto, uma "restraining order" (ordem de contenção). Ninguém vai preso, mas o tribunal decreta que fulano não deve entrar em contato com sicrana, nem chegar perto do lugar onde ela esteja (ainda que esse lugar seja o antigo domicílio comum). Em geral, a decisão do tribunal indica uma distância exata: fulano, digamos, não pode chegar a menos de 300 metros de sicrana. Se, por acaso, ele entrar no mesmo cinema que sicrana, deverá esperar por outra sessão.
Segundo meus amigos juristas, no Brasil não há um termo específico que traduza "restraining order", mas existem determinações judiciais parecidas.
Essas ordens de afastamento conseguem inibir os comportamentos violentos. Fulano, mesmo furioso, hesitará em procurar um encontro que esteja então proibido por ordem judicial. Também, caso o encontro aconteça, a intervenção da polícia será mais fácil, pois, depois de uma ordem do tribunal, a simples aproximação física torna-se uma infração e pode ser reprimida imediatamente, sem perguntar como começou a briga etc.
Ora, duas mulheres vítimas de violência doméstica pediram ao tribunal uma ordem de afastamento contra seus parceiros. Obtiveram prontamente essa proteção. Mais tarde, as mesmas mulheres, por própria iniciativa, contataram os parceiros que tinham sido afastados pela ordem judicial (pedida por elas). Uma encontrou seu parceiro para conversar e a outra voltou a conviver maritalmente.
A juíza Thornton achou que as mulheres tinham assim desprezado a ordem da corte e aplicou a ambas uma multa. Não foi um grande valor -US$ 100 para uma, US$ 200 para a outra-, mas a decisão fez barulho.
Representantes de associações contra a violência doméstica deram declarações públicas preocupadas. Afirmaram que a decisão da juíza transformava as vítimas em culpadas. E lembraram a complexidade de muitas histórias de violência doméstica: um casal pode esganar-se, e, mesmo assim, os cônjuges podem querer sinceramente ficar juntos. Por uma vez, foi reconhecida uma obviedade perturbadora: encher-se de porradas e de insultos é, para alguns, uma maneira de conviver. Às vezes, parceiros que se destroem a socos, tapas e injúrias não querem renunciar um ao outro.
Qualquer médico que receba as vítimas desse tipo de violência num pronto-socorro conhece o silêncio das mulheres batidas, sua tentativa de proteger o parceiro e de preservar a relação. Qualquer trabalhador social que se ocupe de violência doméstica conhece também a insistência de quem segue voltando para um parceiro violento (física ou verbalmente) e a capacidade de provocação pela qual homens e mulheres garantem, às vezes, a continuação de um horror conjugal.
É difícil explicar essa obstinação simplesmente pelo medo de que o outro se vingue ou pelo receio das dificuldades financeiras e da solidão depois da separação.
Na verdade, nessas histórias violentas, é desvendada a natureza de muitas relações conjugais aparentemente mais tranquilas.
Nossas neuroses não são quase nunca solitárias: os traços patológicos de nossa personalidade se expressam em nossas relações com os outros.
Quando, depois de amores e apaixonamentos, dois sujeitos se acasalam solidamente, é possível que cada um esteja apenas oferecendo ao outro a ocasião de viver suas manhas neuróticas com a assiduidade desejada.
Um exemplo sumário. Sicrana traz de sua infância a idéia de que o papai é o único homem de verdade. Para afugentar essas tentações incestuosas e conseguir sair de casa, ela traz também, da mesma infância, a necessidade de mostrar ao mundo que, na verdade, o dito pai é um fracasso ambulante. Fulano traz de sua infância a exigência de encarar desafios e confirmar assim que ele é digno do imenso amor de sua mãe. Por sua vez, para evitar o abraço sufocante que recompensaria seus esforços, quando chega perto de triunfar, ele apronta e fracassa. Fulano e Sicrana poderão constituir um casal de ferro. Sicrana desafiando e humilhando Fulano, o qual encara os desafios, quase triunfa e sempre fracassa no fim, exatamente como Sicrana quer.
Se as escaramuças de olhares e repartidas venenosas se tornarem guerra aberta, será bom separar os parceiros para preservar sua incolumidade. Mas pouco adiantará. Eles voltarão a juntar-se. Ou então, escapando às multas da juíza Thornton, procurarão outros com os quais construirão uma relação idêntica à precedente.
Corolário e moral da história: quem muda de parceiro sem mudar de neurose vai ao encontro das mesmas pauladas tomadas ou dadas que sejam.
Para entender o que aconteceu, precisa-se conhecer um tipo de determinação que é frequente nas cortes americanas, sobretudo nos casos de violência doméstica. O juiz, sem ter de entrar no mérito, constata que a proximidade dos parceiros é perigosa (para eles mesmos, para as crianças ou para os tímpanos dos vizinhos). Ele emite, portanto, uma "restraining order" (ordem de contenção). Ninguém vai preso, mas o tribunal decreta que fulano não deve entrar em contato com sicrana, nem chegar perto do lugar onde ela esteja (ainda que esse lugar seja o antigo domicílio comum). Em geral, a decisão do tribunal indica uma distância exata: fulano, digamos, não pode chegar a menos de 300 metros de sicrana. Se, por acaso, ele entrar no mesmo cinema que sicrana, deverá esperar por outra sessão.
Segundo meus amigos juristas, no Brasil não há um termo específico que traduza "restraining order", mas existem determinações judiciais parecidas.
Essas ordens de afastamento conseguem inibir os comportamentos violentos. Fulano, mesmo furioso, hesitará em procurar um encontro que esteja então proibido por ordem judicial. Também, caso o encontro aconteça, a intervenção da polícia será mais fácil, pois, depois de uma ordem do tribunal, a simples aproximação física torna-se uma infração e pode ser reprimida imediatamente, sem perguntar como começou a briga etc.
Ora, duas mulheres vítimas de violência doméstica pediram ao tribunal uma ordem de afastamento contra seus parceiros. Obtiveram prontamente essa proteção. Mais tarde, as mesmas mulheres, por própria iniciativa, contataram os parceiros que tinham sido afastados pela ordem judicial (pedida por elas). Uma encontrou seu parceiro para conversar e a outra voltou a conviver maritalmente.
A juíza Thornton achou que as mulheres tinham assim desprezado a ordem da corte e aplicou a ambas uma multa. Não foi um grande valor -US$ 100 para uma, US$ 200 para a outra-, mas a decisão fez barulho.
Representantes de associações contra a violência doméstica deram declarações públicas preocupadas. Afirmaram que a decisão da juíza transformava as vítimas em culpadas. E lembraram a complexidade de muitas histórias de violência doméstica: um casal pode esganar-se, e, mesmo assim, os cônjuges podem querer sinceramente ficar juntos. Por uma vez, foi reconhecida uma obviedade perturbadora: encher-se de porradas e de insultos é, para alguns, uma maneira de conviver. Às vezes, parceiros que se destroem a socos, tapas e injúrias não querem renunciar um ao outro.
Qualquer médico que receba as vítimas desse tipo de violência num pronto-socorro conhece o silêncio das mulheres batidas, sua tentativa de proteger o parceiro e de preservar a relação. Qualquer trabalhador social que se ocupe de violência doméstica conhece também a insistência de quem segue voltando para um parceiro violento (física ou verbalmente) e a capacidade de provocação pela qual homens e mulheres garantem, às vezes, a continuação de um horror conjugal.
É difícil explicar essa obstinação simplesmente pelo medo de que o outro se vingue ou pelo receio das dificuldades financeiras e da solidão depois da separação.
Na verdade, nessas histórias violentas, é desvendada a natureza de muitas relações conjugais aparentemente mais tranquilas.
Nossas neuroses não são quase nunca solitárias: os traços patológicos de nossa personalidade se expressam em nossas relações com os outros.
Quando, depois de amores e apaixonamentos, dois sujeitos se acasalam solidamente, é possível que cada um esteja apenas oferecendo ao outro a ocasião de viver suas manhas neuróticas com a assiduidade desejada.
Um exemplo sumário. Sicrana traz de sua infância a idéia de que o papai é o único homem de verdade. Para afugentar essas tentações incestuosas e conseguir sair de casa, ela traz também, da mesma infância, a necessidade de mostrar ao mundo que, na verdade, o dito pai é um fracasso ambulante. Fulano traz de sua infância a exigência de encarar desafios e confirmar assim que ele é digno do imenso amor de sua mãe. Por sua vez, para evitar o abraço sufocante que recompensaria seus esforços, quando chega perto de triunfar, ele apronta e fracassa. Fulano e Sicrana poderão constituir um casal de ferro. Sicrana desafiando e humilhando Fulano, o qual encara os desafios, quase triunfa e sempre fracassa no fim, exatamente como Sicrana quer.
Se as escaramuças de olhares e repartidas venenosas se tornarem guerra aberta, será bom separar os parceiros para preservar sua incolumidade. Mas pouco adiantará. Eles voltarão a juntar-se. Ou então, escapando às multas da juíza Thornton, procurarão outros com os quais construirão uma relação idêntica à precedente.
Corolário e moral da história: quem muda de parceiro sem mudar de neurose vai ao encontro das mesmas pauladas tomadas ou dadas que sejam.
10 janeiro 2002
A terapia do doutor Cinema
É raro, mas acontece: um psicoterapeuta pode sugerir que seu paciente assista a um filme específico. Quem sabe a experiência facilite a reflexão do paciente sobre suas dificuldades ou o ajude a inventar uma solução.
Ora, Gary Solomon -psicólogo americano, conhecido como "doutor Cinema" proclama que as sugestões cinematográficas constituem propriamente um método terapêutico. Solomon publicou, em 1995, "The Motion Picture Prescription" (receitando filmes) e, recentemente, "Reel Therapy" (a terapia da bobina).
Ambos os livros são catálogos de filmes que podem ser receitados. Cada título é acompanhado por uma lista intitulada "temas curativos" (são os problemas para o tratamento dos quais o filme é indicado) e pela seção "Cinematerapia", na qual Solomon encaminha o olhar dos pacientes-espectadores na direção dos "temas curativos".
Tomemos "Cidadão Kane". Eis os "temas curativos": "ser obcecado pelo dinheiro, ser obcecado pelo poder, quando ter um affaire torna a gente infeliz, aprender que há mais na vida do que os objetos materiais, desejo de voltar a uma infância inocente". Na "Cinematerapia", Solomon confessa que ele mesmo nasceu na parte pobre de Inglewood, Califórnia, e que, a cada vez que atravessava os bairros ricos, ele pensava que seus habitantes deveriam ser muito felizes. Mais tarde, ele acrescenta, "aprendi o que filmes como "Cidadão Kane" podem ensinar: o dinheiro não preenche o vazio que vem do fato de não gostar de si mesmo e da vida que nos foi dada".
Ele chama a atenção para o fim do filme, quando Charles murmura suas últimas palavras: "Rosebud" é o nome de seu trenó quando ele era criança. Solomon comenta que muitos trocariam sua fortuna pelos prazeres simples da infância. Muitos, ele continua, sentem essa nostalgia, mas não conseguem falar disso. Portanto não fazem nada de construtivo para mudar sua vida. "Está cansado de viver sempre sob a pressão financeira que o prende a seu trabalho? Poderia podar um pouco seu padrão de vida e começar uma nova carreira? Talvez você seja um advogado que sempre quis ser um jardineiro." Em suma, assistindo ao filme, o paciente reconhecerá uma infelicidade com a qual ele sofria, mas que mal conseguia definir. Graças ao filme, ele saberá tomar providências.
Solomon não propõe teorias. Ele constata apenas que os pacientes, assistindo aos filmes receitados, descobrem que seus problemas são compartilhados por outros e, com isso, param de negá-los. Um filme fornece palavras e imagens para descrever e abordar questões que, sem isso, permaneceriam perigosamente silenciosas. Outro filme permite a volta de lembranças perdidas ou a experiência de emoções reprimidas.
Para ilustrar o valor formador do cinema, Solomon evoca sua infância difícil: "A maioria das pessoas, sobretudo as crianças, diverte-se assistindo aos filmes. Mas eu devo algo mais ao cinema: aprendi com ele a sentir coisas que minha família nunca me ensinou a sentir. O medo, sim, eu tinha bem claro. Estava com medo o tempo inteiro. O meu pai passava seu tempo espantando quase mortalmente a minha mãe, a minha irmã e a mim. Mas o restante do leque emocional dos sentimentos, como o amor, a confiança e a empatia, eu aprendi no cinema".
Por que no cinema e não na literatura? Solomon foi disléxico desde a infância. Mas não precisa de tanto. Eu, por exemplo, fui um leitor precoce e continuo lendo romances e contos com paixão. Mas lembro que, nos 12 meses dos meus 15 anos, li quatro Dostoiévskis e vi, no mínimo, 140 filmes. três a cada sábado, no cineclube da escola. Além dessa superioridade quantitativa, a imagem cinematográfica oferece um suporte fácil e imediato para nossas identificações. Conclusão: como todo o mundo, aprendi a viver, no mínimo, tanto pelo cinema quanto pela literatura.
De qualquer forma, se o cinema é para nós uma experiência formadora, por que não usar filmes escolhidos como um supletivo para momentos difíceis? Os pais de adolescentes usuários de drogas deveriam assistir a "Bicho de Sete Cabeças". Qualquer casal atormentado pelo ciúme masculino encontraria sua cura numa boa dose de "Eu Tu Eles". E por aí vai.
A ordem moderna do mundo é bastante incerta. Para orientar nossas condutas, só dispomos dos cenários que nós mesmos inventamos. Desses cenários, o cinema é o repertório maior e de acesso mais fácil.
Entendo, portanto, o entusiasmo de Solomon. Mas, antes de transferir meu consultório para a cinemateca, uma hesitação. Certo, podemos sofrer de uma falta de histórias que dêem sentido a nossas vidas, histórias que o cinema nos ajuda a encontrar e a inventar. Mas sofremos também de um excesso de histórias. Para evitar o pouco sentido da vida e do mundo, nós nos enredamos, às vezes, em cenários sofridos ou francamente catastróficos, mas aos quais não sabemos como renunciar. Em suma, pode ser útil que um psicoterapeuta seja lanterninha, mas qualquer lanterninha deve, de vez em quando, saber anunciar que o filme acabou e que já está na hora de voltar para a rua.
Ora, Gary Solomon -psicólogo americano, conhecido como "doutor Cinema" proclama que as sugestões cinematográficas constituem propriamente um método terapêutico. Solomon publicou, em 1995, "The Motion Picture Prescription" (receitando filmes) e, recentemente, "Reel Therapy" (a terapia da bobina).
Ambos os livros são catálogos de filmes que podem ser receitados. Cada título é acompanhado por uma lista intitulada "temas curativos" (são os problemas para o tratamento dos quais o filme é indicado) e pela seção "Cinematerapia", na qual Solomon encaminha o olhar dos pacientes-espectadores na direção dos "temas curativos".
Tomemos "Cidadão Kane". Eis os "temas curativos": "ser obcecado pelo dinheiro, ser obcecado pelo poder, quando ter um affaire torna a gente infeliz, aprender que há mais na vida do que os objetos materiais, desejo de voltar a uma infância inocente". Na "Cinematerapia", Solomon confessa que ele mesmo nasceu na parte pobre de Inglewood, Califórnia, e que, a cada vez que atravessava os bairros ricos, ele pensava que seus habitantes deveriam ser muito felizes. Mais tarde, ele acrescenta, "aprendi o que filmes como "Cidadão Kane" podem ensinar: o dinheiro não preenche o vazio que vem do fato de não gostar de si mesmo e da vida que nos foi dada".
Ele chama a atenção para o fim do filme, quando Charles murmura suas últimas palavras: "Rosebud" é o nome de seu trenó quando ele era criança. Solomon comenta que muitos trocariam sua fortuna pelos prazeres simples da infância. Muitos, ele continua, sentem essa nostalgia, mas não conseguem falar disso. Portanto não fazem nada de construtivo para mudar sua vida. "Está cansado de viver sempre sob a pressão financeira que o prende a seu trabalho? Poderia podar um pouco seu padrão de vida e começar uma nova carreira? Talvez você seja um advogado que sempre quis ser um jardineiro." Em suma, assistindo ao filme, o paciente reconhecerá uma infelicidade com a qual ele sofria, mas que mal conseguia definir. Graças ao filme, ele saberá tomar providências.
Solomon não propõe teorias. Ele constata apenas que os pacientes, assistindo aos filmes receitados, descobrem que seus problemas são compartilhados por outros e, com isso, param de negá-los. Um filme fornece palavras e imagens para descrever e abordar questões que, sem isso, permaneceriam perigosamente silenciosas. Outro filme permite a volta de lembranças perdidas ou a experiência de emoções reprimidas.
Para ilustrar o valor formador do cinema, Solomon evoca sua infância difícil: "A maioria das pessoas, sobretudo as crianças, diverte-se assistindo aos filmes. Mas eu devo algo mais ao cinema: aprendi com ele a sentir coisas que minha família nunca me ensinou a sentir. O medo, sim, eu tinha bem claro. Estava com medo o tempo inteiro. O meu pai passava seu tempo espantando quase mortalmente a minha mãe, a minha irmã e a mim. Mas o restante do leque emocional dos sentimentos, como o amor, a confiança e a empatia, eu aprendi no cinema".
Por que no cinema e não na literatura? Solomon foi disléxico desde a infância. Mas não precisa de tanto. Eu, por exemplo, fui um leitor precoce e continuo lendo romances e contos com paixão. Mas lembro que, nos 12 meses dos meus 15 anos, li quatro Dostoiévskis e vi, no mínimo, 140 filmes. três a cada sábado, no cineclube da escola. Além dessa superioridade quantitativa, a imagem cinematográfica oferece um suporte fácil e imediato para nossas identificações. Conclusão: como todo o mundo, aprendi a viver, no mínimo, tanto pelo cinema quanto pela literatura.
De qualquer forma, se o cinema é para nós uma experiência formadora, por que não usar filmes escolhidos como um supletivo para momentos difíceis? Os pais de adolescentes usuários de drogas deveriam assistir a "Bicho de Sete Cabeças". Qualquer casal atormentado pelo ciúme masculino encontraria sua cura numa boa dose de "Eu Tu Eles". E por aí vai.
A ordem moderna do mundo é bastante incerta. Para orientar nossas condutas, só dispomos dos cenários que nós mesmos inventamos. Desses cenários, o cinema é o repertório maior e de acesso mais fácil.
Entendo, portanto, o entusiasmo de Solomon. Mas, antes de transferir meu consultório para a cinemateca, uma hesitação. Certo, podemos sofrer de uma falta de histórias que dêem sentido a nossas vidas, histórias que o cinema nos ajuda a encontrar e a inventar. Mas sofremos também de um excesso de histórias. Para evitar o pouco sentido da vida e do mundo, nós nos enredamos, às vezes, em cenários sofridos ou francamente catastróficos, mas aos quais não sabemos como renunciar. Em suma, pode ser útil que um psicoterapeuta seja lanterninha, mas qualquer lanterninha deve, de vez em quando, saber anunciar que o filme acabou e que já está na hora de voltar para a rua.
03 janeiro 2002
Contamos contigo, Frodo Bolseiro
Assistir ao filme "O Senhor dos Anéis" é uma boa maneira de começar o ano. Afinal, 2001 deixou um gosto amargo na boca de todos. O terceiro milênio estreou zombando de nossa razão. Em poucos meses, à força de bombas e guerras, nos foi lembrado de que há diferenças culturais que não admitem papo, assim como há desigualdades que não sabemos (ou não queremos) corrigir. Por que, então, não viajaríamos de vez para um mundo completamente diferente?
Em Nova York, na saída do cinema, falei com vários adolescentes americanos (na maioria eram também leitores da obra de Tolkien que inspira o filme). Todos comentaram que a história era, para eles, o portal de acesso a um outro mundo.
Em 1966 (eu tinha 18 anos), "O Senhor dos Anéis" fazia parte de minha mochila californiana, assim como de quase todas as mochilas que circulavam pelos EUA. Para a contracultura dos anos 60, a obra de Tolkien era, justamente, a invenção alucinada de um outro lugar, para o qual gostaríamos de ser transportados. O mapa da Terra-média guiaria os passos de nossa fuga.
Sonhar em pertencer a um mundo distante é um lugar-comum da adolescência -uma maneira de resolver os conflitos familiares. Assim, muitos fantasiam que não são daqui. Por mais que gostem de seus pais, imaginam vir de alhures. Talvez eles tenham sido encontrados, ainda bebês, numa ruela escura, ou depositados pela cegonha num endereço errado. Um dia, seus "verdadeiros" parentes -extraterrestres, gente do futuro que perdeu seus rebentos em algum túnel do tempo- voltarão e esclarecerão o mal-entendido.
É banal querer ser de um outro mundo. Mas por que logo da Terra-média? O mundo inventado por Tolkien não é muito melhor do que o nosso. Por que emigrar para um lugar que é tão cruel, perigoso, assustador e incerto quanto o nosso? O fato é que "O Senhor dos Anéis" exerce também uma outra sedução.
Certamente, a literatura medieval inglesa alimentou a fantasia de Tolkien. Mas Frodo, o herói de "O Senhor dos Anéis", não é nenhum cavaleiro da Távola Redonda. O mesmo vale para Bilbo, o herói de "O Hobbit" (o conto que precede a trilogia de "O Senhor dos Anéis"). Nenhum dos dois é um bonitaço, ainda menos um brutamontes experto no manuseio de arco, flechas, espada ou vara mágica. Como todos os hobbits, Frodo e Bilbo são baixinhos, têm pés cabeludos e entendem sobretudo de cerveja, de papos, de festas e de cachimbos fumados perto da lareira.
Claro, Frodo escutou Bilbo contar suas aventuras passadas e, como todos os jovens hobbits do condado, sonha com gestas mais excitantes do que chupar cana embaixo de uma árvore. Mas são apenas devaneios. Ora, esse Frodo, tranquilo, feliz, sonhador e qualquer, carregará em seus ombros a responsabilidade de enfrentar o mal. Ele será ajudado por nobres magos, cavaleiros, elfos e anões, mas, no fundo, o destino do mundo dependerá dele.
Para Tolkien, provavelmente, a história de Bilbo e Frodo era uma maneira de tecer os elogios da geração que ganhou a Segunda Guerra Mundial. Frodo é o conscrito que foi arrancado à paz de sua vila e aceitou arriscar a vida na luta contra uma espécie de horror absoluto -no caso, o nazismo. Ou, então, considerando a diferença entre as gerações, Bilbo (o tio de Frodo e herói de "O Hobbit") é o protótipo do conscrito da Segunda Guerra, e nós somos Frodo: a geração seguinte, que sonha com a chance de enfrentar provas parecidas.
Em suma, "O Senhor dos Anéis" (livro e filme) nos seduz. E não é apenas por prometer evasão para uma terra exótica e mágica. Estamos a fim de ir para a Terra-média sobretudo porque, lá, um hobbit comum como a gente teve a chance de mostrar do que ele era capaz.
Tenho um misto de simpatia e desconfiança pelos sonhos de aventuras heróicas, que são tão presentes em todos nós.
Tenho simpatia porque gosto deste mundo, em que o valor de cada um depende de seus atos, e não da nascença ou do tamanho. Assim como gosto que o heroísmo não seja a prerrogativa de uma casta, mas uma chance para o homem qualquer descobrir e afirmar sua grandeza.
Tenho desconfiança porque, à força de esperar que provas extraordinárias nos revelem ao mundo e a nós mesmos, acabamos esquecendo o valor das coisas ordinárias. Celebramos o heroísmo só em aventuras espetaculares e mal sabemos reconhecê-lo na persistência das tarefas difíceis, às vezes repetitivas, do cotidiano.
De qualquer forma, assistir ao filme e conversar com os jovens espectadores me trouxe um certo conforto. Pelo visto, se um Senhor dos Anéis ameaçasse nosso mundo, os jovens de hoje acorreriam, prestes a erguer seus modestos punhais contra o poder terrificante de tamanho inimigo -dispostos, sem dúvida, a encarar o supremo sacrifício.
Será? Em todo caso, eles acorreram com entusiasmo para ver, no cinema, a história de Frodo Bolseiro. Agora, só resta esperar que, embora inspirados pela coragem do hobbit, na hora do vamos ver, eles não se contentem, por exemplo, com um videogame de "O Senhor dos Anéis".
Em Nova York, na saída do cinema, falei com vários adolescentes americanos (na maioria eram também leitores da obra de Tolkien que inspira o filme). Todos comentaram que a história era, para eles, o portal de acesso a um outro mundo.
Em 1966 (eu tinha 18 anos), "O Senhor dos Anéis" fazia parte de minha mochila californiana, assim como de quase todas as mochilas que circulavam pelos EUA. Para a contracultura dos anos 60, a obra de Tolkien era, justamente, a invenção alucinada de um outro lugar, para o qual gostaríamos de ser transportados. O mapa da Terra-média guiaria os passos de nossa fuga.
Sonhar em pertencer a um mundo distante é um lugar-comum da adolescência -uma maneira de resolver os conflitos familiares. Assim, muitos fantasiam que não são daqui. Por mais que gostem de seus pais, imaginam vir de alhures. Talvez eles tenham sido encontrados, ainda bebês, numa ruela escura, ou depositados pela cegonha num endereço errado. Um dia, seus "verdadeiros" parentes -extraterrestres, gente do futuro que perdeu seus rebentos em algum túnel do tempo- voltarão e esclarecerão o mal-entendido.
É banal querer ser de um outro mundo. Mas por que logo da Terra-média? O mundo inventado por Tolkien não é muito melhor do que o nosso. Por que emigrar para um lugar que é tão cruel, perigoso, assustador e incerto quanto o nosso? O fato é que "O Senhor dos Anéis" exerce também uma outra sedução.
Certamente, a literatura medieval inglesa alimentou a fantasia de Tolkien. Mas Frodo, o herói de "O Senhor dos Anéis", não é nenhum cavaleiro da Távola Redonda. O mesmo vale para Bilbo, o herói de "O Hobbit" (o conto que precede a trilogia de "O Senhor dos Anéis"). Nenhum dos dois é um bonitaço, ainda menos um brutamontes experto no manuseio de arco, flechas, espada ou vara mágica. Como todos os hobbits, Frodo e Bilbo são baixinhos, têm pés cabeludos e entendem sobretudo de cerveja, de papos, de festas e de cachimbos fumados perto da lareira.
Claro, Frodo escutou Bilbo contar suas aventuras passadas e, como todos os jovens hobbits do condado, sonha com gestas mais excitantes do que chupar cana embaixo de uma árvore. Mas são apenas devaneios. Ora, esse Frodo, tranquilo, feliz, sonhador e qualquer, carregará em seus ombros a responsabilidade de enfrentar o mal. Ele será ajudado por nobres magos, cavaleiros, elfos e anões, mas, no fundo, o destino do mundo dependerá dele.
Para Tolkien, provavelmente, a história de Bilbo e Frodo era uma maneira de tecer os elogios da geração que ganhou a Segunda Guerra Mundial. Frodo é o conscrito que foi arrancado à paz de sua vila e aceitou arriscar a vida na luta contra uma espécie de horror absoluto -no caso, o nazismo. Ou, então, considerando a diferença entre as gerações, Bilbo (o tio de Frodo e herói de "O Hobbit") é o protótipo do conscrito da Segunda Guerra, e nós somos Frodo: a geração seguinte, que sonha com a chance de enfrentar provas parecidas.
Em suma, "O Senhor dos Anéis" (livro e filme) nos seduz. E não é apenas por prometer evasão para uma terra exótica e mágica. Estamos a fim de ir para a Terra-média sobretudo porque, lá, um hobbit comum como a gente teve a chance de mostrar do que ele era capaz.
Tenho um misto de simpatia e desconfiança pelos sonhos de aventuras heróicas, que são tão presentes em todos nós.
Tenho simpatia porque gosto deste mundo, em que o valor de cada um depende de seus atos, e não da nascença ou do tamanho. Assim como gosto que o heroísmo não seja a prerrogativa de uma casta, mas uma chance para o homem qualquer descobrir e afirmar sua grandeza.
Tenho desconfiança porque, à força de esperar que provas extraordinárias nos revelem ao mundo e a nós mesmos, acabamos esquecendo o valor das coisas ordinárias. Celebramos o heroísmo só em aventuras espetaculares e mal sabemos reconhecê-lo na persistência das tarefas difíceis, às vezes repetitivas, do cotidiano.
De qualquer forma, assistir ao filme e conversar com os jovens espectadores me trouxe um certo conforto. Pelo visto, se um Senhor dos Anéis ameaçasse nosso mundo, os jovens de hoje acorreriam, prestes a erguer seus modestos punhais contra o poder terrificante de tamanho inimigo -dispostos, sem dúvida, a encarar o supremo sacrifício.
Será? Em todo caso, eles acorreram com entusiasmo para ver, no cinema, a história de Frodo Bolseiro. Agora, só resta esperar que, embora inspirados pela coragem do hobbit, na hora do vamos ver, eles não se contentem, por exemplo, com um videogame de "O Senhor dos Anéis".
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