Na semana retrasada, a juíza Megan Lake Thornton, de um tribunal distrital de Kentucky, EUA, tomou uma decisão surpreendente.
Para entender o que aconteceu, precisa-se conhecer um tipo de determinação que é frequente nas cortes americanas, sobretudo nos casos de violência doméstica. O juiz, sem ter de entrar no mérito, constata que a proximidade dos parceiros é perigosa (para eles mesmos, para as crianças ou para os tímpanos dos vizinhos). Ele emite, portanto, uma "restraining order" (ordem de contenção). Ninguém vai preso, mas o tribunal decreta que fulano não deve entrar em contato com sicrana, nem chegar perto do lugar onde ela esteja (ainda que esse lugar seja o antigo domicílio comum). Em geral, a decisão do tribunal indica uma distância exata: fulano, digamos, não pode chegar a menos de 300 metros de sicrana. Se, por acaso, ele entrar no mesmo cinema que sicrana, deverá esperar por outra sessão.
Segundo meus amigos juristas, no Brasil não há um termo específico que traduza "restraining order", mas existem determinações judiciais parecidas.
Essas ordens de afastamento conseguem inibir os comportamentos violentos. Fulano, mesmo furioso, hesitará em procurar um encontro que esteja então proibido por ordem judicial. Também, caso o encontro aconteça, a intervenção da polícia será mais fácil, pois, depois de uma ordem do tribunal, a simples aproximação física torna-se uma infração e pode ser reprimida imediatamente, sem perguntar como começou a briga etc.
Ora, duas mulheres vítimas de violência doméstica pediram ao tribunal uma ordem de afastamento contra seus parceiros. Obtiveram prontamente essa proteção. Mais tarde, as mesmas mulheres, por própria iniciativa, contataram os parceiros que tinham sido afastados pela ordem judicial (pedida por elas). Uma encontrou seu parceiro para conversar e a outra voltou a conviver maritalmente.
A juíza Thornton achou que as mulheres tinham assim desprezado a ordem da corte e aplicou a ambas uma multa. Não foi um grande valor -US$ 100 para uma, US$ 200 para a outra-, mas a decisão fez barulho.
Representantes de associações contra a violência doméstica deram declarações públicas preocupadas. Afirmaram que a decisão da juíza transformava as vítimas em culpadas. E lembraram a complexidade de muitas histórias de violência doméstica: um casal pode esganar-se, e, mesmo assim, os cônjuges podem querer sinceramente ficar juntos. Por uma vez, foi reconhecida uma obviedade perturbadora: encher-se de porradas e de insultos é, para alguns, uma maneira de conviver. Às vezes, parceiros que se destroem a socos, tapas e injúrias não querem renunciar um ao outro.
Qualquer médico que receba as vítimas desse tipo de violência num pronto-socorro conhece o silêncio das mulheres batidas, sua tentativa de proteger o parceiro e de preservar a relação. Qualquer trabalhador social que se ocupe de violência doméstica conhece também a insistência de quem segue voltando para um parceiro violento (física ou verbalmente) e a capacidade de provocação pela qual homens e mulheres garantem, às vezes, a continuação de um horror conjugal.
É difícil explicar essa obstinação simplesmente pelo medo de que o outro se vingue ou pelo receio das dificuldades financeiras e da solidão depois da separação.
Na verdade, nessas histórias violentas, é desvendada a natureza de muitas relações conjugais aparentemente mais tranquilas.
Nossas neuroses não são quase nunca solitárias: os traços patológicos de nossa personalidade se expressam em nossas relações com os outros.
Quando, depois de amores e apaixonamentos, dois sujeitos se acasalam solidamente, é possível que cada um esteja apenas oferecendo ao outro a ocasião de viver suas manhas neuróticas com a assiduidade desejada.
Um exemplo sumário. Sicrana traz de sua infância a idéia de que o papai é o único homem de verdade. Para afugentar essas tentações incestuosas e conseguir sair de casa, ela traz também, da mesma infância, a necessidade de mostrar ao mundo que, na verdade, o dito pai é um fracasso ambulante. Fulano traz de sua infância a exigência de encarar desafios e confirmar assim que ele é digno do imenso amor de sua mãe. Por sua vez, para evitar o abraço sufocante que recompensaria seus esforços, quando chega perto de triunfar, ele apronta e fracassa. Fulano e Sicrana poderão constituir um casal de ferro. Sicrana desafiando e humilhando Fulano, o qual encara os desafios, quase triunfa e sempre fracassa no fim, exatamente como Sicrana quer.
Se as escaramuças de olhares e repartidas venenosas se tornarem guerra aberta, será bom separar os parceiros para preservar sua incolumidade. Mas pouco adiantará. Eles voltarão a juntar-se. Ou então, escapando às multas da juíza Thornton, procurarão outros com os quais construirão uma relação idêntica à precedente.
Corolário e moral da história: quem muda de parceiro sem mudar de neurose vai ao encontro das mesmas pauladas tomadas ou dadas que sejam.
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