Algumas contas do Estado de Massachusetts, EUA, publicadas no "Boston Globe" de 12/7, são indicativas de uma tendência que não é só americana: na assistência médica oferecida aos necessitados, o custo anual dos remédios é de US$ 890 milhões, dos quais -surpresa-US$ 470 milhões (53%) são gastos em medicação psiquiátrica.
Certo, na população carente e marginalizada, a porcentagem de pessoas com sério sofrimento psíquico está sempre acima da média. Mas, nas contas, aparece uma outra anomalia: a multiplicação dos remédios psiquiátricos prescritos a um mesmo paciente. Por exemplo, 5.000 pacientes tomam regularmente dois antidepressivos ou mais. Por que dois ou mais? E como explicar que 1.100 pacientes estejam tomando simultaneamente mais de seis psicotrópicos?
Recentemente atendi um sujeito que tomava, há muito tempo, 11 remédios de quatro categorias: antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos e antipsicóticos. Para efetuar um exame clínico, ou seja, para descobrir quem estava atrás de uma tal panóplia de drogas que alteram humores e pensamentos, teria sido necessário um processo de desintoxicação, com meses de internação.
Como se chegou a essa desordem da medicação psiquiátrica?
1) A necessidade (ideológica e econômica) de diminuir o tempo das internações forçou os psiquiatras a inventar coquetéis para substituir os muros do asilo: dois antipsicóticos, um hipnótico, um neuroléptico, um regulador do humor, que mais?
2) Os remédios inventados nas últimas décadas têm efeitos químicos definidos, mas seus efeitos terapêuticos são variáveis: misteriosamente, eles funcionam com algumas pessoas e não com outras, e cada paciente é sensível a doses diferentes. A escolha dos remédios e a posologia são decisões empíricas: "Prove este e vamos ver se funciona, eventualmente a gente aumenta a dose". "Diminua este e experimente o outro". Quando muda a prescrição, acrescentar é mais fácil que substituir: "Como fica, se eu tirar, e a coisa piorar?".
3) Os médicos são informados sobre os remédios pelos propagandistas das empresas, as quais tentam estender o campo de ação de seus produtos. "Doutor, nosso antidepressivo não foi aprovado para isso, mas parece que funciona também com crianças com déficit de atenção. Por que não prescrevê-lo em associação com a receita tradicional?"
4) Os remédios são promovidos como produtos quaisquer: leio numa revista que uma pílula poderia resolver minha fobia social, ligo para meu médico e peço. Mas não quero parar meu ansiolítico. Se o resultado for positivo, como saberei qual dos dois está funcionando? Continuarei com ambos.
Aquém dessa lista, há uma causa fundamental da proliferação das prescrições. Até os anos 70, a psiquiatria, tanto européia quanto americana, tentava entender os sintomas psíquicos no quadro da personalidade do paciente. Esperava-se que medos, pavores, obsessões, compulsões e mesmo francas loucuras revelassem seu sentido como partes do conjunto composto por um destino, um ambiente e um sujeito. Curar significava, idealmente, reorganizar tudo isso, de maneira que o resultado exigisse menos sofrimento - tarefa frustrante por sua duração e dificuldade.
A partir dos anos 60, a indústria farmacêutica começou a oferecer remédios que podiam suprimir quimicamente alguns sintomas dolorosos. À primeira vista, excelente notícia: era possível acalmar medos e angústias, soltar obsessões e inibir delírios, ganhando tempo para que o paciente melhorasse o equilíbrio desfavorável de sua vida e de seu mundo.
Mas uma parte da psiquiatria não escolheu esse uso dos fármacos. Vendeu a alma: trocou a tradição clínica pela esperança de fazer milagres. Essa psiquiatria convenceu-se de que somos definidos pelos sintomas que os remédios curam. Para ela, não há mais, por exemplo, neuróticos ou psicóticos que podem se deprimir, pois, se assim fosse, curar a depressão seria ótimo, mas deixaria inteira a questão da personalidade de cada paciente. Para essa psiquiatria, haveria, no caso, apenas deprimidos, ou seja, sujeitos definidos pela depressão: de repente, a pílula que melhora o sintoma é tudo o que é preciso. O resultado é a bagunça indicada pelas contas de Massachusetts. Por quê?
Imaginemos que, quando me debruço na janela, eu me sinta irresistivelmente chamado por braços abertos que me esperam lá embaixo, por amor ou por ódio, não sei. Se uma pílula sortuda curasse meu medo das alturas, é provável que passaria noites em claro, de sentinela. Pois quem me diz que os braços que antes me esperavam na calçada não são parentes dos braços de Morfeu? Posso acrescentar uma pílula. Dormirei. Mas o que é, agora, a estranha sensação de sufoco que me encerra a garganta quando acordo, como uma espécie de gravata? Acrescentarei uma terceira pílula? Talvez. Mas seria sábio, no entanto, tentar descobrir quem, desde sempre, me espera naquele canto escuro, entre as floreiras e o asfalto, embaixo de minha janela.
25 julho 2002
18 julho 2002
A educação sexual e o uso do prazer
Em setembro, a versão sul-africana de "Vila Sésamo" terá uma nova personagem: uma menina portadora do vírus da Aids. O programa não dirá como a menina se contaminou, mas colocará material pedagógico à disposição de pais e educadores para que abordem a questão com as crianças. Hoje, 1 sul-africano em cada 10 é portador do vírus da Aids: é necessário promover uma prevenção precoce.
Por que não exportar a nova personagem para outros países em que "Vila Sésamo" é programado regularmente? A pergunta foi colocada aos internautas americanos: muitos declararam que talvez não seja o caso de encher a cabeça de crianças entre três e sete anos (o público-alvo do programa) com histórias que as levariam a ouvir falar de sexo e de drogas injetáveis.
Não é um drama que as crianças ouçam falar de sexo tão cedo. De qualquer forma, os colegas, a rua, os irmãos e as irmãs se encarregam disso. Acho mais preocupante que, logo na primeira vez em que as crianças ouvem falar de sexo, o tema seja o perigo da contaminação.
Alguns meses atrás, saiu, nos EUA, "Harmful to Minors - The Perils of Protecting Children from Sex" (danoso aos menores - os perigos de proteger as crianças do sexo), de Judith Levine. Chegando às livrarias no meio da revelação dos casos de abuso sexual na Igreja Católica americana, o livro foi recebido como um panfleto de circunstância (que não é).
Levine examina os programas de educação sexual propostos aos jovens americanos. Desde 1997, por decisão do Congresso, os cursos de educação sexual que receberam fundos do governo devem promover a abstinência sexual, não a contracepção ou o sexo protegido. Assim, escreve Levine, "num país em que 90% dos adultos têm relações sexuais antes do casamento e por volta de 10% são gays ou lésbicas", os educadores devem dizer às crianças que o sexo fora do casamento "tem provavelmente efeitos danosos psicológica e fisicamente" (palavras do regulamento de 1997).
Desencorajar o sexo fora do casamento é uma escolha moral legítima. Mas não deixa de parecer estranho que essa seja a mensagem oficial destinada às crianças, quando a prática da grande maioria dos adultos é outra. A contradição da lei americana evoca uma verdade mais geral: em matéria de sexo, com poucas exceções, só conseguimos transmitir aos jovens ora proibições, ora precauções e deterrências.
Num guia para os professores de educação sexual, Levine encontra uma lista que deveria ser discutida em aula. São as razões pelas quais os jovens têm relações sexuais precoces: "Para comunicar sentimentos de afeto e amor numa relação; para evitar ficar sozinho(a); para ser amado(a); para mostrar independência revoltando-se contra os pais, os professores ou outras figuras de autoridade; para manter uma relação; para mostrar que eles são "grandes'; para tornar-se pai ou mãe; para satisfazer a curiosidade". Há uma extraordinária omissão: que tal se os jovens transassem por prazer?
Nossa racionalidade é instrumental e nossas justificações estão sempre no futuro. Para nos sentirmos autorizados a agir, preferimos que nossos atos pareçam perseguir algum fim ou preparar algum momento ulterior. O que escapa a essa lógica é doentio. Assim, fumamos porque estamos nervosos, comemos porque somos estressados, nos masturbamos por angústia, olhamos porcarias na televisão por preguiça ou para conseguir dormir, dormimos por depressão, procuramos amigos por solidão, transamos por dever ou para relaxar, e por aí vai.
Aparentemente, nunca confessamos que agimos por prazer. Entende-se por quê: o prazer não serve para nada (não é instrumental) e não tem futuro (a fruição é imediata).
Será que aqui deveríamos invocar com orgulho a exceção brasileira? Afinal, não é verdade que, do lado de baixo do Equador, o prazer estaria em casa, autorizado e reconhecido (até demais)?
Certo, no Brasil, praticamos uma assídua retórica do prazer: queremos cervejinha gelada, caipirinha na praia e bunda gostosa. Mas é por que sabemos aproveitar a vida ou para confirmar a identidade nacional? O prazer é nossa experiência ou é um estereótipo que carregamos a tiracolo, como um mexicano passearia de sombreiro ou um francês de baguete?
Proliferam, hoje, saberes que tentam nos ensinar o prazer: como apreciar vinhos e comidas, como descobrir a sensualidade, como se comunicar com a natureza, como escutar música e olhar quadros. O resultado é que aprendemos sobretudo cacoetes de estilo: o que importa é que eu sou o cara que entende de vinhos, você entende de comida e ele, de música. A dita exceção brasileira talvez funcione um pouco do mesmo jeito: não é uma capacidade especial de fruir a vida, apenas o conforto de um clichê que confirma nossa identidade.
Brasileiros ou não, vivemos entre os abusos desregrados do prazer (desprazerosos, como bebedeiras, comilanças, overdoses e esfoladuras genitais), mil códigos de fruição que se tornam poses sociais e a incapacidade de justificar a experiência cotidiana pelos prazeres discretos que ela pode proporcionar.
Por que não exportar a nova personagem para outros países em que "Vila Sésamo" é programado regularmente? A pergunta foi colocada aos internautas americanos: muitos declararam que talvez não seja o caso de encher a cabeça de crianças entre três e sete anos (o público-alvo do programa) com histórias que as levariam a ouvir falar de sexo e de drogas injetáveis.
Não é um drama que as crianças ouçam falar de sexo tão cedo. De qualquer forma, os colegas, a rua, os irmãos e as irmãs se encarregam disso. Acho mais preocupante que, logo na primeira vez em que as crianças ouvem falar de sexo, o tema seja o perigo da contaminação.
Alguns meses atrás, saiu, nos EUA, "Harmful to Minors - The Perils of Protecting Children from Sex" (danoso aos menores - os perigos de proteger as crianças do sexo), de Judith Levine. Chegando às livrarias no meio da revelação dos casos de abuso sexual na Igreja Católica americana, o livro foi recebido como um panfleto de circunstância (que não é).
Levine examina os programas de educação sexual propostos aos jovens americanos. Desde 1997, por decisão do Congresso, os cursos de educação sexual que receberam fundos do governo devem promover a abstinência sexual, não a contracepção ou o sexo protegido. Assim, escreve Levine, "num país em que 90% dos adultos têm relações sexuais antes do casamento e por volta de 10% são gays ou lésbicas", os educadores devem dizer às crianças que o sexo fora do casamento "tem provavelmente efeitos danosos psicológica e fisicamente" (palavras do regulamento de 1997).
Desencorajar o sexo fora do casamento é uma escolha moral legítima. Mas não deixa de parecer estranho que essa seja a mensagem oficial destinada às crianças, quando a prática da grande maioria dos adultos é outra. A contradição da lei americana evoca uma verdade mais geral: em matéria de sexo, com poucas exceções, só conseguimos transmitir aos jovens ora proibições, ora precauções e deterrências.
Num guia para os professores de educação sexual, Levine encontra uma lista que deveria ser discutida em aula. São as razões pelas quais os jovens têm relações sexuais precoces: "Para comunicar sentimentos de afeto e amor numa relação; para evitar ficar sozinho(a); para ser amado(a); para mostrar independência revoltando-se contra os pais, os professores ou outras figuras de autoridade; para manter uma relação; para mostrar que eles são "grandes'; para tornar-se pai ou mãe; para satisfazer a curiosidade". Há uma extraordinária omissão: que tal se os jovens transassem por prazer?
Nossa racionalidade é instrumental e nossas justificações estão sempre no futuro. Para nos sentirmos autorizados a agir, preferimos que nossos atos pareçam perseguir algum fim ou preparar algum momento ulterior. O que escapa a essa lógica é doentio. Assim, fumamos porque estamos nervosos, comemos porque somos estressados, nos masturbamos por angústia, olhamos porcarias na televisão por preguiça ou para conseguir dormir, dormimos por depressão, procuramos amigos por solidão, transamos por dever ou para relaxar, e por aí vai.
Aparentemente, nunca confessamos que agimos por prazer. Entende-se por quê: o prazer não serve para nada (não é instrumental) e não tem futuro (a fruição é imediata).
Será que aqui deveríamos invocar com orgulho a exceção brasileira? Afinal, não é verdade que, do lado de baixo do Equador, o prazer estaria em casa, autorizado e reconhecido (até demais)?
Certo, no Brasil, praticamos uma assídua retórica do prazer: queremos cervejinha gelada, caipirinha na praia e bunda gostosa. Mas é por que sabemos aproveitar a vida ou para confirmar a identidade nacional? O prazer é nossa experiência ou é um estereótipo que carregamos a tiracolo, como um mexicano passearia de sombreiro ou um francês de baguete?
Proliferam, hoje, saberes que tentam nos ensinar o prazer: como apreciar vinhos e comidas, como descobrir a sensualidade, como se comunicar com a natureza, como escutar música e olhar quadros. O resultado é que aprendemos sobretudo cacoetes de estilo: o que importa é que eu sou o cara que entende de vinhos, você entende de comida e ele, de música. A dita exceção brasileira talvez funcione um pouco do mesmo jeito: não é uma capacidade especial de fruir a vida, apenas o conforto de um clichê que confirma nossa identidade.
Brasileiros ou não, vivemos entre os abusos desregrados do prazer (desprazerosos, como bebedeiras, comilanças, overdoses e esfoladuras genitais), mil códigos de fruição que se tornam poses sociais e a incapacidade de justificar a experiência cotidiana pelos prazeres discretos que ela pode proporcionar.
11 julho 2002
Realismo americano
Está aberta até 15 de setembro, no Metropolitan Museum de Nova York, uma notável retrospectiva de Thomas Eakins (1844-1916), o primeiro grande pintor realista americano.
Realista não quer dizer apenas figurativo. Há um quadro conhecido do realismo socialista ("Numa Escola para Meninas", de Ivan Alekseevic Vladimirov), em que professora e alunas (perfeitas) conversam debaixo de um retrato de Stálin e Lênin e de um cartaz com as palavras do líder: "Aprender, aprender e aprender". Será que é realista? Inversamente, as pingaradas de tinta num quadro de Jackson Pollock poderiam ser uma apresentação fidedigna dos transvios de nossos pensamentos -nesse sentido, uma obra realista.
Mas há um outro jeito de conceber o realismo, um jeito que talvez facilite nosso entendimento de Eakins. Posso considerar realistas as obras que ajudam o indivíduo a transformar a realidade de sua experiência numa história, ou seja, que fornecem elementos úteis para que ele atribua charme e valor a sua vida.
Faz tempo que não dispomos mais das grandes narrativas coletivas que justificavam quase tudo e todos. Ficamos com a tarefa de inventar, nós mesmos, uma razão individual para viver. Nessa altura, a literatura e a pintura "realistas" surgem como prontuários de pequenas fantasias. São catálogos de imagens e fragmentos de script graças aos quais aprendemos a contar nossa vida aos outros e, sobretudo, a nós mesmos, de maneira a não perder interesse em nossa história. Com isso, encontramos a força para levantar a cada manhã.
Ora, desde as primeiras décadas do século 20, uma parte conspícua das imagens e das histórias desses prontuários é americana. A cultura americana fornece os costumes, os diálogos, as músicas e os cenários da maioria dos roteiros com os quais sustentamos nossas vidas. Por quê? Parte da explicação está no "realismo" americano. E a coisa começou com Eakins.
Thomas Eakins (ao lado de seu contemporâneo, Winslow Homer) é o antepassado de dois pintores de espírito oposto, mas cuja combinação não pára de colorir os filmes de nossas vidas: Norman Rockwell, o pintor da América como sonho em cor-de-rosa, e Edward Hopper, o pintor da América como asperidade solitária. Eakins transmitiu a ambos uma lição de imanência: o valor da experiência humana é intrínseco. A felicidade de Rockwell parece um pouco babaca justamente porque é feita só do prazer de viver um cotidiano simples e pacificado. As paisagens urbanas de Hopper são tétricas justamente porque não aludem a nada, são assombradas sem assombrações. No realismo do cinema americano da época, aparece a mesma dualidade, com a mesma valorização intrínseca do bem e do mal. A Rockwell corresponde Frank Capra. A Hopper corresponde Howard Hawks dirigindo Bogart e Bacall em "À Beira do Abismo".
Eakins começou concentrando-se na experiência nacional: "Se a América deve produzir grandes pintores (...), o primeiro desejo deles deverá ser ficar na América para olhar mais fundo no coração da vida americana". Foi assim que ele trouxe para a pintura o cotidiano dos EUA: o beisebol, o boxe, o remo.
Ao mesmo tempo, seus retratos eram tão pouco complacentes que muitos clientes os esqueciam discretamente no sótão. O poeta Walt Whitman escreveu: "Só conheço um artista, Tom Eakins, que resistiu à tentação de ver o que ele pensava que devesse ser visto e preferiu ver o que é".
Em suma, a pintura de Eakins valorizou a experiência comum, sem recorrer a transcendências ideais ou divinas. Com ele, fragmentos da banalidade americana começaram a constituir um repertório de imagens dotadas de dignidade estética. Qualquer um poderia reclamar a mesma dignidade para sua vida, adotando algum fragmento desse repertório. Por isso inimigos jurados dos EUA podem desfilar, a cada dia, com camisetas dos Lakers ou dos New York Yankees.
O dólar declina. Aumenta o desemprego. Altera-se o equilíbrio étnico do país. Wall Street perde a confiança dos investidores. Os terroristas ameaçam a segurança nacional. Muitos, preocupados ou felizes, antevêem a decadência. Mas o poderio dos EUA talvez não provenha das Forças Armadas, da política (frequentemente medíocre) ou de Wall Street (que já despencou outras vezes). Talvez o âmago desse poderio seja cultural: um efeito do realismo americano, que permeia as narrativas com as quais qualquer indivíduo (americano ou não) tenta dar à sua vida a dignidade de um pequeno romance ou de um pequeno filme.
A retrospectiva de Eakins no Metropolitan não é um fato isolado. Entre 2000 e março passado, uma exposição itinerante de Norman Rockwell entusiasmou o público e, fato inédito para Rockwell, a crítica. Hollywood nunca esteve tão presente no imaginário ocidental. E, nos últimos anos, a literatura americana produziu uma safra extraordinária de romances realistas (sugiro: "Cold Mountain", de Charles Frazier, "Empire Falls", de Richard Russo, "The Corrections", de Jonathan Franzen etc.).
Os EUA talvez estejam em crise, mas não o realismo americano.
Realista não quer dizer apenas figurativo. Há um quadro conhecido do realismo socialista ("Numa Escola para Meninas", de Ivan Alekseevic Vladimirov), em que professora e alunas (perfeitas) conversam debaixo de um retrato de Stálin e Lênin e de um cartaz com as palavras do líder: "Aprender, aprender e aprender". Será que é realista? Inversamente, as pingaradas de tinta num quadro de Jackson Pollock poderiam ser uma apresentação fidedigna dos transvios de nossos pensamentos -nesse sentido, uma obra realista.
Mas há um outro jeito de conceber o realismo, um jeito que talvez facilite nosso entendimento de Eakins. Posso considerar realistas as obras que ajudam o indivíduo a transformar a realidade de sua experiência numa história, ou seja, que fornecem elementos úteis para que ele atribua charme e valor a sua vida.
Faz tempo que não dispomos mais das grandes narrativas coletivas que justificavam quase tudo e todos. Ficamos com a tarefa de inventar, nós mesmos, uma razão individual para viver. Nessa altura, a literatura e a pintura "realistas" surgem como prontuários de pequenas fantasias. São catálogos de imagens e fragmentos de script graças aos quais aprendemos a contar nossa vida aos outros e, sobretudo, a nós mesmos, de maneira a não perder interesse em nossa história. Com isso, encontramos a força para levantar a cada manhã.
Ora, desde as primeiras décadas do século 20, uma parte conspícua das imagens e das histórias desses prontuários é americana. A cultura americana fornece os costumes, os diálogos, as músicas e os cenários da maioria dos roteiros com os quais sustentamos nossas vidas. Por quê? Parte da explicação está no "realismo" americano. E a coisa começou com Eakins.
Thomas Eakins (ao lado de seu contemporâneo, Winslow Homer) é o antepassado de dois pintores de espírito oposto, mas cuja combinação não pára de colorir os filmes de nossas vidas: Norman Rockwell, o pintor da América como sonho em cor-de-rosa, e Edward Hopper, o pintor da América como asperidade solitária. Eakins transmitiu a ambos uma lição de imanência: o valor da experiência humana é intrínseco. A felicidade de Rockwell parece um pouco babaca justamente porque é feita só do prazer de viver um cotidiano simples e pacificado. As paisagens urbanas de Hopper são tétricas justamente porque não aludem a nada, são assombradas sem assombrações. No realismo do cinema americano da época, aparece a mesma dualidade, com a mesma valorização intrínseca do bem e do mal. A Rockwell corresponde Frank Capra. A Hopper corresponde Howard Hawks dirigindo Bogart e Bacall em "À Beira do Abismo".
Eakins começou concentrando-se na experiência nacional: "Se a América deve produzir grandes pintores (...), o primeiro desejo deles deverá ser ficar na América para olhar mais fundo no coração da vida americana". Foi assim que ele trouxe para a pintura o cotidiano dos EUA: o beisebol, o boxe, o remo.
Ao mesmo tempo, seus retratos eram tão pouco complacentes que muitos clientes os esqueciam discretamente no sótão. O poeta Walt Whitman escreveu: "Só conheço um artista, Tom Eakins, que resistiu à tentação de ver o que ele pensava que devesse ser visto e preferiu ver o que é".
Em suma, a pintura de Eakins valorizou a experiência comum, sem recorrer a transcendências ideais ou divinas. Com ele, fragmentos da banalidade americana começaram a constituir um repertório de imagens dotadas de dignidade estética. Qualquer um poderia reclamar a mesma dignidade para sua vida, adotando algum fragmento desse repertório. Por isso inimigos jurados dos EUA podem desfilar, a cada dia, com camisetas dos Lakers ou dos New York Yankees.
O dólar declina. Aumenta o desemprego. Altera-se o equilíbrio étnico do país. Wall Street perde a confiança dos investidores. Os terroristas ameaçam a segurança nacional. Muitos, preocupados ou felizes, antevêem a decadência. Mas o poderio dos EUA talvez não provenha das Forças Armadas, da política (frequentemente medíocre) ou de Wall Street (que já despencou outras vezes). Talvez o âmago desse poderio seja cultural: um efeito do realismo americano, que permeia as narrativas com as quais qualquer indivíduo (americano ou não) tenta dar à sua vida a dignidade de um pequeno romance ou de um pequeno filme.
A retrospectiva de Eakins no Metropolitan não é um fato isolado. Entre 2000 e março passado, uma exposição itinerante de Norman Rockwell entusiasmou o público e, fato inédito para Rockwell, a crítica. Hollywood nunca esteve tão presente no imaginário ocidental. E, nos últimos anos, a literatura americana produziu uma safra extraordinária de romances realistas (sugiro: "Cold Mountain", de Charles Frazier, "Empire Falls", de Richard Russo, "The Corrections", de Jonathan Franzen etc.).
Os EUA talvez estejam em crise, mas não o realismo americano.
04 julho 2002
A festa da final, entre São Paulo e Nova York
Há anos, a cada mês, viajo entre São Paulo e Nova York. Volta e meia, antes de enfiar a cara num livro, converso com meus vizinhos de assento, que, naturalmente, me perguntam se estou indo ou voltando. Querem saber onde moro.
Inevitavelmente, a conversa encaminha-se para uma comparação, com a lista dos encantos e dos defeitos respectivos de São Paulo e de Nova York. Mas, no discurso da maioria de meus companheiros de viagem, não reconheço nem São Paulo, nem Nova York. A razão que me prende às duas cidades não está em nenhuma das listas propostas.
Na verdade, gosto de São Paulo e de Nova York por algo que elas têm em comum, e não se trata das coisas desejáveis que nelas é possível encontrar e, eventualmente, conseguir. De que se trata, então?
No domingo passado, de manhã bem cedo, nas ruas desertas e já quentes de Manhattan, só circulavam camisas amarelas: brasileiros a caminho do lugar onde assistiriam à final. Alguns procuravam os restaurantes que abriam às 6h, oferecendo telão e café completo (até US$ 50, um roubo). Outros iam para a casa de amigos a fim de torcer em boa companhia.
Depois das 10h, na seção da rua 46 conhecida como "Little Brazil", começou a festa: batucada, crianças, apitos, pulos e trenzinhos de Carnaval. A maioria era de imigrantes: brasileiros de todos os Estados, de todas as idades e de todas as camadas da classe média, que vieram tentar fortuna, na esperança de que fazer a América do Norte fosse mais fácil do que fazer a América do Sul.
A festa era parecida com qualquer festa de uma das diferentes comunidades que compõem o mosaico americano -pelo clima e pelas decorações, poderia ter sido um baile na "Little Italy" de Boston. A alegria era ora contida e quase melancólica, ora exasperada e quase raivosa -em ambos os casos, misteriosamente comovedora.
Os brasileiros, vestindo as cores nacionais, embrulhados em bandeiras de vário feitio, dançavam por nostalgia da terra deixada: celebravam, assim, o vilarejo, o calor das famílias extensas, a clara definição das tarefas da vida e do que se precisa para cumpri-las, o conforto de uma comunidade em que os lugares são poucos, mas, em compensação, mais bem definidos. Eles também dançavam embaixo das bandeiras americanas que, nos adornos da rua, se alternavam com as brasileiras. Aliás, alguns agitavam as duas bandeiras, uma em cada mão. O imigrante é um protótipo da subjetividade moderna: nele a nostalgia convive e luta com o sonho de ir embora, de inventar uma vida nova, de surpreender aos outros e a si mesmo.
As grandes cidades são os lugares que mais seduzem o imigrante -seja ele brasileiro em Nova York ou nordestino em São Paulo. É preciso muita gente em pouco espaço para inventar uma sociedade em que o lugar de cada um não dependa mais de origem e tradição, mas da consideração dos outros. Essas cidades assumem a aparência de gigantescas vitrinas: elas prezam e expõem uma infinidade de objetos, prometendo que os cidadãos serão reconhecidos e valorizados pelas posses que conquistarão. Em geral, são objetos que faziam falta no lugar natal e que alimentam os devaneios dos que lá ficaram.
Paradoxo: na fantasia do imigrante, ser feliz significa poder voltar (se possível, rico às mãos-cheias) para onde ele não conseguiu ficar. A salvaguarda contra a nostalgia é a suposição de que os outros, no vilarejo, sintam inveja dele. O imigrante, mesmo fracassando no novo lugar, é consolado pela idéia de que, em sua comunidade de origem, ele se tornou "alguém" in absentia, graças à inveja dos que permaneceram.
Hoje, a seleção é campeã: como escreveu José Roberto Torero na Folha de segunda, o Jardim Irene é a capital do mundo. Para o imigrante, é, ao mesmo tempo, uma jubilação e um drama. Por isso, talvez, a alegria da festa parecesse contida ou exasperada. O orgulho do país nativo compromete a humildade que é necessária para integrar-se e, quando o vilarejo triunfa, o imigrante pode duvidar da inveja de quem ficou na terra: vacilam as forças que permitem continuar a aventura.
O orgulho coloca o imigrante numa terra de ninguém: impede que ele se integre, quando já é tarde demais para voltar. Parêntese: é essa derrelição que subleva os imigrantes norte-africanos na Europa. Os orgulhosos sonhos pan-arabistas impediram que eles se moldassem à sociedade para onde viajaram. E, aos olhos de quem permaneceu em casa, eles são mais desertores do que objetos de inveja.
O encanto de Nova York e de São Paulo não está nas vitrinas e nos objetos enumerados por meus companheiros de viagem. Não está nas lojas de charutos, nas limusines e nos restaurantes de luxo. Ele está nos povos imigrantes. Sinto-me em casa, em Nova York como em São Paulo, pelos milhões de esperançosos que vieram buscar liberdades e que ficam, como baleias encalhadas na praia, ofegando entre o sonho e a nostalgia. São eles que conferem aos ares paulistano e nova-iorquino a densidade, inconfundível e extraordinária, do desejo humano.
Inevitavelmente, a conversa encaminha-se para uma comparação, com a lista dos encantos e dos defeitos respectivos de São Paulo e de Nova York. Mas, no discurso da maioria de meus companheiros de viagem, não reconheço nem São Paulo, nem Nova York. A razão que me prende às duas cidades não está em nenhuma das listas propostas.
Na verdade, gosto de São Paulo e de Nova York por algo que elas têm em comum, e não se trata das coisas desejáveis que nelas é possível encontrar e, eventualmente, conseguir. De que se trata, então?
No domingo passado, de manhã bem cedo, nas ruas desertas e já quentes de Manhattan, só circulavam camisas amarelas: brasileiros a caminho do lugar onde assistiriam à final. Alguns procuravam os restaurantes que abriam às 6h, oferecendo telão e café completo (até US$ 50, um roubo). Outros iam para a casa de amigos a fim de torcer em boa companhia.
Depois das 10h, na seção da rua 46 conhecida como "Little Brazil", começou a festa: batucada, crianças, apitos, pulos e trenzinhos de Carnaval. A maioria era de imigrantes: brasileiros de todos os Estados, de todas as idades e de todas as camadas da classe média, que vieram tentar fortuna, na esperança de que fazer a América do Norte fosse mais fácil do que fazer a América do Sul.
A festa era parecida com qualquer festa de uma das diferentes comunidades que compõem o mosaico americano -pelo clima e pelas decorações, poderia ter sido um baile na "Little Italy" de Boston. A alegria era ora contida e quase melancólica, ora exasperada e quase raivosa -em ambos os casos, misteriosamente comovedora.
Os brasileiros, vestindo as cores nacionais, embrulhados em bandeiras de vário feitio, dançavam por nostalgia da terra deixada: celebravam, assim, o vilarejo, o calor das famílias extensas, a clara definição das tarefas da vida e do que se precisa para cumpri-las, o conforto de uma comunidade em que os lugares são poucos, mas, em compensação, mais bem definidos. Eles também dançavam embaixo das bandeiras americanas que, nos adornos da rua, se alternavam com as brasileiras. Aliás, alguns agitavam as duas bandeiras, uma em cada mão. O imigrante é um protótipo da subjetividade moderna: nele a nostalgia convive e luta com o sonho de ir embora, de inventar uma vida nova, de surpreender aos outros e a si mesmo.
As grandes cidades são os lugares que mais seduzem o imigrante -seja ele brasileiro em Nova York ou nordestino em São Paulo. É preciso muita gente em pouco espaço para inventar uma sociedade em que o lugar de cada um não dependa mais de origem e tradição, mas da consideração dos outros. Essas cidades assumem a aparência de gigantescas vitrinas: elas prezam e expõem uma infinidade de objetos, prometendo que os cidadãos serão reconhecidos e valorizados pelas posses que conquistarão. Em geral, são objetos que faziam falta no lugar natal e que alimentam os devaneios dos que lá ficaram.
Paradoxo: na fantasia do imigrante, ser feliz significa poder voltar (se possível, rico às mãos-cheias) para onde ele não conseguiu ficar. A salvaguarda contra a nostalgia é a suposição de que os outros, no vilarejo, sintam inveja dele. O imigrante, mesmo fracassando no novo lugar, é consolado pela idéia de que, em sua comunidade de origem, ele se tornou "alguém" in absentia, graças à inveja dos que permaneceram.
Hoje, a seleção é campeã: como escreveu José Roberto Torero na Folha de segunda, o Jardim Irene é a capital do mundo. Para o imigrante, é, ao mesmo tempo, uma jubilação e um drama. Por isso, talvez, a alegria da festa parecesse contida ou exasperada. O orgulho do país nativo compromete a humildade que é necessária para integrar-se e, quando o vilarejo triunfa, o imigrante pode duvidar da inveja de quem ficou na terra: vacilam as forças que permitem continuar a aventura.
O orgulho coloca o imigrante numa terra de ninguém: impede que ele se integre, quando já é tarde demais para voltar. Parêntese: é essa derrelição que subleva os imigrantes norte-africanos na Europa. Os orgulhosos sonhos pan-arabistas impediram que eles se moldassem à sociedade para onde viajaram. E, aos olhos de quem permaneceu em casa, eles são mais desertores do que objetos de inveja.
O encanto de Nova York e de São Paulo não está nas vitrinas e nos objetos enumerados por meus companheiros de viagem. Não está nas lojas de charutos, nas limusines e nos restaurantes de luxo. Ele está nos povos imigrantes. Sinto-me em casa, em Nova York como em São Paulo, pelos milhões de esperançosos que vieram buscar liberdades e que ficam, como baleias encalhadas na praia, ofegando entre o sonho e a nostalgia. São eles que conferem aos ares paulistano e nova-iorquino a densidade, inconfundível e extraordinária, do desejo humano.
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