Está aberta até 15 de setembro, no Metropolitan Museum de Nova York, uma notável retrospectiva de Thomas Eakins (1844-1916), o primeiro grande pintor realista americano.
Realista não quer dizer apenas figurativo. Há um quadro conhecido do realismo socialista ("Numa Escola para Meninas", de Ivan Alekseevic Vladimirov), em que professora e alunas (perfeitas) conversam debaixo de um retrato de Stálin e Lênin e de um cartaz com as palavras do líder: "Aprender, aprender e aprender". Será que é realista? Inversamente, as pingaradas de tinta num quadro de Jackson Pollock poderiam ser uma apresentação fidedigna dos transvios de nossos pensamentos -nesse sentido, uma obra realista.
Mas há um outro jeito de conceber o realismo, um jeito que talvez facilite nosso entendimento de Eakins. Posso considerar realistas as obras que ajudam o indivíduo a transformar a realidade de sua experiência numa história, ou seja, que fornecem elementos úteis para que ele atribua charme e valor a sua vida.
Faz tempo que não dispomos mais das grandes narrativas coletivas que justificavam quase tudo e todos. Ficamos com a tarefa de inventar, nós mesmos, uma razão individual para viver. Nessa altura, a literatura e a pintura "realistas" surgem como prontuários de pequenas fantasias. São catálogos de imagens e fragmentos de script graças aos quais aprendemos a contar nossa vida aos outros e, sobretudo, a nós mesmos, de maneira a não perder interesse em nossa história. Com isso, encontramos a força para levantar a cada manhã.
Ora, desde as primeiras décadas do século 20, uma parte conspícua das imagens e das histórias desses prontuários é americana. A cultura americana fornece os costumes, os diálogos, as músicas e os cenários da maioria dos roteiros com os quais sustentamos nossas vidas. Por quê? Parte da explicação está no "realismo" americano. E a coisa começou com Eakins.
Thomas Eakins (ao lado de seu contemporâneo, Winslow Homer) é o antepassado de dois pintores de espírito oposto, mas cuja combinação não pára de colorir os filmes de nossas vidas: Norman Rockwell, o pintor da América como sonho em cor-de-rosa, e Edward Hopper, o pintor da América como asperidade solitária. Eakins transmitiu a ambos uma lição de imanência: o valor da experiência humana é intrínseco. A felicidade de Rockwell parece um pouco babaca justamente porque é feita só do prazer de viver um cotidiano simples e pacificado. As paisagens urbanas de Hopper são tétricas justamente porque não aludem a nada, são assombradas sem assombrações. No realismo do cinema americano da época, aparece a mesma dualidade, com a mesma valorização intrínseca do bem e do mal. A Rockwell corresponde Frank Capra. A Hopper corresponde Howard Hawks dirigindo Bogart e Bacall em "À Beira do Abismo".
Eakins começou concentrando-se na experiência nacional: "Se a América deve produzir grandes pintores (...), o primeiro desejo deles deverá ser ficar na América para olhar mais fundo no coração da vida americana". Foi assim que ele trouxe para a pintura o cotidiano dos EUA: o beisebol, o boxe, o remo.
Ao mesmo tempo, seus retratos eram tão pouco complacentes que muitos clientes os esqueciam discretamente no sótão. O poeta Walt Whitman escreveu: "Só conheço um artista, Tom Eakins, que resistiu à tentação de ver o que ele pensava que devesse ser visto e preferiu ver o que é".
Em suma, a pintura de Eakins valorizou a experiência comum, sem recorrer a transcendências ideais ou divinas. Com ele, fragmentos da banalidade americana começaram a constituir um repertório de imagens dotadas de dignidade estética. Qualquer um poderia reclamar a mesma dignidade para sua vida, adotando algum fragmento desse repertório. Por isso inimigos jurados dos EUA podem desfilar, a cada dia, com camisetas dos Lakers ou dos New York Yankees.
O dólar declina. Aumenta o desemprego. Altera-se o equilíbrio étnico do país. Wall Street perde a confiança dos investidores. Os terroristas ameaçam a segurança nacional. Muitos, preocupados ou felizes, antevêem a decadência. Mas o poderio dos EUA talvez não provenha das Forças Armadas, da política (frequentemente medíocre) ou de Wall Street (que já despencou outras vezes). Talvez o âmago desse poderio seja cultural: um efeito do realismo americano, que permeia as narrativas com as quais qualquer indivíduo (americano ou não) tenta dar à sua vida a dignidade de um pequeno romance ou de um pequeno filme.
A retrospectiva de Eakins no Metropolitan não é um fato isolado. Entre 2000 e março passado, uma exposição itinerante de Norman Rockwell entusiasmou o público e, fato inédito para Rockwell, a crítica. Hollywood nunca esteve tão presente no imaginário ocidental. E, nos últimos anos, a literatura americana produziu uma safra extraordinária de romances realistas (sugiro: "Cold Mountain", de Charles Frazier, "Empire Falls", de Richard Russo, "The Corrections", de Jonathan Franzen etc.).
Os EUA talvez estejam em crise, mas não o realismo americano.
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