15 agosto 2002

A psicologia forense, a origem do mal e a culpa dos outros

Desde o começo dos anos 90, nos EUA, há uma proliferação de romances cujos heróis são psicólogos ou psiquiatras forenses. Os leitores de histórias policiais conhecem os protagonistas clássicos: o detetive que leva e dá pauladas até que as coisas se esclareçam (estilo Mickey Spillane), o advogado de defesa à Perry Mason e o investigador que pensa e computa (uma tradição que vai dos contos de Edgar Poe até Nero Wolfe, passando por Sherlock Holmes). A eles acrescenta-se, hoje, uma nova figura: o "profiler", o clínico que lê no crime a dinâmica exclusiva de uma mente criminosa.

Graças a esses psicólogos forenses, na última década, a psicologia clínica tornou-se depositária da questão da origem do mal: é muita honra. Mas é também uma armadilha que funciona assim. Acho que entendo a angústia e a depressão porque já estive ansioso e triste alguma vez. Agora, o que é esquartejar e comer um pedaço de minha vítima? Isso não consigo vislumbrar. E gostaria que a psicologia me explicasse -não tanto para entender quanto para me exonerar. Os heróis da nova onda de romances policiais me dirão as razões pelas quais os monstros torturam, amputam, sangram e estupram. Com isso, confirmarão que eu não tenho nada a ver com isso.

Estamos no ápice da confiança concedida à psicologia clínica, que deve nos dizer de onde vem a maldade. Mas estamos também no ápice da negação do aporte mais inquietante da mesma psicologia, pelo qual, em princípio, não há loucura que seja completamente estrangeira ao homem normal. Ou seja, a psicologia diz que compartilhamos os mesmos monstros com o criminoso e o maluco, apenas somos mais hábeis no manuseio das rédeas. Mas, nos romances "psicopoliciais", o psicólogo forense, revelando a verdade oculta dos assassinos, proclama nossa inocência.

Há exceções a essa regra. Um psiquiatra forense (de verdade), Keith Ablow, escreveu três romances -"Compulsion", "Projection", "Denial", infelizmente ainda indisponíveis em português-, que poderiam servir de livros de texto de psicologia clínica. O herói é Frank Clevenger, um psiquiatra forense dramaticamente perturbado pelo vai-e-vem entre sua própria análise, as lembranças de sua infância e a interpretação das palavras e dos atos de suspeitos e criminosos. Clevenger, atormentado cocainômano e alcoólatra em recuperação, sabe que o mal é compreendido só por quem não hesita em olhar dentro de si.

Lembra o "Silêncio dos Inocentes"? É por ele mesmo ser canibal que o dr. Lecter, psiquiatra, pôde adivinhar quem era o monstro que Clarice estava procurando. Como todo verdadeiro clínico (forense ou não), ele se servia de sua loucura (que, no caso, era conspícua) para entender e interpretar.
Essa diferença entre os romances de Ablow e os outros não impede que todos promovam uma mesma idéia, que é hoje recorrente nas imagens populares do trabalho psicoterápico: trata-se da idéia de que o mal é reciclado. Ou seja, tanto o sofrimento neurótico quanto a violência desinibida e criminosa seriam os efeitos diretos de algum mal que nos foi feito.

Viva o "transtorno pós-traumático": seja qual for nosso jeito, ficamos assim por causa de um trauma. A mente é um livro-caixa, com entradas e saídas: atrás de cada sofrimento, estranheza ou malvadez, deve haver alguma ofensa passada. Nossos sintomas e nossas aberrações seriam compensações ou retribuições: os que foram pouco ofendidos sofrem da reminiscência da injúria passada e os que passaram por abusos violentos atuam com a crueldade da qual já foram vítimas. Fomos maltratados quando crianças. Por isso temos medo do escuro ou então cortamos a garganta da vizinha.

Ora, de tudo que aprendi em minha formação clínica, há uma regra que se verifica a cada vez: nossos males são efeitos de nossas interpretações (mais ou menos capengas) do que os outros fizeram conosco ou quiseram de nós. Não são consequências diretas das ações dos outros.

Por isso é possível mudar. Por isso o passado não constitui propriamente um destino: porque nunca somos apenas o efeito dos abusos sofridos. Em alguma medida, sempre decidimos o sentido e o alcance que atribuímos à violência da qual fomos vítimas. Somos, portanto, os artesãos de nossas reações: escolhemos a vingança violenta contra o mundo ou uma vida consagrada a lamber nossas feridas. Ou, ainda, a coragem de ir em frente.

Em matéria de psicologia clínica, vale um ditado que escutei pouco tempo atrás, no norte rural do Estado de Nova York. Diz assim: "Não há como arregaçar as mangas se você continua apontando seus dedos aos outros para culpá-los".

P.S.: Muitos "psicopoliciais" são acessíveis em português. Há os livros de James Patterson, cujo Alex Cross, doutor em psicologia, foi levado para o cinema por Morgan Freeman, em "Beijos que Matam" e em "Na Teia da Aranha". Há as histórias do psicólogo Alex Delaware, por Jonathan Kellerman, as de Alan Gregory, por Stephen White, e as de Lincoln Rhymes, por Jeffery Deaver. Boa leitura.

Um comentário:

  1. Contardo,
    Teu texto trouxe reflexoes interessantes. Estou fazendo um estagio com um psicologo forense aqui na Inglaterra e tenho me defrontado com uma area nova e com experiencias que em alguns momentos entram em conflito com a minha leitura psicanalitica.
    Visito prisoes e acompanho nas entrevistas e aplicacoes de testes psicologicos para o parecer. Uma das minha angustias 'e que o trabalho do psicologo forense fica restrito a uma avaliacao e essa em muitos momentos 'e semelhante a avaliacao psiquiatrica.
    Contudo, acredito que tive sorte e estou estagiando com um psicologo que se permite o questionamento e a duvida, e que nao se coloca em uma postura de um saber total.
    Outra questao 'e que o parecer psicologico, mais do que explicar a mente do sujeito, deve dizer se esse apresenta risco ou nao para a sociedade (algo extremamente dificil de afirmar).
    Posso dizer que 'e uma area interessantissima e que estou me apaixonando. Vou procurar os livros. Obrigado pelas dicas.

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