1) Liberalismo
O liberalismo promoveu uma idéia curiosa: para fazer a felicidade de todos (ou, ao menos, da maioria), não seria necessário decidir qual é o bem comum e, logo, impor aos cidadãos que se esforçassem para realizá-lo. Seria suficiente que cada um se preocupasse com seus interesses e seu bem-estar. Essa atitude espontânea garantiria o melhor mundo possível para todos. Afinal, nenhum malandro seria burro (não é?) a ponto de perseguir seu interesse particular de maneira excessiva, pois isso comprometeria o bem-estar dos outros e produziria conflitos que reverteriam contra o suposto malandro.
Ora, o liberalismo, aparentemente, pegou feio. Não paro de encontrar pessoas convencidas de que, cuidando só de seus interesses, elas, no mínimo, não fazem mal a ninguém.
Converso com M., que dirige o táxi que me leva a Guarulhos. Falamos das perspectivas políticas. Ele está indignado com a corrupção das altas e das baixas esferas da política, convencido de que, sem ladrões, o país avançaria e resolveríamos nossos problemas. Concordo, mas aponto que, mesmo calculando generosamente, o dinheiro que some na corrupção não seria suficiente para mudar a cara do Brasil. Sem dúvida, deve ser bem inferior ao dinheiro que o governo deixa de arrecadar por causa da sonegação banal: rendas não declaradas, notas fiscais que só aparecem sob pedido e por aí vai.
M. aceita essa idéia com gosto e lança-se numa diatribe contra os sonegadores, inimigos do povo brasileiro tanto quanto os corruptos. Pergunto a M. quanto ele paga de Imposto de Renda. Ganho a famosa resposta: "Não adianta pagar, porque nada volta para a gente". Alego que não adianta esperar que algo volte, se a gente não paga.
A conversa pára. Depois de um silêncio perplexo, M. proclama que, de qualquer forma, se os Estados Unidos gastassem menos em armamentos, se não insistissem em querer ser os mais fortes do mundo (intenção explícita da doutrina Bush), aí eles teriam dinheiro suficiente para ajudar todo o mundo e acabar com a fome e a miséria do planeta inteiro.
Não sei qual será a escolha eleitoral de M.. Em todo caso, ele votará convencido de que está se pronunciando contra a corrupção, a favor de mais justiça e de mais independência nacional.
Essa história tem três morais. Primeira: a democracia formal está forte; a concreta, nem tanto. Segunda: os espíritos são nobres, a carne segue fraca. Terceira: o nacionalismo brasileiro pode ser férvido, mas a experiência de uma comunidade de destino ainda está longe.
2) Imigrantes
Em Boston e Nova York, os brasileiros devidamente registrados votarão para presidente. A comunidade que vive nas duas cidades e em suas proximidades deve ser próxima de 500 mil. Desses, votarão, mais ou menos, 20 mil, o que já representa um sucesso das autoridades consulares. Afinal, muitos não têm documentos de imigração e preferem não se manifestar. Seu receio é sem fundamento, pois em nenhum caso o consulado brasileiro entregaria uma lista de cidadãos aos serviços americanos de imigração. Mas a desconfiança é compreensível.
A maioria dos imigrantes nos Estados Unidos votarão divididos entre dois sentimentos. Querem que o Brasil mude, rápida e substancialmente, nem tanto para eles voltarem (muitos já sabem que, se os EUA permitirem, ficarão para sempre ou quase), mas, por assim dizer, para o país tornar-se um lugar de onde não teriam saído. Votarão, sem ressentimento, para que exista um Brasil de onde não teriam viajado. Pela urgência desse desejo de mudança, a maioria dos imigrantes votaria em Lula.
Mas os Estados Unidos são, para eles, o modelo de um lugar onde se sentiram não apenas recompensados por salários mais justos, mas reconhecidos como cidadãos. Paradoxo: às vezes, sentiram-se mais em casa estando nos EUA sem papéis do que nas margens maltratadas da sociedade brasileira. Como muitos outros imigrantes antes deles, os brasileiros nos Estados Unidos já são, aos poucos, brasileiro-americanos. Muitos lêem, perplexos, nos jornais on-line, a suficiência do anti-americanismo nacional. Parece-lhes uma segunda traição: depois de tê-los expulsado, o Brasil condena o lugar para onde foram.
3) Sem garantia
Discuto eleições com amigos. Alguém declara, firme: o que importa é saber qual é o candidato dos trabalhadores e dos deserdados e qual é o candidato dos abastados e poderosos. Implícito: uma vez isso decidido, a escolha moral será simples, estaremos, como na letra de "Guantanamera", "con los pobres de la tierra".
Sinto nostalgia dos tempos em que a resposta a essas perguntas devia ser, além de clara, decisiva. A segunda metade do século 20, aos poucos, nos privou desse conforto.
Coitados de nós, modernos. Foi um esforço de séculos entender que o poder, em si, não constitui uma garantia moral: o poderoso pode ter a espada na mão, mas nem por isso é dono do bem. Agora, à força de totalitarismos populares e ditaduras populistas, descobrimos que a qualidade de oprimido e de explorado tampouco constitui, em si, uma garantia moral.
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