24 outubro 2002

Conversas sobre eleições e cidadania

Domingo , num restaurante da Nona Avenida, em Nova York, conversei sobre as eleições com L.R., 30, músico, brasileiro. Ele chegou aos EUA em 1993 e tem, hoje, dupla nacionalidade.

L.R. não votou no primeiro turno e não votará no segundo. Não foi por falta de ter retirado seu título de eleitor no consulado. Nada disso: ele não votou e não votará porque não se reconhece o direito de votar: "Não me parece justo. Faria uma escolha da qual não encararia as consequências. Voto em Fulano, o país vai à m..., e eu, aqui, tranquilo. Além disso, não sei se a gente ainda é verdadeiramente cidadão quando não entra com uma cota. Claro que sou brasileiro, mas pago meus impostos aqui, não no Brasil. Quem não paga imposto não é plenamente cidadão".

É óbvio que L. não pretende excluir do voto quem não tem renda para declarar. Sua idéia é a seguinte: contribuir, de alguma forma, na invenção do país é a condição para opinar sobre seu rumo. No caso, pagar os impostos é a contribuição mínima esperada de quem ganha mais do que o necessário.

Ao contrário de um absenteísta, L.R. não vota porque leva o voto a sério. Para estabelecer a legitimidade das urnas, não lhe basta que a escolha do eleitor seja secreta e livre. Ele propõe que, para votar, seja obrigatório pertencer concretamente à comunidade. Por que alguém se pronunciaria sobre o futuro de nossa comunidade, se ele não está disposto a dar sua contribuição para esse futuro? É o espírito do discurso de posse de J.F. Kennedy, em 1961: "Não pergunte o que o país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo o país".

Que ele tenha razão ou não, L.R. tem toda a minha simpatia. Mas, depois de escutar suas reflexões, voltei para casa preocupado. Pensava numa outra conversa, três dias antes, em São Paulo, com um comerciante dos Jardins, que é uma presença amigável perto de minha casa.
O comerciante queixava-se de que, nos 20 anos durante os quais conseguiu manter sua loja, ele não se tornou rico: ainda batalha no fim do mês e culpa o governo por isso. Está na hora de mudar: quem sabe um governo completamente outro permita, enfim, que ele prospere como acha que merece. O poder central é o culpado por ele não ter alcançado seus sonhos, e o poder central também é a solução.

No começo, há um ato de fé num sistema de recompensas de tipo divino: trabalhei 20 anos e mereço, pouco importa considerar se escolhi o produto certo ou se soube competir com a concorrência. No fim, outro ato de fé: a esperança é depositada no governo, como se ele fosse não apenas o representante de nossas vontades mas uma entidade divina, operando por milagres.
É a herança do Brasil colônia: o governo não somos nós, não emana de nós e não nos representa.

É Lisboa, que não se confunde nem um pouco com nossa comunidade. Lisboa, Brasília ou Washington são responsáveis por nossos males. Roubam de nós e, portanto, na hora da dificuldade, têm o dever de nos ajudar. Nós não lhes devemos nada: são elas que nos devem. Outra herança do sonho colonial: se alguém não prospera, a culpa é do governo. No paraíso terrestre, se as plantas deixam de crescer, não é por falta de adubo ou pelo pouco cuidado dos homens: é sempre por maldade de uma divindade invejosa. Quem sabe uma nova divindade seja mais indulgente conosco?

Durante a conversa, uma amiga entrou na loja e o papo continuou, animado, entre a amiga, serrista, e o comerciante, lulista pelas razões mencionadas. A amiga entrara na loja para escolher um presente. Comprou e, receosa de que o presenteado não gostasse, pediu a nota fiscal, para que, eventualmente, a mercadoria pudesse ser trocada. O comerciante (brincando, mas, como se diz em música, "non troppo") declarou: "Nota fiscal, com este governo que está aí, eu não dou. Talvez se o PT ganhar".

De novo, nosso arcaísmo. A revolução burguesa ainda não trouxe seus melhores frutos: muitos, não necessariamente entre os mais pobres, têm (temos) com o governo central, seja qual for, uma relação não de cidadãos, mas de súditos. A experiência de pagar impostos confunde-se com aquela dos vassalos, quando pagavam tributos ao senhor ou com a dos colonos, obrigados a enriquecer a potência colonial que os despachou para a nova terra.

Nesse espírito, sonegar é glória, quase um ato de resistência. Presumimos, com desconfiança historicamente justificada, que os governantes estejam sempre contra nós: por definição, representantes de um poder estrangeiro. Trocar de governo, por consequência, não significa querer uma mudança da sociedade e de nós mesmos: é mais como chamar, sei lá, a Inglaterra para que nos tire a França das costas para que possamos, portanto, seguir cuidando de nossos negócios e interesses particulares.

Se os eleitores de domingo forem, em sua maioria, como o comerciante dos Jardins, tão parecido com todos nós, Deus proteja o próximo governo. Se forem como L.R., não precisaremos de proteção divina. O diabo é que logo L.R. não votou.

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