26 dezembro 2002

Natal com John Rawls



Um exercício filosófico para manter o espírito natalino.
Depois de um século de enfrentamentos, nas ruas, nos matagais e dentro de cada cabeça, ficamos numa espécie de empate entre o sonho socialista e o sonho liberal.

Se nos dermos o tempo de pensar, chegaremos provavelmente a estas constatações: não sabemos renunciar aos anseios da liberdade individual, mas recusamos as desigualdades excessivas de poderes e haveres. Essas desigualdades, de fato, constrangem a liberdade de todos, o que constitui uma boa razão para combatê-las. Mas como aboli-las sem comprometer a liberdade quase absoluta que queremos preservar para todos?

Ainda existem liberais segundo os quais qualquer um tem direito a tudo que puder arrancar de seu semelhante. Acham que a aspiração igualitária nos torna reféns das exigências dos outros, ameaçando nossa liberdade. Também ainda existem socialistas que vêem na liberdade individual uma traição dos ideais comunitários, que, para eles, deveriam ser os únicos. Mas trata-se de minorias.

Grosso modo, concordamos. Todos, ou quase, queremos o melhor dos dois sonhos, liberal e socialista, sem concessões: justiça e liberdade.

A discórdia começa na hora de decidir quais regras realizariam uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa. John Rawls é o filósofo dessa hora. Morreu quase um mês atrás, deixando um vazio discreto, como acontece quando vão embora os melhores, ou seja, os que falam em voz baixa e nos pedem o esforço de pensar.

Sua obra mais importante, "Teoria da Justiça", foi publicada em 1971. Talvez um dia, alguém, procurando datar períodos no século 20, escolha essa data para marcar o fim da modernidade e o começo da pós-modernidade. Pois o livro é um último esforço da razão moderna para resolver o conflito entre seus dois maiores sonhos.

Rawls acredita que seja possível estabelecer regras universais para uma sociedade justa e livre. Como? Recorrendo a uma experiência racional que nos levaria a conclusões unânimes em matéria de justiça.

Imagine-se num limbo, antes de nascer, ou seja, antes de saber quais prêmios ou quais desgraças lhe serão atribuídos pela loteria da vida. Você não sabe se nascerá miserável ou rico, na Somália ou em Beverley Hills, rebento de uma família uspiana ou analfabeta. Cuidado: não basta imaginar-se (fantasia de Woody Allen) como espermatozóide na espera preocupada da ejaculação paterna, nem como óvulo materno antes da invasão. Na loteria da vida, é preciso incluir o patrimônio genético. Você também não sabe se será homem ou mulher, branco ou negro, alto ou baixo e, sobretudo, não sabe se terá fragilidades genéticas para malformações e deficiências. Ou se terá ou não predisposições para algum talento.

Claro que essa "posição original" não existe. Mas somos todos capazes de viajar, por um instante, até esse lugar fictício. De lá, poderíamos escrever, de um comum acordo, as regras de uma sociedade justa.

À primeira vista, o apelo à "posição original" se parece com a empatia, ou seja, com a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de sentir suas dores. A diferença é que Rawls não propõe um sentimento acidental e caritativo, mas uma experiência universal da razão, que orientaria nossas decisões políticas e morais. Nisso, a "Teoria da Justiça" poderia ser o último grande texto moderno.

A pós-modernidade não acredita na universalidade da razão. E, por exemplo, critica Rawls da maneira seguinte: a experiência da "posição original" é possível só para nossa cultura. Nós acreditamos que nossa família seja a espécie humana. Podemos, portanto, nos imaginar em qualquer lugar na loteria da vida. Mas essa é apenas a crença da tribo ocidental moderna.

Outras culturas acreditam que os vizinhos, os pobres ou as outras raças sejam bichos diferentes. Elas escutariam a proposta de Rawls com a indiferença que seria a nossa se ele nos convidasse a imaginar que poderíamos nascer bactéria, inseto ou truta. Conclusão: a pretensa universalidade da razão justa seria uma crença histórica e culturalmente limitada.

Essa crítica procede, mas é sem consequência. Pois nossa cultura nos constitui: seus pressupostos (por exemplo, a convicção de sermos todos membros da mesma família humana) têm para nós valor universal, são partes integrantes de nossa razão.

Mas há uma outra crítica, que a prática da psicanálise leva a formular. Não estou certo de que, na "posição original", por não conhecer os resultados da loteria da vida, todos escolheríamos regras justas. Suspeito que muitos prefeririam planejar uma sociedade iníqua e correr o risco de tirar um número ruim, à condição de preservar ao menos uma pequena chance de ganhar e, portanto, de gozar de privilégios inauditos.

Não sei o que Rawls responderia. Lamento que encontrá-lo não seja mais possível. Não tanto para solucionar a questão, mas porque sua voz é uma das mais decentes desse último meio século.

Feliz Natal (um pouco atrasado) a todos, sobretudo aos que gostam de pensar e de falar em voz baixa.

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