Na televisão americana, a cobertura da guerra no Iraque foi manifestamente patriótica. Sobretudo na Fox e na NBC, repórteres e apresentadores lideravam a torcida pelas tropas. Pareciam querer alimentar a aprovação pública da guerra.
Por isso, desde as primeiras baixas, minha expectativa era que, nas mídias, as perdas americanas fossem anunciadas e celebradas como heróicas, mas não ocupassem muito espaço, para evitar que o espectador encontrasse razões para duvidar ou desesperar. Afinal, nos EUA, durante a Guerra do Vietnã, a opinião pública tornou-se pacifista com as imagens da volta ao país dos corpos dos soldados mortos.
Para minha surpresa, aconteceu o contrário. Até segunda-feira, conforme a Reuters, na invasão do Iraque morreram 117 militares americanos -sem contar os prisioneiros (agora soltos) e os desaparecidos. Dia após dia, todos tiveram nomes, caras e, sobretudo, histórias. As equipes de reportagem correram para entrevistar as famílias, os amigos e os vizinhos. De cada soldado morto aprendemos em qual onda migratória e por que caminhos sua família ou seus ancestrais chegaram aos EUA, em que cidade ele tinha nascido ou crescido, em que escolas tinha estudado.
Soubemos por que decidira entrar no Exército ou nos marines, se tinha irmãos ou irmãs e se esses também eram, foram ou planejavam ser militares. Será que a mãe encorajara ou hostilizara a escolha de vida do filho ou filha? O que o pai tinha pensado e o que pensava, agora, da guerra? Era frequente que um familiar lesse a última carta do soldado. Apareciam os órfãos, as viúvas e os viúvos. Em suma, a maneira de celebrar os que tinham perdido a vida era reconstruir a unicidade de suas existências.
O "New York Times" começou a publicar, para cada soldado morto, capturado ou desaparecido, um retrato e um resumo de sua jornada. Essas pequenas galerias de rostos evocavam, na memória, uma outra galeria, bem maior, que ocupou as páginas do mesmo jornal durante meses depois do atentado do 11 de setembro de 2001: os retratos e os obituários de todas as vítimas do ataque. Um ano mais tarde, na cerimônia do aniversário do atentado, em Nova York, não houve discursos de fundo, mas diversos oradores alternaram-se no palco para ler em voz alta, um a um, os nomes das 2.801 vítimas.
A cultura americana, mais do que qualquer outra, vive e pensa a coletividade como um conjunto de indivíduos.
Para um europeu ou um sul-americano, comemorar, explicar e mesmo narrar um acontecimento é, no mínimo, problemático sem explorar sua dimensão propriamente social: o encontro ou a luta de idéias, classes, nações, grupos, grandes interesses econômicos etc.
Para um americano, um fato, por social que seja, é, fundamentalmente, a história dos indivíduos que nele se envolveram. Assim, a conquista do Oeste é contada como a história da arrogância suicida do general Custer ou, numa versão progressista, como o drama de Touro Sentado antevendo o fim de sua gente. A narração pode subentender o conflito entre, por exemplo, a marcha gananciosa da modernidade e o direito dos indígenas à vida e à sabedoria de sua própria cultura. Mas a forma da história é sempre a aventura singular de homens e mulheres.
Na semana retrasada, a soldado Jessica Lynch, prisioneira dos iraquianos, foi liberada por uma ação das forças especiais. A televisão americana nos fez conhecer a casa, os pais, o irmão, a irmã, a motivação e os projetos de Jessica. Uma das grandes revistas semanais propôs na capa uma variante do título de um famoso filme de Steven Spielberg: "O Resgate da Soldado Lynch".
Hollywood só podia nascer numa cultura em que, seja qual for a dimensão social dos fatos, a experiência toma, espontaneamente e para todos, a forma de uma história de aventuras. Nesse tipo de cultura, qualquer vida promete um roteiro de filme.
Criticamos ou desprezamos Hollywood pelas simplificações, pelos silêncios e pelas ignorâncias, talvez inevitáveis ao reduzir a complexidade da história às andanças singulares dos indivíduos. Mas, no fundo, essa crítica se endereça a nós mesmos. Defendemos um entendimento do mundo em que causas e conflitos coletivos são mais importantes que a epopéia dos indivíduos. Temos toda a razão. No entanto a crítica do reducionismo de Hollywood é a maneira que encontramos para reprimir uma dimensão crucial de nossa própria experiência: o mundo nos interessa só porque constitui o cenário da aventura de nossas vidas. Hollywood, desprezada, cativa-nos e fascina-nos porque glorifica um individualismo que é o nosso. Portanto, mesmo envergonhados, entramos no cinema.
Um exemplo. Certo, os americanos perderam a Guerra do Vietnã. Alguns dizem, resignados, que o conflito, além de horrível, foi inútil: os EUA, a longo prazo, ganhariam sem guerra, à força de propaganda ou porque o McDonald's se instalaria em Hanói. Errado e um pouco primário: a sedução é outra. Responda rápido: o que é para você a Guerra do Vietnã? "Nascido para Matar", "Platoon" ou "Apocalypse Now"?
17 abril 2003
10 abril 2003
As identificações e a possibilidade de pensar
"Carandiru", de Hector Babenco, estréia amanhã. O filme tem a mesma notável qualidade moral do livro de Drauzio Varella ("Estação Carandiru"), no qual se inspira.
Claro, ambos (o livro e o filme) devolvem aos presidiários sua humanidade: são todos nossos semelhantes. Mas isso é fácil, quase automático, pois temos uma verdadeira disposição para reconhecer que o outro é gente. Assista a um filme sobre a vida de Jack, o Estripador ou do "maníaco do parque". Inevitavelmente, eles parecerão humanos, demasiado humanos. Olhe só, o Jack era tão querido quando criança, o padrasto o tratava mal, a mãe não lhe dava carinho. E o "maníaco" era pobre, triste, não tinha brinquedos.
Paradoxalmente, apesar dessa franca benevolência, também nos resulta fácil excluir. Basta escolher outros filmes. Esqueça os dois bandidos e considere a história de suas vítimas. Pense no futuro que foi negado às mulheres esquartejadas e estupradas, imagine a dor dos que as amavam: Jack e o "maníaco" aparecerão como membros de uma outra espécie, bactérias repugnantes que pedem a intervenção de uma justiça antibiótica.
Nenhuma contradição entre essas duas atitudes. Ambas funcionam do mesmo jeito: por identificação.
A grande idéia ocidental e moderna, segundo a qual pertencemos todos à mesma tribo, alimenta-se de uma empatia espontânea: nos colocamos no lugar dos outros. Essa propensão para a identificação responde a uma urgência psicológica. Somos sempre convidados a inventar livremente nossas vidas: é uma missão incômoda e dolorosa. Portanto estamos dispostos a acolher calorosamente qualquer um com quem possamos nos identificar. Quem sabe consigamos, assim, definir um pouco quem somos nós.
Em suma, por sermos órfãos de identidades estabelecidas, acabamos sedentos de identificações.
Bem mais difícil é reconhecer a humanidade dos outros sem confundir-se com eles, ou seja, aceitar que o outro é nosso semelhante sem vestir sua pele como se fosse um casaco.
Esta é a qualidade moral de "Carandiru": os detentos do infausto estabelecimento paulista são familiares, próximos, mas nem por isso eles se tornam invejáveis ou mesmo aceitáveis.
Quase sempre a possibilidade de um juízo ou de um gesto moral exige esta condição: reconheço que o outro é meu semelhante, aprendo a não excluí-lo, mas a empatia não se transforma em justificação ou em apologia, porque não se resolve numa identificação.
É óbvio: com a exceção de Deus (que, aliás, está de férias), ninguém contempla o mundo de cima. Vejo a criminalidade no Rio e no Brasil a partir do lugar em que estou: branco, negro ou cafuzo, descendente de europeus ou de índios, desempregado ou empresário, favelado ou condômino, morador de uma grande ou de uma pequena cidade etc.
Do mesmo jeito, vejo a guerra no Iraque por minha janela. Sou norte-vietnamita e minha família sumiu nos bombardeios de Hanói ou nasci em Saigon e passei pelos campos de reeducação depois da Guerra do Vietnã; sou camponês ex-sandinista na Nicarágua ou polonês ex-dissidente; palestino, conto os mortos da Intifada ao redor de mim ou, americano, vejo os laços amarelos nas janelas de meus vizinhos que rezam pelos filhos que combatem em Bagdá.
Sempre entendo o mundo a partir do lugar que ocupo. Mas não é obrigatório que a diferença de lugares nos force ao silêncio ou ao simples enfrentamento. Habermas, talvez o último grande pensador que acredita na eficácia da razão, também reconhece que o conhecimento se origina numa posição específica ou, usando seu termo, num "interesse". Contudo a disparidade desses interesses não deveria impedir que fosse possível pensar e mesmo dialogar com equanimidade.
Não sei se compartilho o otimismo de Habermas. O centro de onde cada um de nós organiza o mundo é uma rede complexa de relações, lembranças, histórias e crenças singulares (que nem conhecemos inteiramente). Ora, constato que a chance de dialogar e de pensar acaba quando esse centro nos aparece como a plenitude exultante de uma identificação. Não tenho como refletir sobre a criminalidade que nos assola se sou morador-dos-Jardins-ou-da-zona-sul do mesmo jeito que posso ser torcedor corintiano. Não tenho como refletir sobre a guerra no Iraque se sou latino-americano-de-veias-abertas-pelo-FMI do mesmo jeito que visto a camiseta do Brasil quando entra em campo a seleção.
O triunfo das identificações produz oposições estéreis: alguém olha para os avanços do sétimo regimento de cavalaria sonhando em ser John Wayne, e outro se alegra com as imagens de um marine morto, tomado pelo devaneio de ser o chefe dos índios na batalha de Little Big Horn.
Da mesma forma, enquanto os ônibus queimam no Rio, alguém torce pelo Comando Vermelho: ele é Pancho Villa liderando o partido dos injustiçados. Outro é Clint Eastwood, o inspetor Harry, convencido de que só um revólver Magnum 44 acabará com o problema do crime.
Uma consolação. Não é complicado reconhecer o pensamento que se alimenta de identificações: é a ladainha das certezas.
Claro, ambos (o livro e o filme) devolvem aos presidiários sua humanidade: são todos nossos semelhantes. Mas isso é fácil, quase automático, pois temos uma verdadeira disposição para reconhecer que o outro é gente. Assista a um filme sobre a vida de Jack, o Estripador ou do "maníaco do parque". Inevitavelmente, eles parecerão humanos, demasiado humanos. Olhe só, o Jack era tão querido quando criança, o padrasto o tratava mal, a mãe não lhe dava carinho. E o "maníaco" era pobre, triste, não tinha brinquedos.
Paradoxalmente, apesar dessa franca benevolência, também nos resulta fácil excluir. Basta escolher outros filmes. Esqueça os dois bandidos e considere a história de suas vítimas. Pense no futuro que foi negado às mulheres esquartejadas e estupradas, imagine a dor dos que as amavam: Jack e o "maníaco" aparecerão como membros de uma outra espécie, bactérias repugnantes que pedem a intervenção de uma justiça antibiótica.
Nenhuma contradição entre essas duas atitudes. Ambas funcionam do mesmo jeito: por identificação.
A grande idéia ocidental e moderna, segundo a qual pertencemos todos à mesma tribo, alimenta-se de uma empatia espontânea: nos colocamos no lugar dos outros. Essa propensão para a identificação responde a uma urgência psicológica. Somos sempre convidados a inventar livremente nossas vidas: é uma missão incômoda e dolorosa. Portanto estamos dispostos a acolher calorosamente qualquer um com quem possamos nos identificar. Quem sabe consigamos, assim, definir um pouco quem somos nós.
Em suma, por sermos órfãos de identidades estabelecidas, acabamos sedentos de identificações.
Bem mais difícil é reconhecer a humanidade dos outros sem confundir-se com eles, ou seja, aceitar que o outro é nosso semelhante sem vestir sua pele como se fosse um casaco.
Esta é a qualidade moral de "Carandiru": os detentos do infausto estabelecimento paulista são familiares, próximos, mas nem por isso eles se tornam invejáveis ou mesmo aceitáveis.
Quase sempre a possibilidade de um juízo ou de um gesto moral exige esta condição: reconheço que o outro é meu semelhante, aprendo a não excluí-lo, mas a empatia não se transforma em justificação ou em apologia, porque não se resolve numa identificação.
É óbvio: com a exceção de Deus (que, aliás, está de férias), ninguém contempla o mundo de cima. Vejo a criminalidade no Rio e no Brasil a partir do lugar em que estou: branco, negro ou cafuzo, descendente de europeus ou de índios, desempregado ou empresário, favelado ou condômino, morador de uma grande ou de uma pequena cidade etc.
Do mesmo jeito, vejo a guerra no Iraque por minha janela. Sou norte-vietnamita e minha família sumiu nos bombardeios de Hanói ou nasci em Saigon e passei pelos campos de reeducação depois da Guerra do Vietnã; sou camponês ex-sandinista na Nicarágua ou polonês ex-dissidente; palestino, conto os mortos da Intifada ao redor de mim ou, americano, vejo os laços amarelos nas janelas de meus vizinhos que rezam pelos filhos que combatem em Bagdá.
Sempre entendo o mundo a partir do lugar que ocupo. Mas não é obrigatório que a diferença de lugares nos force ao silêncio ou ao simples enfrentamento. Habermas, talvez o último grande pensador que acredita na eficácia da razão, também reconhece que o conhecimento se origina numa posição específica ou, usando seu termo, num "interesse". Contudo a disparidade desses interesses não deveria impedir que fosse possível pensar e mesmo dialogar com equanimidade.
Não sei se compartilho o otimismo de Habermas. O centro de onde cada um de nós organiza o mundo é uma rede complexa de relações, lembranças, histórias e crenças singulares (que nem conhecemos inteiramente). Ora, constato que a chance de dialogar e de pensar acaba quando esse centro nos aparece como a plenitude exultante de uma identificação. Não tenho como refletir sobre a criminalidade que nos assola se sou morador-dos-Jardins-ou-da-zona-sul do mesmo jeito que posso ser torcedor corintiano. Não tenho como refletir sobre a guerra no Iraque se sou latino-americano-de-veias-abertas-pelo-FMI do mesmo jeito que visto a camiseta do Brasil quando entra em campo a seleção.
O triunfo das identificações produz oposições estéreis: alguém olha para os avanços do sétimo regimento de cavalaria sonhando em ser John Wayne, e outro se alegra com as imagens de um marine morto, tomado pelo devaneio de ser o chefe dos índios na batalha de Little Big Horn.
Da mesma forma, enquanto os ônibus queimam no Rio, alguém torce pelo Comando Vermelho: ele é Pancho Villa liderando o partido dos injustiçados. Outro é Clint Eastwood, o inspetor Harry, convencido de que só um revólver Magnum 44 acabará com o problema do crime.
Uma consolação. Não é complicado reconhecer o pensamento que se alimenta de identificações: é a ladainha das certezas.
03 abril 2003
"Dois Perdidos numa Noite Suja"
Estréia amanhã, no Rio e em São Paulo, "Dois Perdidos numa Noite Suja", o filme de José Joffily que se inspira numa famosa peça de Plínio Marcos.
Paco e Tonho, que, na peça, eram marginais da periferia paulista, são, no roteiro de Paulo Halm, dois imigrantes brasileiros na Nova York de hoje. Tonho (Roberto Bomtempo) vem de Governador Valadares, vive miseravelmente de bicos e subemprego e é prisioneiro de uma ficção de sucesso americano, inventada nas cartas destinadas à mãe. Ele encontra Paco (Débora Falabella), uma jovem andrógina que se prostitui e se droga esperando o dia em que será descoberta e, enfim, brilhará como uma estrela pop.
Não perca. Os diálogos são fulminantes, os atores são inesquecíveis. Mas não é só isso. O filme é crucial também por outra razão: ele desnuda a presença violenta e parasita, em cada um de nós, de um monstro de nossa cultura, o dito "sonho americano".
Vamos com ordem. Desde o começo dos anos 80, 1 milhão (ou mais) de brasileiros emigraram para os EUA, ficando, voltando ou tornando-se pendulares para sempre. A grandíssima maioria trabalha duro e se insere, bem ou mal, na sociedade americana. Como me disse um policial de Boston, "os brasileiros são ordeiros". Em suma, o caso de Tonho e Paco é fora do comum. Mas as histórias excepcionais são reveladoras.
Em São Paulo, algumas semanas atrás, uma conhecida, dona de pequena empresa, com formação universitária, me contava das cartas entusiasmadas que ela recebe de uma amiga que emigrou e que está agora em Nova Jersey, contente (segundo as cartas) e bem de vida. A amiga encontrou um emprego ótimo: stripteaser de clube. Minha conhecida, brincando, dizia-se tentada pela aventura: afinal, não seria mal sair do Brasil e ganhar um dinheiro mais sério. Voltando a Nova York, poucos dias depois, esbarrei numa notícia, no "New York Post": uma stripteaser brasileira fora assassinada em seu apartamento. Claro, não era a mesma; há várias.
Ora, as stripteasers de Nova Jersey, Tonho e Paco revelam algo que vale também para os imigrantes "ordeiros": quase todos se despojam das qualidades que, no Brasil, determinavam seu lugar na comunidade. Não penso só em amores, amizades e laços, mas nas competências que tornam cada um de nós reconhecível e socialmente significativo. Tonho mexia com computadores, Paco sabia cantar, a jovem mulher que foi para Nova Jersey talvez fosse psicóloga, outro era torneiro mecânico, outro ainda, sem diploma nenhum, era camelô e convencia a freguesia como ninguém. Pois bem, ao emigrarem, são todos reduzidos a um denominador comum: seu corpo. Não falam a língua direito. Por não terem documentos, só têm acesso aos empregos reservados a quem pode vender apenas sua força ou seus encantos.
Ironia da história: os brasileiros emigrados de hoje revivem o drama da escravatura. Os africanos, ao ser arrancados de sua terra, perderam tudo o que fazia sua significação social. Deste lado do Atlântico, o xamã, o guerreiro, o pastor, o pescador e a princesa eram apenas corpos nus e mudos. Valiam pelos braços e, eventualmente, pelo desejo que suscitavam nos compradores.
O tráfico de escravos não existe mais. Que força rapta os emigrantes brasileiros de hoje? Que fúria os leva a aceitar serem reduzidos a seus corpos? Não é só a miséria. Uma boa maioria é de pequena classe média; chegam de avião, como turistas: impossível para os menos favorecidos. O que empurra esses emigrantes é o mesmo sonho que tiraniza a vida de todos nós.
Paco e Tonho nos lembram de que um devaneio pode ser tão brutal quanto as amarras dos navios negreiros ou quanto os roncos dos ventres vazios. Tonho não consegue decidir-se a voltar para casa: paga o preço de uma solidão desesperada, não para ajudar a mãe (ele não tem dinheiro para mandar), mas para alimentar a imagem de sua própria felicidade americana na mente da mãe. Paco acha que, na América, ela tem tudo o que quer: está feliz (repete, talvez para convencer-se) de ficar com nada e de descer ao horror, à condição de poder sonhar que, um dia, ela subirá na ribalta. Ambos são as vítimas do narcisismo que é o lote comum; sacrificamos muito, se não tudo, para seguir acreditando numa imagem maravilhosa que conhecemos bem: é a criança bem-fadada que nossas mães queriam que fôssemos, é a fábula de nossos triunfos.
Novidade moderna: somos livres para mudar (de status, de ofício, de país). Mas essa liberdade impõe uma dupla condição: a insatisfação constante com nosso quinhão e a convicção de que somos definidos não por nossas habilidades, por nossas relações ou mesmo por nossa cara, mas pelas miragens atrás das quais corremos.
Útil nestes dias: os EUA (onde Tonho quer "fazer a América" e onde Paco se sente em casa) não são apenas um país real. Por razões e mal-entendidos históricos, passaram a encarnar as sinas de nossa cultura: uma miragem de futuro e um anseio raivoso de sucesso que estão dentro de todos nós e que, de lá, de dentro, paradoxalmente, nos libertam e nos perseguem.
Paco e Tonho, que, na peça, eram marginais da periferia paulista, são, no roteiro de Paulo Halm, dois imigrantes brasileiros na Nova York de hoje. Tonho (Roberto Bomtempo) vem de Governador Valadares, vive miseravelmente de bicos e subemprego e é prisioneiro de uma ficção de sucesso americano, inventada nas cartas destinadas à mãe. Ele encontra Paco (Débora Falabella), uma jovem andrógina que se prostitui e se droga esperando o dia em que será descoberta e, enfim, brilhará como uma estrela pop.
Não perca. Os diálogos são fulminantes, os atores são inesquecíveis. Mas não é só isso. O filme é crucial também por outra razão: ele desnuda a presença violenta e parasita, em cada um de nós, de um monstro de nossa cultura, o dito "sonho americano".
Vamos com ordem. Desde o começo dos anos 80, 1 milhão (ou mais) de brasileiros emigraram para os EUA, ficando, voltando ou tornando-se pendulares para sempre. A grandíssima maioria trabalha duro e se insere, bem ou mal, na sociedade americana. Como me disse um policial de Boston, "os brasileiros são ordeiros". Em suma, o caso de Tonho e Paco é fora do comum. Mas as histórias excepcionais são reveladoras.
Em São Paulo, algumas semanas atrás, uma conhecida, dona de pequena empresa, com formação universitária, me contava das cartas entusiasmadas que ela recebe de uma amiga que emigrou e que está agora em Nova Jersey, contente (segundo as cartas) e bem de vida. A amiga encontrou um emprego ótimo: stripteaser de clube. Minha conhecida, brincando, dizia-se tentada pela aventura: afinal, não seria mal sair do Brasil e ganhar um dinheiro mais sério. Voltando a Nova York, poucos dias depois, esbarrei numa notícia, no "New York Post": uma stripteaser brasileira fora assassinada em seu apartamento. Claro, não era a mesma; há várias.
Ora, as stripteasers de Nova Jersey, Tonho e Paco revelam algo que vale também para os imigrantes "ordeiros": quase todos se despojam das qualidades que, no Brasil, determinavam seu lugar na comunidade. Não penso só em amores, amizades e laços, mas nas competências que tornam cada um de nós reconhecível e socialmente significativo. Tonho mexia com computadores, Paco sabia cantar, a jovem mulher que foi para Nova Jersey talvez fosse psicóloga, outro era torneiro mecânico, outro ainda, sem diploma nenhum, era camelô e convencia a freguesia como ninguém. Pois bem, ao emigrarem, são todos reduzidos a um denominador comum: seu corpo. Não falam a língua direito. Por não terem documentos, só têm acesso aos empregos reservados a quem pode vender apenas sua força ou seus encantos.
Ironia da história: os brasileiros emigrados de hoje revivem o drama da escravatura. Os africanos, ao ser arrancados de sua terra, perderam tudo o que fazia sua significação social. Deste lado do Atlântico, o xamã, o guerreiro, o pastor, o pescador e a princesa eram apenas corpos nus e mudos. Valiam pelos braços e, eventualmente, pelo desejo que suscitavam nos compradores.
O tráfico de escravos não existe mais. Que força rapta os emigrantes brasileiros de hoje? Que fúria os leva a aceitar serem reduzidos a seus corpos? Não é só a miséria. Uma boa maioria é de pequena classe média; chegam de avião, como turistas: impossível para os menos favorecidos. O que empurra esses emigrantes é o mesmo sonho que tiraniza a vida de todos nós.
Paco e Tonho nos lembram de que um devaneio pode ser tão brutal quanto as amarras dos navios negreiros ou quanto os roncos dos ventres vazios. Tonho não consegue decidir-se a voltar para casa: paga o preço de uma solidão desesperada, não para ajudar a mãe (ele não tem dinheiro para mandar), mas para alimentar a imagem de sua própria felicidade americana na mente da mãe. Paco acha que, na América, ela tem tudo o que quer: está feliz (repete, talvez para convencer-se) de ficar com nada e de descer ao horror, à condição de poder sonhar que, um dia, ela subirá na ribalta. Ambos são as vítimas do narcisismo que é o lote comum; sacrificamos muito, se não tudo, para seguir acreditando numa imagem maravilhosa que conhecemos bem: é a criança bem-fadada que nossas mães queriam que fôssemos, é a fábula de nossos triunfos.
Novidade moderna: somos livres para mudar (de status, de ofício, de país). Mas essa liberdade impõe uma dupla condição: a insatisfação constante com nosso quinhão e a convicção de que somos definidos não por nossas habilidades, por nossas relações ou mesmo por nossa cara, mas pelas miragens atrás das quais corremos.
Útil nestes dias: os EUA (onde Tonho quer "fazer a América" e onde Paco se sente em casa) não são apenas um país real. Por razões e mal-entendidos históricos, passaram a encarnar as sinas de nossa cultura: uma miragem de futuro e um anseio raivoso de sucesso que estão dentro de todos nós e que, de lá, de dentro, paradoxalmente, nos libertam e nos perseguem.
02 abril 2003
A masturbação está fora de moda
Em quase 30 anos de prática clínica, nunca aconteceu que um pai ou uma mãe me consultassem por estarem preocupados com a "excessiva" atividade masturbatória de filhos e filhas. E nunca um adolescente destinou algum tempo de sua terapia a discutir os méritos e as culpas dos prazeres solitários.
Mas encontrei, isso sim, homens e mulheres de meia-idade (50 ou 60 anos) que se queixavam ocasionalmente de suas próprias "fraquezas" masturbatórias. Manifestavam uma certa insatisfação moral, uma sensação de infantilidade, às vezes até um medo (que sabiam ser irracional e injustificado) de alguma vingança do corpo (tuberculose, astenia). Todos consideravam que as culpas e os receios relativos à masturbação eram restos de ameaças recebidas durante suas infâncias, nos anos 40 ou 50.
Ao que parece, há uma distância significativa entre os sujeitos maduros, em que ressoam palavras de condenação ouvidas quando crianças, e os jovens para quem a masturbação sumiu do catálogo das inquietações. Como se produziu essa mudança? E, antes disso, quando e por que a masturbação se tornou uma patologia, física ou moral?
Thomas Laqueur é um historiador americano, conhecido por uma excelente história cultural da diferença sexual: "Inventando o Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud" (Relume-Dumará). Ele acaba de publicar outro livro notável: "Solitary Sex, a Cultural History of Masturbation" (sexo solitário, uma história cultural da masturbação).
Laqueur lembra que a masturbação é uma prática comum, mas irrelevante, até a modernidade. A partir do século 18, de repente, ela tornou-se um grande tema cultural. A coisa começou com um tratado anônimo, de 1712, que descrevia as terríveis consequências da masturbação e prometia remédios milagrosos. Desde então, a medicina se apoderou do caso. Durante dois séculos, a masturbação foi estigmatizada, cresceu a lista de seus efeitos nefastos, e foram propostos recursos para contrariá-la: desde a idéia, benigna, de prender as mãos de meninos e meninas até a prática de cauterizar o clitóris das meninas com ferro quente (sem anestesia, claro).
Ao redor de 1900, ninguém consegue mais acreditar nos efeitos danosos, tanto físicos como mentais, da masturbação. Aos poucos, a prática é criticada sobretudo por razões morais. Freud, crucial nessa mudança, ainda supõe que a masturbação esteja na origem de uma patologia (a neurastenia), mas também concebe a prática como um momento infantil da sexualidade; na vida adulta, ela seria apenas um (vergonhoso) sinal de escassa maturidade.
Nos anos 60, a masturbação é promovida pela contracultura à condição de atividade libertadora e contestatária; torna-se tema de uma das canções de "Hair" (o musical que, durante décadas, ocupa os palcos do mundo) e acaba sendo apresentada por muitos sexólogos como uma terapia das inibições sexuais.
Essa história, reconstruída por Laqueur, é mais que uma curiosidade cultural. Ela é reveladora de uma contradição ainda fundamental para nós. Por que o livro de 1712 teve sucesso? Por que, na aurora da modernidade, a masturbação preocupa tanto? A resposta transcende o campo da sexualidade.
A modernidade nos encoraja a querer mais do que já temos e a sonhar em vir a ser mais do que somos. Ela aposta na nossa capacidade infindável de fantasiar. Conta com os excessos do desejo, pois propõe um sistema econômico fundado na contínua renovação dos apetites e um sistema social alimentado pelo anseio de mudar de status e de subir na vida.
Por isso mesmo, nossa cultura não sabe inventar uma ética ou mesmo uma etiqueta do desejo enaltecido. Somos, portanto, ameaçados constantemente pela liberdade de fantasiar e desejar que nos é indispensável e que nos define. Pois, como nota Laqueur, a autodeterminação beira a falta de lei, o individualismo beira o solipsismo.
A masturbação é uma metáfora desse paradoxo. Nela, o desejo e a fantasia triunfam, mas dispensam o encontro com o parceiro, satisfazem-se sem os limites impostos pela realidade. Descobre-se, assim, que nossas faculdades prediletas arriscam desagregar o laço social mínimo: a célula da vida amorosa. A masturbação lembra, em suma, que a exaltação moderna do indivíduo ameaça comprometer qualquer projeto de sociedade.
Não por acaso o sexo solitário foi inocentado nos anos 60, logo no momento em que a modernidade reafirmou seu credo na proliferação de desejos e fantasias.
Desde então, a masturbação não é mais um problema, está fora de moda. Mas a dificuldade para inventar uma ética do desejo continua na ordem do dia. Aparecem novas maneiras de preocupar-se com a contradição entre a apologia do desejar e a necessidade de regrar o desejo para que a vida seja tolerável e a convivência social seja possível.
Os pais de hoje queixam-se das drogas que entregam seus rebentos a um mundo separado de fantasias, em que a realidade e a sociabilidade se perdem. E questionam o exercício solitário do devaneio induzido pela avalanche hollywoodiana.
Mudou apenas a forma das preocupações. O paradoxo moderno do querer permanece irresolvido.
Mas encontrei, isso sim, homens e mulheres de meia-idade (50 ou 60 anos) que se queixavam ocasionalmente de suas próprias "fraquezas" masturbatórias. Manifestavam uma certa insatisfação moral, uma sensação de infantilidade, às vezes até um medo (que sabiam ser irracional e injustificado) de alguma vingança do corpo (tuberculose, astenia). Todos consideravam que as culpas e os receios relativos à masturbação eram restos de ameaças recebidas durante suas infâncias, nos anos 40 ou 50.
Ao que parece, há uma distância significativa entre os sujeitos maduros, em que ressoam palavras de condenação ouvidas quando crianças, e os jovens para quem a masturbação sumiu do catálogo das inquietações. Como se produziu essa mudança? E, antes disso, quando e por que a masturbação se tornou uma patologia, física ou moral?
Thomas Laqueur é um historiador americano, conhecido por uma excelente história cultural da diferença sexual: "Inventando o Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud" (Relume-Dumará). Ele acaba de publicar outro livro notável: "Solitary Sex, a Cultural History of Masturbation" (sexo solitário, uma história cultural da masturbação).
Laqueur lembra que a masturbação é uma prática comum, mas irrelevante, até a modernidade. A partir do século 18, de repente, ela tornou-se um grande tema cultural. A coisa começou com um tratado anônimo, de 1712, que descrevia as terríveis consequências da masturbação e prometia remédios milagrosos. Desde então, a medicina se apoderou do caso. Durante dois séculos, a masturbação foi estigmatizada, cresceu a lista de seus efeitos nefastos, e foram propostos recursos para contrariá-la: desde a idéia, benigna, de prender as mãos de meninos e meninas até a prática de cauterizar o clitóris das meninas com ferro quente (sem anestesia, claro).
Ao redor de 1900, ninguém consegue mais acreditar nos efeitos danosos, tanto físicos como mentais, da masturbação. Aos poucos, a prática é criticada sobretudo por razões morais. Freud, crucial nessa mudança, ainda supõe que a masturbação esteja na origem de uma patologia (a neurastenia), mas também concebe a prática como um momento infantil da sexualidade; na vida adulta, ela seria apenas um (vergonhoso) sinal de escassa maturidade.
Nos anos 60, a masturbação é promovida pela contracultura à condição de atividade libertadora e contestatária; torna-se tema de uma das canções de "Hair" (o musical que, durante décadas, ocupa os palcos do mundo) e acaba sendo apresentada por muitos sexólogos como uma terapia das inibições sexuais.
Essa história, reconstruída por Laqueur, é mais que uma curiosidade cultural. Ela é reveladora de uma contradição ainda fundamental para nós. Por que o livro de 1712 teve sucesso? Por que, na aurora da modernidade, a masturbação preocupa tanto? A resposta transcende o campo da sexualidade.
A modernidade nos encoraja a querer mais do que já temos e a sonhar em vir a ser mais do que somos. Ela aposta na nossa capacidade infindável de fantasiar. Conta com os excessos do desejo, pois propõe um sistema econômico fundado na contínua renovação dos apetites e um sistema social alimentado pelo anseio de mudar de status e de subir na vida.
Por isso mesmo, nossa cultura não sabe inventar uma ética ou mesmo uma etiqueta do desejo enaltecido. Somos, portanto, ameaçados constantemente pela liberdade de fantasiar e desejar que nos é indispensável e que nos define. Pois, como nota Laqueur, a autodeterminação beira a falta de lei, o individualismo beira o solipsismo.
A masturbação é uma metáfora desse paradoxo. Nela, o desejo e a fantasia triunfam, mas dispensam o encontro com o parceiro, satisfazem-se sem os limites impostos pela realidade. Descobre-se, assim, que nossas faculdades prediletas arriscam desagregar o laço social mínimo: a célula da vida amorosa. A masturbação lembra, em suma, que a exaltação moderna do indivíduo ameaça comprometer qualquer projeto de sociedade.
Não por acaso o sexo solitário foi inocentado nos anos 60, logo no momento em que a modernidade reafirmou seu credo na proliferação de desejos e fantasias.
Desde então, a masturbação não é mais um problema, está fora de moda. Mas a dificuldade para inventar uma ética do desejo continua na ordem do dia. Aparecem novas maneiras de preocupar-se com a contradição entre a apologia do desejar e a necessidade de regrar o desejo para que a vida seja tolerável e a convivência social seja possível.
Os pais de hoje queixam-se das drogas que entregam seus rebentos a um mundo separado de fantasias, em que a realidade e a sociabilidade se perdem. E questionam o exercício solitário do devaneio induzido pela avalanche hollywoodiana.
Mudou apenas a forma das preocupações. O paradoxo moderno do querer permanece irresolvido.
Assinar:
Postagens (Atom)