17 abril 2003

Hollywood dentro de nós

Na televisão americana, a cobertura da guerra no Iraque foi manifestamente patriótica. Sobretudo na Fox e na NBC, repórteres e apresentadores lideravam a torcida pelas tropas. Pareciam querer alimentar a aprovação pública da guerra.

Por isso, desde as primeiras baixas, minha expectativa era que, nas mídias, as perdas americanas fossem anunciadas e celebradas como heróicas, mas não ocupassem muito espaço, para evitar que o espectador encontrasse razões para duvidar ou desesperar. Afinal, nos EUA, durante a Guerra do Vietnã, a opinião pública tornou-se pacifista com as imagens da volta ao país dos corpos dos soldados mortos.

Para minha surpresa, aconteceu o contrário. Até segunda-feira, conforme a Reuters, na invasão do Iraque morreram 117 militares americanos -sem contar os prisioneiros (agora soltos) e os desaparecidos. Dia após dia, todos tiveram nomes, caras e, sobretudo, histórias. As equipes de reportagem correram para entrevistar as famílias, os amigos e os vizinhos. De cada soldado morto aprendemos em qual onda migratória e por que caminhos sua família ou seus ancestrais chegaram aos EUA, em que cidade ele tinha nascido ou crescido, em que escolas tinha estudado.

Soubemos por que decidira entrar no Exército ou nos marines, se tinha irmãos ou irmãs e se esses também eram, foram ou planejavam ser militares. Será que a mãe encorajara ou hostilizara a escolha de vida do filho ou filha? O que o pai tinha pensado e o que pensava, agora, da guerra? Era frequente que um familiar lesse a última carta do soldado. Apareciam os órfãos, as viúvas e os viúvos. Em suma, a maneira de celebrar os que tinham perdido a vida era reconstruir a unicidade de suas existências.

O "New York Times" começou a publicar, para cada soldado morto, capturado ou desaparecido, um retrato e um resumo de sua jornada. Essas pequenas galerias de rostos evocavam, na memória, uma outra galeria, bem maior, que ocupou as páginas do mesmo jornal durante meses depois do atentado do 11 de setembro de 2001: os retratos e os obituários de todas as vítimas do ataque. Um ano mais tarde, na cerimônia do aniversário do atentado, em Nova York, não houve discursos de fundo, mas diversos oradores alternaram-se no palco para ler em voz alta, um a um, os nomes das 2.801 vítimas.

A cultura americana, mais do que qualquer outra, vive e pensa a coletividade como um conjunto de indivíduos.

Para um europeu ou um sul-americano, comemorar, explicar e mesmo narrar um acontecimento é, no mínimo, problemático sem explorar sua dimensão propriamente social: o encontro ou a luta de idéias, classes, nações, grupos, grandes interesses econômicos etc.

Para um americano, um fato, por social que seja, é, fundamentalmente, a história dos indivíduos que nele se envolveram. Assim, a conquista do Oeste é contada como a história da arrogância suicida do general Custer ou, numa versão progressista, como o drama de Touro Sentado antevendo o fim de sua gente. A narração pode subentender o conflito entre, por exemplo, a marcha gananciosa da modernidade e o direito dos indígenas à vida e à sabedoria de sua própria cultura. Mas a forma da história é sempre a aventura singular de homens e mulheres.

Na semana retrasada, a soldado Jessica Lynch, prisioneira dos iraquianos, foi liberada por uma ação das forças especiais. A televisão americana nos fez conhecer a casa, os pais, o irmão, a irmã, a motivação e os projetos de Jessica. Uma das grandes revistas semanais propôs na capa uma variante do título de um famoso filme de Steven Spielberg: "O Resgate da Soldado Lynch".

Hollywood só podia nascer numa cultura em que, seja qual for a dimensão social dos fatos, a experiência toma, espontaneamente e para todos, a forma de uma história de aventuras. Nesse tipo de cultura, qualquer vida promete um roteiro de filme.

Criticamos ou desprezamos Hollywood pelas simplificações, pelos silêncios e pelas ignorâncias, talvez inevitáveis ao reduzir a complexidade da história às andanças singulares dos indivíduos. Mas, no fundo, essa crítica se endereça a nós mesmos. Defendemos um entendimento do mundo em que causas e conflitos coletivos são mais importantes que a epopéia dos indivíduos. Temos toda a razão. No entanto a crítica do reducionismo de Hollywood é a maneira que encontramos para reprimir uma dimensão crucial de nossa própria experiência: o mundo nos interessa só porque constitui o cenário da aventura de nossas vidas. Hollywood, desprezada, cativa-nos e fascina-nos porque glorifica um individualismo que é o nosso. Portanto, mesmo envergonhados, entramos no cinema.

Um exemplo. Certo, os americanos perderam a Guerra do Vietnã. Alguns dizem, resignados, que o conflito, além de horrível, foi inútil: os EUA, a longo prazo, ganhariam sem guerra, à força de propaganda ou porque o McDonald's se instalaria em Hanói. Errado e um pouco primário: a sedução é outra. Responda rápido: o que é para você a Guerra do Vietnã? "Nascido para Matar", "Platoon" ou "Apocalypse Now"?

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