01 maio 2003

No Museu de Bagdá com Ali Ismail

O Iraque estende-se sobre as terras da antiga Mesopotâmia. A 370 quilômetros ao sul de Bagdá, situam-se as ruínas da cidade de Ur, velhas de 4.000 anos. É provável que, na Mesopotâmia, os homens tenham pela primeira vez inventado a escrita, instituído leis, observado as estrelas e mesmo criado a bateria elétrica bem antes de Alessandro Volta. "Ur" é, em alemão, o prefixo que designa o que é originário na história.
Quando, na invasão de Bagdá, foi saqueado o Museu Nacional do Iraque, a dor e a consternação foram brutais pelo mundo afora: perdeu-se uma herança comum da humanidade. Mas o que é, para nós, uma herança?

Tudo leva a crer que, em sua maioria, os saqueadores agissem por conta de terceiros capazes de comercializar o butim. Suspeita-se que algumas peças já tenham sido leiloadas no site de E-bay. Outras devem estar nos cofres de mercadores europeus, americanos e asiáticos, à espera de que o mundo esqueça e a venda se torne menos arriscada.

Com isso, o saque do Museu de Bagdá parecia encenar nossa relação banal com o passado. Eis como.

Os museus são uma invenção moderna; nasceram durante a Revolução Francesa. Os parisienses arrebentavam as casas dos nobres e se serviam de bens, mobiliário e objetos. O quebra-quebra era um jeito de decretar que acabara o tempo dos privilégios. A Assembléia Nacional debateu durante meses para chegar à conclusão de que os restos do antigo regime deviam ser considerados patrimônio da nação. Seriam, portanto, reunidos e instalados em museus que todos visitariam, preservando agradavelmente a lembrança dos tempos anteriores.

A questão em debate era a seguinte: será que fazia sentido preservar o passado, uma vez que estava começando uma nova era em que os sujeitos não seriam mais julgados por sua origem, mas por suas capacidades e potencialidades? Não seria lógico destruir os vestígios de épocas injustas para começar do zero? Prevaleceu o partido segundo o qual era bom conservar os restos do passado iníquo e transformá-los em memórias coletivas.

Dessa escolha nasceram os museus e, logo depois, a decisão de preservar os monumentos históricos. Na mesma época, na Europa inteira, vingou o interesse pela história.

A justificativa inicial era: lembre-se para não repetir. Não deu muito certo, pois nunca paramos de repetir o pior. Na verdade, suspeito que nosso gosto pelos resíduos do passado não seja (nunca tenha sido) pedagógico. Por que nos importa a história? Por que deambulamos pelos museus?

Acreditamos que os homens devam afirmar-se segundo suas habilidades. Não queremos que o passado decida nosso destino: o que nos importa, em princípio, é o futuro. "Não me fale de suas gestas de ontem, diga-me o que sabe fazer." Se inventamos a arqueologia, a história, o museu, a restauração e a conservação das antiguidades, não é para aprender uma lição. A razão dessa nossa paixão é o caráter incompleto da revolução moderna: o futuro é um terreno demasiado inquietante e incerto para aceitarmos que só ele nos defina, portanto o passado assombra nossos dias. Não conseguimos esquecer: proclamamos a liberdade dos espíritos, mas cultivamos antigos preconceitos de raça, cultura e classe. Ou então nos dizemos autônomos, mas explicamos nossos atos pelos eventos de nossa infância ou pelo legado de nossos pais.

Em suma, passamos as tardes de domingo no mercadinho embaixo do Masp, mas inventamos a expressão "objetos de museu" para designar bibelôs sem relevância para o nosso presente. E concebemos o valor simbólico do passado sob a única forma que parecemos entender: como valor venal.

Sinistra astúcia da história em Bagdá: a herança da civilização mesopotâmica foi transformada em mercadoria tanto pela ganância dos que encomendaram o saque como pela negligência dos americanos (para quem proteger o museu não foi prioridade nenhuma). "Sucesso" da modernidade: o passado tornou-se um perfeito instrumento do futuro, pois serviu apenas para que alguns fizessem fortuna.

Mas não é o caso de deixar-se levar pela nostalgia dos tempos em que o passado contava. Considere uma outra imagem da guerra: o pequeno Ali Ismail Abbas, os braços amputados, o corpo queimado, os olhos arregalados por uma dor sem fundo. Você sacrificaria os artefatos de todos os museus do mundo para que Ali Ismail ainda estivesse brincando alegre com seus amigos? Claro que sim.

Ora, cuidado, essa resposta não é "natural". Numa cultura diferente da nossa, os restos do passado poderiam parecer bem mais importantes do que uma vida. Talvez um homem do antigo regime nos dissesse que, sem presença do passado, não haveria sociedade nem sujeitos. Talvez, para ele, a promessa de futuro contida no sorriso de um menino valesse menos do que os artefatos que sustentam a memória de um povo.

Por uma vez, podemos simpatizar com nosso individualismo: afinal, escolhemos Ali Ismail porque acreditamos na vida do indivíduo acima de qualquer necessidade coletiva, acima também dos ornamentos e dos restos do passado.

Um comentário:

  1. Muito bom, aproveito e já deixo o convite para visitar nosso site também.
    ==
    www.eliteacompanhantes.com.br
    ====
    www.sptrans.blogspot.com
    ==

    ResponderExcluir