No sábado passado, em São Paulo, participei do evento "A Vida nos Tempos da Cólera", promovido pela Atua, uma ONG que proporciona acompanhamento terapêutico para pacientes da rede pública de saúde mental.
Durante um diálogo que acontecia nesse contexto, Jurandir Freire Costa lembrou um recente curta-metragem de Fernando Mozart, "Porão", para observar que, nos jovens ex-soldados do narcotráfico entrevistados no filme, manifestava-se uma disposição belicosa peculiar. Eles não pareciam ser motivados pela intenção de arrancar posses, mas pela vontade de ver o outro tremer na alça de mira. Nada de "passa a bolsa", mas um requinte de irrisão: vamos ver se você ainda se faz de bacana contemplando o buraco escuro do cano deste 38.
Penso que as bombas na zona sul do Rio e os ônibus incendiados e metralhados falem a mesma linguagem: você tem alguma riqueza ou, simplesmente, um trabalho, um futuro e uma casa para a qual voltar, mas isso não basta; para ser dono do pedaço, é preciso saber morrer. Você topa?
É uma nova rodada do jogo do mestre e do escravo. Segundo a regra inventada (ou descoberta) por Hegel, fica como mestre quem está disposto a arriscar a vida. Quem prefere preservá-la é destinado a servir.
Ora, a certeza da morte iminente é o preço que os soldados do tráfico pagam para ser, por uma temporada, donos do mundo. E nós? Trememos diante da arma apontada porque achamos que temos algo a perder. Quem treme perde o jogo.
No meio dessas reflexões, sábado à noite, fui assistir, no Espaço Satyros, a "A Filosofia na Alcova", peça de Rodolfo Garcia Vasquez que adapta o livro do marquês de Sade. O espetáculo não poupa nada da virulência do texto sadiano: masturbação, blasfêmia, ingestão de urina e fezes, estupro anal e matricídio vão da página escrita para a cena, sem sombras pudicas. A eventual indignação do espectador não tem por que endereçar-se à bravura dos atores. Melhor reservá-la para o que está sendo representado: a crueza das gestas de quem consegue abandonar a referência a qualquer valor (convencional ou divino).
A história é conhecida: na França do fim do século 18, um casal de libertinos impõe um curso acelerado de materialismo radical (prático e teórico) a uma jovem de "boa" ascendência. A jovem aprende rápido: se Deus não existe e se a moral é só uma convenção repressora, por que não perseguir o gozo a qualquer custo?
"A Filosofia na Alcova" vale também como uma premonição social. Quando Sade escrevia, acabava de desmoronar um sistema em que o poder era um atributo da nobreza do berço.
Estava surgindo uma nova classe que justificava sua autoridade apresentando-se como dona da moral, ou seja, dos valores burgueses da família e do trabalho. Essa classe, aos poucos, ganharia em cinismo e reconheceria a riqueza como fundamento de seu domínio. Com isso, seus expoentes estariam perto de realizar este ideal libertino: um grupo que legitimasse sua superioridade pela demonstração de sua insaciável vontade e capacidade de gozar.
Será que a classe dominante contemporânea realiza essa última figura? Será que o asfalto e os Jardins gozam, enquanto o morro e a periferia contemplam, petrificados talvez pela inveja?
Nada disso. Podemos ser cínicos, corruptos e devassos, mas nos falta a grandeza (por sinistra que seja) das personagens de Sade. O libertino não se poupa nunca, vive no dispêndio, persegue o gozo com uma dedicação digna de melhores causas. O pretenso hedonista contemporâneo, ao contrário, é mesquinho e avaro de si: sua procura do prazer é hesitante, incerta e parasitada pelas precauções com as quais ele quer preservar saúde e longevidade. "Hoje não, amanhã tenho que levantar cedo." "Antes do jantar não, vai estragar meu penteado." A Ilha de Caras não é o castelo dos libertinos, mas apenas um estúdio fotográfico: mais cedo ou mais tarde, os excluídos da festa descobrem que não houve festa nenhuma, só poses.
O dono de fábrica do século 19, último à noite e primeiro de manhã a assinar o ponto, plantado com mulher e filhos na fileira da frente da igreja, impõe respeito. O libertino também impõe respeito pela intransigência de seu gozo. Ambos são mestres possíveis, pois ambos invocam princípios pelos quais estão prestes a sacrificar suas vidas: o primeiro morreria para salvar "tradição, família e propriedade"; o segundo, para arrancar-se um último orgasmo. Eles podem encarar a morte, porque têm uma idéia clara da vida que querem viver.
Não é nosso caso. O cinismo não nos tornou hedonistas, só insatisfeitos e incertos. O materialismo não nos libertou de convenções e valores, só nos levou a confundir o bem com o bem-estar fisiológico. O desrespeito às hierarquias estabelecidas não nos tornou autônomos, só preocupados com o olhar dos outros. Não temos nenhuma razão pela qual morrer porque não sabemos como viver.
Alguém deve ter descoberto essa banalidade. Por isso propõe uma nova rodada do jogo do mestre e do escravo, aponta uma arma e nos pergunta sardônico: será que vocês sabem morrer?
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