04 setembro 2003

Contas do passado e dificuldades do presente

Na última quinta-feira, comentei um processo que corre nestes dias nos EUA. Alguns cidadãos americanos negros e descendentes de escravos pedem reparação a companhias que lucraram com a escravatura.

Minha posição era a seguinte: simpatizo e aprovo, mas constato também que, em regra, as contas do passado atrapalham singularmente a vida de todos, a começar pela dos próprios credores e beneficiários.

Veja o que acontece em muitos divórcios. Mesmo que não haja bens para serem compartilhados, é frequente que os divorciados passem anos (se não o restante de sua existência) resmungando queixas. Eles desistem da vida para encarnar, aos olhos do mundo e aos seus próprios, a triste figura de quem foi injustiçado.

A razão dessa escolha é dupla.

Há a expectativa de que as feridas mostradas inspirem nos outros um carinho especial: tratem-me com cuidado, amem-me como um veterano inválido. Desastre: os interlocutores aguentam dificilmente, não por serem desprovidos de coração, mas porque são assim chamados à tarefa impossível de compensar perdas e dores e, portanto, confrontados com uma inevitável (e desagradável) impotência.

E há uma outra razão, mais decisiva. Nossa vida comporta sempre uma dose certa de frustrações. Atribuir falhas e malogros a uma causa definida é uma grande consolação. Não sei encontrar novos amigos e amores? É que sacrifiquei meus melhores anos a um casamento que me arrasou. Meu orçamento estoura a cada mês? É que o maldito (ou a maldita) foi embora com meu dinheiro. Não saio da depressão? É que o outro (ou a outra) levou consigo minha vontade de viver.

Vantagens presumidas e aparentes. As dores da vida me afligem, mas não são da minha conta. Meu (ou minha) "ex" é culpado (ou culpada), e todos os outros me devem comiseração e compensações.

Desvantagens efetivas. Os outros fogem de mim, eu fico só e parado (ou parada): a contabilidade do passado me impede de transformar a vida presente. A complacência com minhas condecorações de injustiçado ou injustiçada me distrai, permite que esqueça os estorvos de hoje, nos quais talvez eu pudesse intervir, se os reconhecesse.

Mas qual é a relação entre esse estado de espírito banal e as reivindicações de quem pede políticas que compensem o passado escravagista?

Uma analogia seria comprovada se ficasse claro que a atenção dada às contas do passado pode esconder outras iniquidades e contradições, cuja solução não depende de ressarcimentos.
Ora, a Century Foundation americana acaba de publicar a pesquisa "Socioeconomic Status, Race/Ethnicity and Selective College Admissions" (Status Socioeconômico, Raça/Etnia e Admissões Seletivas à Universidade; o texto é acessível no site da fundação, www.tcf.org).

Foram escolhidas as 146 universidades mais seletivas dos EUA, e a população americana foi dividida em três faixas: 50% de classe média, 25% de privilegiados e 25% de desfavorecidos.

Constatou-se que, nas ditas universidades, 74% dos estudantes provêm da faixa mais privilegiada da sociedade americana, que representa 25% da população. Inversamente, só 3% dos estudantes pertencem ao quarto mais pobre.

Fato crucial: essa desproporção não coincide com as disparidades relativas à raça ou à etnia. Negros e hispânicos constituem mais de um quarto da população americana. Nas universidades de destaque, os jovens dessas origens étnicas são, hoje, 12% do corpo estudantil. Num mundo ideal, sem racismo e sem passivo escravagista, sua percentagem deveria ser igual à da população negra ou hispânica (mais de 25%). Em suma, a discriminação e seus restos dividem pela metade o contingente dos estudantes negros e hispânicos.

Agora compare essa disparidade com a outra já mencionada: só 3% dos estudantes provêm do quarto menos favorecido da população.

Como tanto o grupo dos menos favorecidos quanto o dos negros e hispânicos constituem aproximadamente um quarto da sociedade americana, é legítimo surpreender-se com o seguinte: passeando pelos campi das melhores universidades, você tem quatro vezes mais chances de encontrar um estudante negro ou hispânico que de encontrar um estudante pobre.

Numa ótica liberal, uma composição do corpo estudantil que reflita a percentagem dos diferentes grupos sociais (étnicos e econômicos) é desejável. Pois as desigualdades produzidas por nossa organização social e produtiva são toleráveis e toleradas graças à promessa de que haja uma chance de mobilidade social aberta a todos. Por isso, consideramos justo que, no ensino superior, todos os grupos sociais sejam representados de maneira compatível com sua relevância numérica no conjunto da população.

Desse ponto de vista, a injustiça contra os pobres, na sociedade americana de hoje, é quatro vezes mais dramática que a injustiça contra minorias étnicas.

Por que, então, nos debates políticos e midiáticos, só se fala de ações afirmativas em favor de minorias étnicas?

Volte ao caso dos divorciados: contabilizar e mesmo compensar as dívidas do passado é mais cômodo do que encarar as contradições do presente.

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