08 abril 2004

Adolescentes, entre um elefante e as cobras de Samwaad

Estreou na semana passada "Elefante", de Gus van Sant. O filme conta uma história mais que parecida com os acontecimentos de 20 de abril de 1999, quando dois estudantes de último ano do colégio de Columbine, Colorado, saíram atirando, assassinaram um professor e 12 colegas, feriram dezenas de outros e se mataram.

Para a decepção dos comentaristas, os dois jovens, Dylan Klebold e Eric Harris, eram quase "normais". Suas famílias não pareciam sinistras. Eles tinham pais e irmãos. Eram alunos corretos. Certo, não se integravam nos grupos em que se divide cada colégio americano (esportistas, cus-de-ferro, pode-crer etc.); mas os que não se integram são, em cada colégio, numerosos.

Verdade, gostavam de jogar "Doom", um video game muito violento; mas "Doom" vendeu acima de 600 mil cópias. Já havia armas em casa e era fácil conseguir mais; mas isso é banal num subúrbio do Colorado. Também, em 1998, os dois tinham tentado roubar um carro; mas, desde então, eles haviam completado com sucesso um programa para adolescentes réus primários (terapia, trabalho social etc.). Depois do massacre, foram encontradas, nos diários dos dois jovens, expressões de ódio suicida e homicida. Mas nada além de muitas letras de rap ou das músicas de um Kurt Cobain.

Em suma, mil razões, mas nenhuma à altura da enormidade do que aconteceu. Fora a dor das famílias das vítimas (e dos assassinos), fora o luto da comunidade de Columbine, o maior sofrimento produzido pelo evento foi, sem ironia, a frustração de não conseguirmos explicar.
A extraordinária qualidade do filme de Gus van Sant é esta: parece óbvio que uma tragédia vai acontecer, óbvio como um elefante passeando pela rua, mas as explicações do desastre são apenas jeitos que a gente encontra para que a razão nos console. As causas verdadeiras se perdem na banalidade cotidiana.

Naquele dia, Dylan e Eric, com seu fardo de armas, granadas e munições, levaram provavelmente para a escola um conjunto de desgostos triviais: a insatisfação com o vazio e a solidão de suas vidas, a vontade imperiosa de que algo acontecesse, a tristeza de eles não serem os heróis de ninguém, a frustração de não saber o que é amar.

Parêntese. Desde a ano passado, vários leitores me escreveram perguntando por que nunca comentei "Tiros em Columbine", o documentário de Michael Moore. De fato, gostei bastante do filme de M. Moore: é uma meditação (engraçada e corretamente não conclusiva) sobre a posse de armas na sociedade americana. É central, no filme, a comparação com o Canadá, onde a quantidade de armas per habitante é bem maior que nos EUA, embora o número de crimes seja incomparavelmente menor. Também central é o fato de que o próprio Michael Moore, fiel a suas raízes proletárias fincadas na América profunda, é membro de carteirinha da National Rifle Association, a associação americana dos proprietários de armas.

Os intelectuais progressistas americanos adotaram "Tiros em Columbine", mas a um preço: esqueceram a complexidade do filme. Puderam, assim, usá-lo para confirmar o que já pensavam: as armas são coisas de camponês e operário, coisa de pobre (de espírito e de conta no banco). Na espera de que as massas sejam "educadas", retiremos as armas de circulação, e as crianças voltarão para a escola seguras. Responde Gus van Sant: o buraco é mais embaixo. Parêntese fechado.

O que fazer, então, com esse elefante estranhamente familiar, que passeia por nossos gramados?
Lembra-se daquele jogo de crianças em que você coloca na mesa a figurinha de um bicho, e o colega propõe outro bicho, afirmando que o dele é mais forte e, numa luta, ganharia do seu? Ao elefante de Columbine, eu contraporia as cobras de adolescentes dançando, no espetáculo montado por Ivaldo Bertazzo, "Samwaad, a Rua do Encontro", no Sesc Belenzinho. Se você mora em São Paulo ou se vier para cá até o fim de junho, não perca.

O espetáculo é o resultado do projeto Dança Comunidade: durante nove meses, 53 jovens de várias ONGs de São Paulo passaram 25 horas por semana estudando e treinando para redescobrir seus corpos.

Em "Samwaad" não há discursos nem palavras. Só música, canto rítmico, percussões e dança. Misteriosamente, as evoluções dos dançarinos contêm e transmitem uma mensagem arrepiante de alegria de viver e de solidariedade possível.

Se fosse necessária uma demonstração de que o trabalho corporal pode tocar algum âmago da subjetividade, ela está dada. Aventurar-se na graça e na harmonia, transformar postura e gestualidade para um passeio na "Rua do Encontro" é uma maneira de recompor a imagem de si que cada um oferece aos outros, é um jeito de inventar novas relações. Pois, por exemplo, ninguém entra na ciranda sem confiar no próximo.

Olhando para os jovens de "Samwaad", pensei na caminhada triste de Dylan e Eric, que enfiavam os coturnos na grama carregando suas bolsas de morte, talvez encurvando os ombros, na paródia da postura do cantor de rap, que se tornou moda entre os adolescentes americanos e que evoca a atitude do boxeador acuado nas cordas.

Seria bom se os Dylans e Erics da vida encontrassem um Ivaldo Bertazzo que lhes ensinasse a dançar.

Um comentário: