Salvo imprevistos, no domingo que vem, dia 30 de janeiro, os iraquianos irão às urnas.
Circula pela internet um áudio de dois minutos, em que o terrorista jordaniano Abu Musab al Zarqawi, ligado à Al Qaeda, opõe-se às eleições, ameaçando eleitores e candidatos: "Nós declaramos uma guerra amarga contra o princípio de democracia e contra todos os que seguem essa ideologia errada. Qualquer um que tente ajudar esse sistema é parte disso". Como explicou a reportagem da Folha na segunda-feira passada, para Al Zarqawi, o sistema democrático "seria uma forma de substituir as leis de Deus pelas leis dos homens e da maioria, baseada em princípios não-islâmicos, como liberdade de religião e expressão e separação entre a religião e o Estado". Nas palavras de Al Zarqawi: "Os que votam são infiéis".
Nas eleições, é previsível a vitória dos xiitas, que constituem o 60% da população do Iraque. Mesmo abrandado, o projeto xiita é o mais próximo do que deseja Al Zarqawi. Então, por que ele não está feliz?
É que o terrorista jordaniano não se preocupa com o resultado de domingo. Ele odeia o próprio processo eleitoral e a idéia de democracia.
Para quem concorda com Samuel Huntington no "Choque de Civilizações", é mais uma "prova" de que o islamismo e o mundo árabe seriam culturalmente alérgicos às idéias ocidentais e modernas de autogoverno, de pacto social, de liberdade.
As culturas, às vezes, podem se opor radicalmente. Mas, no caso que nos interessa, não estou convencido de que exista uma incompatibilidade formal entre o Islã ou a cultura árabe e as idéias de democracia, liberdade e Estado laico. Mas há, isso sim, uma razão histórica específica que pode tornar qualquer idéia ocidental detestável no mundo islâmico e árabe. Mas vamos com calma.
Repete-se com freqüência que o Islã não admite a separação de Estado e religião, enquanto Cristo recomenda dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Conclui-se que o Islã seria inconciliável com uma democracia moderna. Mas a separação entre igreja e Estado, por mais que fosse anunciada pela frase do evangelho, não foi um presente da teologia católica. Ao contrário, na história do Ocidente, o apetite da Igreja Católica pelo poder mundano foi enorme e foi estancado a duras penas. Por outro lado, no passado (Espanha do século 13, por exemplo), o Islã foi uma religião exemplarmente moderna, precursora da Renascença européia.
Conclusão: provavelmente, toda religião instituída preferiria dominar não só as almas, mas também os corpos e o Estado. Desse ponto de vista, o Islã não é diferente do catolicismo.
Quem defende o "Choque de Civilizações" dirá, então, que o inimigo do Estado moderno e democrático não é tanto o Islã quanto a cultura árabe. Recomendo uma obra prima de antropologia psicológica, "The Arab Mind" (o espírito árabe), de Raphael Patai -livro que foi adotado pelo exército americano no Iraque, na (vã) esperança de munir as forças de ocupação de algum instrumento de compreensão da cristaleira na qual passeiam com seus tanques.
Patai mostra que, no fundamento mítico do espírito árabe, está a figura do beduíno, nômade e livre. Ibn Khaldun, o gênio árabe do século 14, escreveu que os árabes podem "gostar de selvageria porque essa significa liberdade da autoridade e nenhuma subserviência à uma liderança".
Ora, se o Islã é tão sedento de poder político quanto o catolicismo, se o "espírito árabe" começa com o anélito beduíno de liberdade, o que justificaria uma resistência árabe ou muçulmana ao ideário político da modernidade ocidental?
Patai propõe uma resposta. No mundo árabe, a recusa das idéias políticas modernas seria a expressão de um "ódio do Ocidente", que tem uma origem histórica singular. Não basta observar que a colonização do mundo árabe foi rápida e feroz e que a descolonização é recente. Afinal, há outras grandes culturas (a Índia, por exemplo) que sofreram o mesmo destino colonial sem que a reação antiocidental impedisse o acesso à modernidade política.
Mas "de todas as nações que foram colônias, só os árabes encontraram o Ocidente repetidamente em campo de batalha e o derrotaram, sujeitando-o ao seu domínio. Aconteceu na Espanha a partir do século 8º. Ainda no século 18, quando a liderança islâmica passara nas mãos da Turquia, a Europa centro-meridional até a Hungria estava sob dominação muçulmana".
Para Patai, no espírito de uma cultura, é crucial a lembrança do passado: o repúdio do Ocidente na cultura árabe expressa um desejo de revanche muito singular, pois ele não se alimenta apenas na memória das injúrias da colonização. Ele se alimenta na consciência nostálgica de um passado que foi de grande superioridade cultural e militar.
Faz todo sentido: os traços que uma cultura valoriza são os que mais favorecem a constituição de uma identidade comum, ou seja, quase sempre, os que enaltecem o sentimento de grandeza do grupo. Moral: se amássemos menos nossas "identidades", talvez parássemos de contar os pontos em jogos mortíferos que duram séculos.
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