Estréia amanhã o filme "Kinsey - Vamos Falar de Sexo", de Bill Condon. Liam Neeson é Alfred Kinsey, o biólogo que, no fim dos anos 40, forçou os americanos (e o mundo) a encarar a diversidade das fantasias e dos comportamentos sexuais humanos.
Claro, já fazia tempo que a "Psychopathia Sexualis", de Krafft-Ebing, se escondia nas estantes mais altas das bibliotecas da classe média. Adolescentes e adultos encontravam no latim do título (mantido nas inúmeras traduções) uma boa desculpa para acessar um repertório de sacanagens sem perder a compostura. É um tratado científico, não é?
Também fazia tempo que Freud repetia esta evidência: a sexualidade humana não é orientada só pelas necessidades da reprodução.
No entanto, até Kinsey, a extravagância dos desejos podia ser concebida como catálogo das bizarrias de loucos e louquinhos; pouco ou nada a ver com a gente.
Kinsey não queria explicar nada; não era psicólogo e não se propunha a descobrir motivações. Mas ele era um extraordinário entrevistador, capaz de perguntar e escutar sem julgar. Com um pequeno time, percorreu os Estados Unidos dando a palavra a milhares de homens e mulheres para que falassem de sua vida sexual. Revelou assim a estranha cara da pretensa "normalidade".
Em 1948, ele publicou "O Comportamento Sexual do Homem", que foi um imenso sucesso. Mas, em 1953, quando saiu "O Comportamento Sexual da Mulher", a reação foi brutal. A idéia de que o homem comum seja um tarado é aceitável; agora, não nos digam que nossas mulheres e mães têm fantasias e desejos.
Eram os tempos da caça às bruxas; a comissão Reece do Congresso americano investigava supostas "infiltrações comunistas" nas fundações filantrópicas do país. A comissão achou que Kinsey ameaçava a moralidade da nação; ele devia ser um perigoso comunista, não é? A Fundação Rockfeller, que subvencionava a pesquisa de Kinsey, se apavorou e cortou os fundos.
Na verdade, "perigosa comunista" era a própria comissão Reece, visto que ela queria subordinar o trabalho científico a exigências ideológicas, no melhor estilo da ciência stalinista. Alguém se lembra de Lyssenko? Foi o biólogo que destruiu a biologia soviética negando as descobertas básicas de Mendel porque não colavam com o materialismo dialético do catecismo marxista. Quem não concordava com Lyssenko ia para a Sibéria. Lyssenko é o padroeiro dos que tentam usar a "ciência" para confirmar suas ideologias e crenças entre eles, os que afirmam que existem práticas sexuais que seriam "contra a natureza".
Para Kinsey, a expressão patológica não é a variedade dos desejos, mas o silêncio.
O silêncio alimenta exclusão e culpa. É raro (obrigado, dr. Kinsey), mas acontece: há adolescentes que pensam ser os únicos no mundo a ter "pensamentos impuros". Basta encontrá-los para entender os tormentos aos quais o silêncio sobre o sexo pode condenar homens e mulheres. Como tolerar nosso próprio desejo se ele nos aparece como uma aberração? Como viver se, no discurso ao redor de nós, nada indica que nosso desejo tenha o direito de existir?
O silêncio sobre o sexo tem também um outro efeito. Ele pode transformar as fantasias e as práticas sexuais em baluartes últimos do narcisismo. Assim: "Sou um homem qualquer. Quando transo, sou bem-comportado, mas penso em coisas que não falo nem para minha parceira. Graças a esses porões escondidos de meu desejo, mantenho a ilusão de que, apesar de meu dia-a-dia cinza, eu sou especial, inconfundível". A armadilha narcisista mais antiga, a idéia de que não sou apenas um entre outros, serve-se da sexualidade silenciada para confortar o sujeito na crença idiota de sua excepcionalidade.
Onde estamos 50 anos depois de Kinsey?
Estou lendo "Sexualidade e Saberes: Convenções e Fronteiras", uma publicação (ótima) do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, do Instituto de Medicina Social da Uerj. O instituto foi criado com o apoio da Fundação Ford, que não por isso é acusada de ser "comunista". O mundo mudou. A diversidade dos desejos é reconhecida. Surgiu uma disciplina, a sexologia, que, por exemplo, convida os casais a melhorar sua vida sexual reconhecendo os desejos que cada um esconde do parceiro. Kinsey mal acreditaria seus olhos e ouvidos.
Entretanto voltam com força vozes que Kinsey acharia familiares. São os fundamentalistas de todo tipo que, nos EUA, tentaram impedir o acesso aos cinemas que projetavam "Kinsey". Por uma vez, em lugar do papa ou de um imame, podemos escolher o rabino Schmuley Boteach (autor de um livro intitulado "Kosher Sex").
Para Boteach, a obra de Kinsey nos corrompeu, introduzindo "a época da pornografia, do amor livre, da troca de casais" e mesmo da percentagem de 50% de casais que divorciam.
Um psicanalista perguntaria ao rabino Boteach de onde vem seu ódio pelos desejos "divergentes": "Você se sente ameaçado pelo quê, rabino?".
Já Kinsey, se encontrasse o rabino Boteach, agiria de outra forma, abriria sua pasta e sua caneta-tinteiro, puxaria um questionário e perguntaria calmamente: "Rabino, com que idade você começou a se masturbar?".
28 abril 2005
21 abril 2005
A república dos doutores
Numa época, as universidades particulares procuravam ansiosamente por doutores. O fato é que, para autorizar novos cursos, o Ministério da Educação exige que o corpo docente inclua pesquisadores qualificados, ou seja, doutores.
Ultimamente, as universidades particulares descobriram que o salário dos doutores é caro. Na medida do possível, querem substituí-los por mestres e graduados.
Esse cálculo poderia comprometer a qualidade do ensino. Mas não é o caso de preocupar-se: os donos das universidades particulares não acharão os mestres e os simples graduados necessários para efetuar a substituição, pois, no Brasil do começo do século 21, só há doutores. Prudente de Moraes pode festejar: a República dos Bacharéis se pós-graduou.
Faça a prova: ligue para advogados, psicólogos, arquitetos e outros profissionais liberais. Ouvirá: "A doutora está em consulta", "Vou ver se o doutor pode atender". Ligue para uma agência de publicidade, um escritório comercial ou uma empresa e tente falar com um dirigente (engenheiro, arquiteto, administradora etc.). É a mesma coisa: "O doutor está em reunião", "Quer deixar um recado para a doutora?".
Mas, trégua de brincadeiras. Em geral, esses profissionais não se apresentam como doutores num encontro com membros de sua classe social. Eles são doutores para suas secretárias e, graças a elas, para quem telefona.
Algumas semanas atrás, para assinar um contrato, fui até um elegante escritório comercial, na área de São Paulo (ao redor da avenida Berrini) que se apresenta como cartão-postal da modernização. Anunciei ao porteiro que eu devia encontrar o senhor E., que estava me esperando. O porteiro, modulando a voz de modo a acentuar a correção de minhas palavras, perguntou: "Você quer ver o doutor E.? E você é o senhor...?". Ele parecia treinado para produzir uma tentativa de intimidação social. Não achei graça e retruquei: "Ah, o senhor E. é doutor? Ele é médico ou tem doutorado em alguma outra especialidade?". O porteiro ficou atônito: como ele deveria reagir a essa resposta imprevista?
As regras do uso legítimo do título de doutor dizem que doutores são os que completam um doutorado e, por consideração especial, os médicos. Não sei se o porteiro conhecia essas regras. No entanto, graças a uma sabedoria vital em nosso mundo, ele sabia certamente que o título de doutor do senhor E. não designa uma excelência acadêmica, mas serve para significar uma distância social.
No caso, não há diferença nenhuma entre ser doutor e ser marquês de Carabás: ambos são títulos cujo uso vale como um gesto de submissão, como uma genuflexão. Reconhecendo que o senhor E. pertence a outra casta, o porteiro me convidava a dar prova da mesma deferência.
Ora, a modernidade triunfa quando a diversidade das origens, das funções sociais e das condições econômicas não altera o fato de que somos todos essencialmente iguais.
Na adolescência, participei da fundação de um pequeno círculo liberal "extremista", em que a gente praticava o costume jacobino de chamar os outros de "cidadão" ou "cidadã" (título que era para nós uma honra suprema), acompanhado da função de cada um: cidadão professor, cidadã estudante, cidadão carpinteiro. Um pouco mais tarde, sonhei com um mundo em que nos chamaríamos um ao outro de "companheiro" ou "companheira".
Isso acontecia numa outra sociedade de doutores, a Itália dos anos 60. A sociedade italiana acabava de se tornar republicana e vivia um conflito agudo entre a modernização acelerada, as desigualdades econômicas violentas e a nostalgia das antigas hierarquias. Com isso, as diferenças sociais modernas (diferenças de formação e de função) eram extraviadas e usadas como indicadores de privilégio e de casta. "Doutor", um título que deveria assinalar a competência específica de um cidadão, era usado para afirmar que ele pertencia à tribo dos abastados.
Entre parênteses: a universidade italiana, cúmplice do atraso nacional, chamava de "doutor" qualquer graduado.
A alusão a uma educação superior, que é contida no título "doutor", serve também para justificar o privilégio: se alguém é doutor, "merece" ser rico. Com isso, a classe média, sempre ameaçada por seu retrocesso, pode acreditar que seu privilégio não seja arbitrário e efêmero. Explica-se assim o mistério das reuniões de condomínio em que todos os condôminos são doutores e doutoras.
Enfim, é provável que o uso de "doutor" como índice e justificação do privilégio social seja um sintoma constante em todas as sociedades em que formas arcaicas de domínio desvirtuam as formas modernas da diferença social. "Doutor", nessas sociedades, não é médico nem pós-graduado: é quem tem cartão de crédito, acesso à sala VIP do aeroporto e carro importado.
Nota. A república dos doutores é especialmente risível hoje, quando a hierarquia social que parece contar é aquela produzida pela notoriedade. Nessa hierarquia, o que importa não são os títulos, mas os nomes próprios, à condição que sejam reconhecíveis. Você acha que Giorgio Armani e Paulo Coelho querem ser chamados de dr. Armani e dr. Coelho?
Ultimamente, as universidades particulares descobriram que o salário dos doutores é caro. Na medida do possível, querem substituí-los por mestres e graduados.
Esse cálculo poderia comprometer a qualidade do ensino. Mas não é o caso de preocupar-se: os donos das universidades particulares não acharão os mestres e os simples graduados necessários para efetuar a substituição, pois, no Brasil do começo do século 21, só há doutores. Prudente de Moraes pode festejar: a República dos Bacharéis se pós-graduou.
Faça a prova: ligue para advogados, psicólogos, arquitetos e outros profissionais liberais. Ouvirá: "A doutora está em consulta", "Vou ver se o doutor pode atender". Ligue para uma agência de publicidade, um escritório comercial ou uma empresa e tente falar com um dirigente (engenheiro, arquiteto, administradora etc.). É a mesma coisa: "O doutor está em reunião", "Quer deixar um recado para a doutora?".
Mas, trégua de brincadeiras. Em geral, esses profissionais não se apresentam como doutores num encontro com membros de sua classe social. Eles são doutores para suas secretárias e, graças a elas, para quem telefona.
Algumas semanas atrás, para assinar um contrato, fui até um elegante escritório comercial, na área de São Paulo (ao redor da avenida Berrini) que se apresenta como cartão-postal da modernização. Anunciei ao porteiro que eu devia encontrar o senhor E., que estava me esperando. O porteiro, modulando a voz de modo a acentuar a correção de minhas palavras, perguntou: "Você quer ver o doutor E.? E você é o senhor...?". Ele parecia treinado para produzir uma tentativa de intimidação social. Não achei graça e retruquei: "Ah, o senhor E. é doutor? Ele é médico ou tem doutorado em alguma outra especialidade?". O porteiro ficou atônito: como ele deveria reagir a essa resposta imprevista?
As regras do uso legítimo do título de doutor dizem que doutores são os que completam um doutorado e, por consideração especial, os médicos. Não sei se o porteiro conhecia essas regras. No entanto, graças a uma sabedoria vital em nosso mundo, ele sabia certamente que o título de doutor do senhor E. não designa uma excelência acadêmica, mas serve para significar uma distância social.
No caso, não há diferença nenhuma entre ser doutor e ser marquês de Carabás: ambos são títulos cujo uso vale como um gesto de submissão, como uma genuflexão. Reconhecendo que o senhor E. pertence a outra casta, o porteiro me convidava a dar prova da mesma deferência.
Ora, a modernidade triunfa quando a diversidade das origens, das funções sociais e das condições econômicas não altera o fato de que somos todos essencialmente iguais.
Na adolescência, participei da fundação de um pequeno círculo liberal "extremista", em que a gente praticava o costume jacobino de chamar os outros de "cidadão" ou "cidadã" (título que era para nós uma honra suprema), acompanhado da função de cada um: cidadão professor, cidadã estudante, cidadão carpinteiro. Um pouco mais tarde, sonhei com um mundo em que nos chamaríamos um ao outro de "companheiro" ou "companheira".
Isso acontecia numa outra sociedade de doutores, a Itália dos anos 60. A sociedade italiana acabava de se tornar republicana e vivia um conflito agudo entre a modernização acelerada, as desigualdades econômicas violentas e a nostalgia das antigas hierarquias. Com isso, as diferenças sociais modernas (diferenças de formação e de função) eram extraviadas e usadas como indicadores de privilégio e de casta. "Doutor", um título que deveria assinalar a competência específica de um cidadão, era usado para afirmar que ele pertencia à tribo dos abastados.
Entre parênteses: a universidade italiana, cúmplice do atraso nacional, chamava de "doutor" qualquer graduado.
A alusão a uma educação superior, que é contida no título "doutor", serve também para justificar o privilégio: se alguém é doutor, "merece" ser rico. Com isso, a classe média, sempre ameaçada por seu retrocesso, pode acreditar que seu privilégio não seja arbitrário e efêmero. Explica-se assim o mistério das reuniões de condomínio em que todos os condôminos são doutores e doutoras.
Enfim, é provável que o uso de "doutor" como índice e justificação do privilégio social seja um sintoma constante em todas as sociedades em que formas arcaicas de domínio desvirtuam as formas modernas da diferença social. "Doutor", nessas sociedades, não é médico nem pós-graduado: é quem tem cartão de crédito, acesso à sala VIP do aeroporto e carro importado.
Nota. A república dos doutores é especialmente risível hoje, quando a hierarquia social que parece contar é aquela produzida pela notoriedade. Nessa hierarquia, o que importa não são os títulos, mas os nomes próprios, à condição que sejam reconhecíveis. Você acha que Giorgio Armani e Paulo Coelho querem ser chamados de dr. Armani e dr. Coelho?
14 abril 2005
Os casamentos de Charles e "Jogos Subterrâneos"
No sábado passado, Charles, príncipe de Gales, casou-se, enfim, com Camilla Parker-Bowles. Não foi a celebração de uma nova paixão, mas um jeito de ratificar um relacionamento bastante persistente e, às vezes, um pouco inglório. A cerimônia suscitou simpatias, mas não fez sonhar ninguém, contrariamente ao que aconteceu no primeiro casamento do príncipe.
Se você tem mais de 40 anos, lembra-se das bodas de Charles com Diana Spencer.
Foi em julho de 1981. Talvez você achasse desprezível o interesse popular pelos amores dos "chiques e famosos". Talvez você zapeasse a cada aparição do casal na televisão e arrancasse furiosamente as capas de jornais e revistas, mas é impossível que você tenha evitado a visão dos beijos e dos olhares apaixonados do casal.
Anos depois, em 1994, numa entrevista televisiva, Charles admitiu ter sido infiel durante o casamento. Detalhe desagradável: a própria Diana foi informada naquela ocasião, pela televisão. Também em 1994 foi publicada uma biografia autorizada de Charles, em que ele declarava nunca ter amado Diana e ter casado com ela por pressão familiar.
A princesa deu o troco. No fim de 94, o major James Hewitt, instrutor de equitação de William, o primogênito do casal, tornou pública sua relação com a princesa, uma história que já durava cinco anos e que incluía aspectos pouco simpáticos, como algumas noites passadas com Diana no Palácio de Kensington, enquanto Charles estava viajando.
No entanto, apesar da declaração de Charles em 1994, basta contemplar as fotografias do casamento e dos primeiros tempos de Charles e Diana (é fácil encontrá-las na internet) para pensar que eles estavam sinceramente apaixonados.
Admito que talvez não estivessem apaixonados um pelo outro, mas ambos pela imagem ideal de seu encontro, de seu amor e de seu casamento. Acontece com muitos casais e não é necessário, para isso, que o encontro se dê numa festa na residência real de Sandringham ou que o casamento seja transmitido ao vivo para 1 bilhão de espectadores pelo mundo afora. De qualquer encontro amoroso, por modesto que seja, todos esperam que componha o cartão-postal de uma paixão perfeita.
A fotografia mais famosa do casamento de Diana e Charles é o beijo na sacada do palácio de Buckingham. Quando os recém-casados apareceram, a multidão de espectadores entoou: "Kiss-her, kiss-her", "Bei-ja, bei-ja". Beijaram-se.
Aparentemente, há um cálculo racional que transforma o encontro e a paixão inicial em figuras ideais do amor romântico. A idéia é a seguinte: se a escolha do parceiro for correta, se o encontro for mágico e encantado, o futuro do casal só poderá ser radioso.
Romances e filmes de amor, em sua esmagadora maioria, narram as peripécias dos amantes até que consigam se juntar. Depois disso, parece óbvio que eles vivam "felizes para sempre". Infeliz e freqüentemente, nos consultórios de psicoterapeutas e psicanalistas, a história dos casais depois do cartão-postal inicial é contada em versões bem menos sorridentes.
Agora, encontrar alguém que a gente esteja a fim de amar não é pouca coisa. Em geral, os verdadeiros encontros amorosos de uma vida se contam nos dedos de uma mão só.
Em suma, há uma expectativa de que encontros perfeitos e raros garantam amores felizes para a vida toda. Com isso, os momentos inicias do amor parecem ser os únicos que importam, os únicos que valem a pena contar.
"Jogos Subterrâneos", o bonito filme de Roberto Gervitz, que está em cartaz nestes dias, não é uma exceção. Inspirado num conto de Cortázar, narra a estratégia e as tentativas do protagonista, Martín, para encontrar a mulher da sua vida. Ele estabelece ao acaso um trajeto pelo metrô paulistano. Logo ele espera que, entre os passageiros, uma mulher capture seu olhar e a segue: se ela respeitar exatamente o percurso que ele prefixou, será a mulher de sua vida. A artimanha pode ser entendida de duas maneiras: todo encontro é um capricho do destino e é bom apaixonar-se por alguém que esteja fazendo um percurso parecido com o nosso.
No entanto Martín não pára de esbarrar em exceções à sua regra: ele só se relaciona com mulheres que seguem trajetos diferentes dos que ele fixou, mulheres que ele acaba conhecendo por acidente. Mesmo assim, ele consegue (a duras penas) o que ele queria: um encontro que, em matéria de cartão-postal, não deve nada ao casamento de Charles e Diana.
Mas esse "final feliz" é apenas o começo de uma história e é fácil prever que "nossos heróis" não vão viver felizes para sempre.
Aliás, na saída do filme, fiquei me perguntando: entre as mulheres que o protagonista encontra no metrô com qual ele dividiria a vida inteira (ou, ao menos, uma década prazerosa), se ele soubesse e pudesse escolher? Em outras palavras, Martín, no filme, encontra sua princesa Diana, mas quem seria sua melhor Camilla?
Se você tem mais de 40 anos, lembra-se das bodas de Charles com Diana Spencer.
Foi em julho de 1981. Talvez você achasse desprezível o interesse popular pelos amores dos "chiques e famosos". Talvez você zapeasse a cada aparição do casal na televisão e arrancasse furiosamente as capas de jornais e revistas, mas é impossível que você tenha evitado a visão dos beijos e dos olhares apaixonados do casal.
Anos depois, em 1994, numa entrevista televisiva, Charles admitiu ter sido infiel durante o casamento. Detalhe desagradável: a própria Diana foi informada naquela ocasião, pela televisão. Também em 1994 foi publicada uma biografia autorizada de Charles, em que ele declarava nunca ter amado Diana e ter casado com ela por pressão familiar.
A princesa deu o troco. No fim de 94, o major James Hewitt, instrutor de equitação de William, o primogênito do casal, tornou pública sua relação com a princesa, uma história que já durava cinco anos e que incluía aspectos pouco simpáticos, como algumas noites passadas com Diana no Palácio de Kensington, enquanto Charles estava viajando.
No entanto, apesar da declaração de Charles em 1994, basta contemplar as fotografias do casamento e dos primeiros tempos de Charles e Diana (é fácil encontrá-las na internet) para pensar que eles estavam sinceramente apaixonados.
Admito que talvez não estivessem apaixonados um pelo outro, mas ambos pela imagem ideal de seu encontro, de seu amor e de seu casamento. Acontece com muitos casais e não é necessário, para isso, que o encontro se dê numa festa na residência real de Sandringham ou que o casamento seja transmitido ao vivo para 1 bilhão de espectadores pelo mundo afora. De qualquer encontro amoroso, por modesto que seja, todos esperam que componha o cartão-postal de uma paixão perfeita.
A fotografia mais famosa do casamento de Diana e Charles é o beijo na sacada do palácio de Buckingham. Quando os recém-casados apareceram, a multidão de espectadores entoou: "Kiss-her, kiss-her", "Bei-ja, bei-ja". Beijaram-se.
Aparentemente, há um cálculo racional que transforma o encontro e a paixão inicial em figuras ideais do amor romântico. A idéia é a seguinte: se a escolha do parceiro for correta, se o encontro for mágico e encantado, o futuro do casal só poderá ser radioso.
Romances e filmes de amor, em sua esmagadora maioria, narram as peripécias dos amantes até que consigam se juntar. Depois disso, parece óbvio que eles vivam "felizes para sempre". Infeliz e freqüentemente, nos consultórios de psicoterapeutas e psicanalistas, a história dos casais depois do cartão-postal inicial é contada em versões bem menos sorridentes.
Agora, encontrar alguém que a gente esteja a fim de amar não é pouca coisa. Em geral, os verdadeiros encontros amorosos de uma vida se contam nos dedos de uma mão só.
Em suma, há uma expectativa de que encontros perfeitos e raros garantam amores felizes para a vida toda. Com isso, os momentos inicias do amor parecem ser os únicos que importam, os únicos que valem a pena contar.
"Jogos Subterrâneos", o bonito filme de Roberto Gervitz, que está em cartaz nestes dias, não é uma exceção. Inspirado num conto de Cortázar, narra a estratégia e as tentativas do protagonista, Martín, para encontrar a mulher da sua vida. Ele estabelece ao acaso um trajeto pelo metrô paulistano. Logo ele espera que, entre os passageiros, uma mulher capture seu olhar e a segue: se ela respeitar exatamente o percurso que ele prefixou, será a mulher de sua vida. A artimanha pode ser entendida de duas maneiras: todo encontro é um capricho do destino e é bom apaixonar-se por alguém que esteja fazendo um percurso parecido com o nosso.
No entanto Martín não pára de esbarrar em exceções à sua regra: ele só se relaciona com mulheres que seguem trajetos diferentes dos que ele fixou, mulheres que ele acaba conhecendo por acidente. Mesmo assim, ele consegue (a duras penas) o que ele queria: um encontro que, em matéria de cartão-postal, não deve nada ao casamento de Charles e Diana.
Mas esse "final feliz" é apenas o começo de uma história e é fácil prever que "nossos heróis" não vão viver felizes para sempre.
Aliás, na saída do filme, fiquei me perguntando: entre as mulheres que o protagonista encontra no metrô com qual ele dividiria a vida inteira (ou, ao menos, uma década prazerosa), se ele soubesse e pudesse escolher? Em outras palavras, Martín, no filme, encontra sua princesa Diana, mas quem seria sua melhor Camilla?
07 abril 2005
A chacina da Baixada Fluminense e o uso de mercenários
Na noite de quinta-feira passada, dois carros (ao que parece) atravessaram as cidades de Queimados e Nova Iguaçu, na região metropolitana do Rio, espalhando o horror. Não foi uma corrida de loucos ou bêbados atirando pelas janelas. Os carros paravam, e a matança começava, com armas do calibre usado pela polícia. Foram assassinados assim 30 cidadãos, ao acaso. Dez eram adolescentes de idade entre 13 anos e 19 anos.
Até hoje (terça-feira, quando entrego esta coluna), a Polícia Federal investiga a participação ou o envolvimento de 11 policiais militares.
A escolha a esmo das vítimas sugere que não se tratou de uma execução coletiva a mando de moradores preocupados com sua segurança. Ou seja, o episódio é diferente do massacre da Candelária (1993), em que sete crianças de rua foram liqüidadas para "limpar" a área. Difere também do massacre de Corumbiara (1995), em que morreram 70 sem-terra. E difere do massacre de Eldorado do Carajás (1996), em que morreram 19 trabalhadores rurais. Nesses casos, segundo a Pastoral da Terra, os policiais envolvidos agiram como "um poder paralelo em conluio com os fazendeiros".
Tampouco parece que a chacina de quinta passada seja uma vingança, como o massacre de Vigário Geral (1993), quando 21 cidadãos foram assassinados a esmo, mas no intento de vingar a morte de quatro policiais, que tinham sido mortos, no dia anterior, pelos traficantes da favela.
No caso da semana passada, não se conhece uma motivação dessa ordem. Trata-se da atuação de um grupo de extermínio que, pelo terror, quer impor sua presença e sua norma a um bairro. Ou, então, trata-se de policiais que estavam sendo investigados ou punidos por sua conduta violenta e não gostavam dessa medida administrativa: eles teriam massacrado para intimidar a população, sua própria corporação e o Estado.
Nisso, o horror de Queimados e de Nova Iguaçu se parece sinistramente com a atuação, passada e presente (em outras partes do planeta), de milícias e exércitos mercenários.
Pela Itália do século 14, por exemplo, erravam numerosas "companhias de aventura": eram exércitos privados, compostos de soldados profissionais originários de cada canto da Europa. Vendiam-se a quem pagasse melhor e, pelo preço certo, podiam virar a casaca até no meio de uma batalha. Não tinham compromisso algum com as nações que os empregavam e que eles defendiam, porque, simplesmente, eles não faziam parte do povo dessas nações. Os Estados italianos eram mais ricos que populosos. Seus cidadãos estavam mais interessados em enriquecer ou em cultivar as artes do que em correr o risco de morrer combatendo. Os Estados, portanto, pagavam. Caso o dinheiro não alcançasse o valor pedido, ou para complementá-lo, os mercenários se retribuíam saqueando o território dos inimigos do momento. Quando a guerra terminava, ninguém voltava para casa. Os mercenários passavam a saquear por conta própria; freqüentemente, pilhavam o povo pelo qual acabavam de guerrear. Sua violência aumentava sua reputação, seduzindo clientes futuros. Uma sugestão de leitura: "Mercenary Companies and the Decline of Siena" (as companhias mercenárias e o declínio de Siena), de W. Caferro (Johns Hopkins University Press, 1999).
Há um exemplo bem atual de desastre produzido pelo recurso a forças mercenárias. A catástrofe política e humana de boa parte da África de hoje é incompreensível sem considerar os efeitos da proliferação em seu território, desde a Guerra Fria, de milícias e exércitos mercenários. Os estragos produzidos por essas "companhias de aventura" de nossos dias são multiplicados por um contexto em que as diferenças étnicas e tribais impedem que surjam consciências nacionais: os bandos mercenários não pertencem a pátria alguma. Mais uma sugestão: "Mercenaries, the Scourge of the Third World" (mercenários, a praga do Terceiro Mundo), de Guy Arnold (Palgrave Macmillan, 1999).
Qual a relação disso tudo com a chacina de Queimados e Nova Iguaçu?
Os fatos da semana passada revelam que alguns de nossos policiais só são fiéis a seus empreendimentos privados. É claro que deve existir uma vileza específica de seu espírito. Mas resta que, em geral, visto o lugar social que lhes é atribuído por sua remuneração, nossos policiais podem se sentir dissociados da comunidade na qual operam tanto quanto os mercenários medievais ou africanos.
Enquanto os policiais não forem incluídos concretamente no tecido de nossa sociedade, enquanto eles não forem parte de nossa classe média, eles permanecerão, por assim dizer, estrangeiros "econômicos" à nação cujas leis eles deveriam defender. Não pode nos surpreender, portanto, que os piores entre eles ajam como bandos de capangas: afinal, por que reconheceriam a legalidade de uma comunidade que os exclui?
Em suma, o massacre de quinta-feira passada não é essencialmente diferente do saque perpetrado por uma "companhia de aventura" que não gostasse de ser demitida pelos Estados do Papa ou por Florença. Assim como não é diferente da devastação de uma vila por uma milícia africana sem pátria.
Até hoje (terça-feira, quando entrego esta coluna), a Polícia Federal investiga a participação ou o envolvimento de 11 policiais militares.
A escolha a esmo das vítimas sugere que não se tratou de uma execução coletiva a mando de moradores preocupados com sua segurança. Ou seja, o episódio é diferente do massacre da Candelária (1993), em que sete crianças de rua foram liqüidadas para "limpar" a área. Difere também do massacre de Corumbiara (1995), em que morreram 70 sem-terra. E difere do massacre de Eldorado do Carajás (1996), em que morreram 19 trabalhadores rurais. Nesses casos, segundo a Pastoral da Terra, os policiais envolvidos agiram como "um poder paralelo em conluio com os fazendeiros".
Tampouco parece que a chacina de quinta passada seja uma vingança, como o massacre de Vigário Geral (1993), quando 21 cidadãos foram assassinados a esmo, mas no intento de vingar a morte de quatro policiais, que tinham sido mortos, no dia anterior, pelos traficantes da favela.
No caso da semana passada, não se conhece uma motivação dessa ordem. Trata-se da atuação de um grupo de extermínio que, pelo terror, quer impor sua presença e sua norma a um bairro. Ou, então, trata-se de policiais que estavam sendo investigados ou punidos por sua conduta violenta e não gostavam dessa medida administrativa: eles teriam massacrado para intimidar a população, sua própria corporação e o Estado.
Nisso, o horror de Queimados e de Nova Iguaçu se parece sinistramente com a atuação, passada e presente (em outras partes do planeta), de milícias e exércitos mercenários.
Pela Itália do século 14, por exemplo, erravam numerosas "companhias de aventura": eram exércitos privados, compostos de soldados profissionais originários de cada canto da Europa. Vendiam-se a quem pagasse melhor e, pelo preço certo, podiam virar a casaca até no meio de uma batalha. Não tinham compromisso algum com as nações que os empregavam e que eles defendiam, porque, simplesmente, eles não faziam parte do povo dessas nações. Os Estados italianos eram mais ricos que populosos. Seus cidadãos estavam mais interessados em enriquecer ou em cultivar as artes do que em correr o risco de morrer combatendo. Os Estados, portanto, pagavam. Caso o dinheiro não alcançasse o valor pedido, ou para complementá-lo, os mercenários se retribuíam saqueando o território dos inimigos do momento. Quando a guerra terminava, ninguém voltava para casa. Os mercenários passavam a saquear por conta própria; freqüentemente, pilhavam o povo pelo qual acabavam de guerrear. Sua violência aumentava sua reputação, seduzindo clientes futuros. Uma sugestão de leitura: "Mercenary Companies and the Decline of Siena" (as companhias mercenárias e o declínio de Siena), de W. Caferro (Johns Hopkins University Press, 1999).
Há um exemplo bem atual de desastre produzido pelo recurso a forças mercenárias. A catástrofe política e humana de boa parte da África de hoje é incompreensível sem considerar os efeitos da proliferação em seu território, desde a Guerra Fria, de milícias e exércitos mercenários. Os estragos produzidos por essas "companhias de aventura" de nossos dias são multiplicados por um contexto em que as diferenças étnicas e tribais impedem que surjam consciências nacionais: os bandos mercenários não pertencem a pátria alguma. Mais uma sugestão: "Mercenaries, the Scourge of the Third World" (mercenários, a praga do Terceiro Mundo), de Guy Arnold (Palgrave Macmillan, 1999).
Qual a relação disso tudo com a chacina de Queimados e Nova Iguaçu?
Os fatos da semana passada revelam que alguns de nossos policiais só são fiéis a seus empreendimentos privados. É claro que deve existir uma vileza específica de seu espírito. Mas resta que, em geral, visto o lugar social que lhes é atribuído por sua remuneração, nossos policiais podem se sentir dissociados da comunidade na qual operam tanto quanto os mercenários medievais ou africanos.
Enquanto os policiais não forem incluídos concretamente no tecido de nossa sociedade, enquanto eles não forem parte de nossa classe média, eles permanecerão, por assim dizer, estrangeiros "econômicos" à nação cujas leis eles deveriam defender. Não pode nos surpreender, portanto, que os piores entre eles ajam como bandos de capangas: afinal, por que reconheceriam a legalidade de uma comunidade que os exclui?
Em suma, o massacre de quinta-feira passada não é essencialmente diferente do saque perpetrado por uma "companhia de aventura" que não gostasse de ser demitida pelos Estados do Papa ou por Florença. Assim como não é diferente da devastação de uma vila por uma milícia africana sem pátria.
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