07 junho 2006

"Vôo United 93", quatro estrelas

De um lado, homens sem princípios fixos, do outro, princípios fixos sem homens

DURANTE DEZ anos, a cada mês, viajei entre São Paulo e a costa leste dos EUA. Naquele tempo, existia um vôo diurno, via Miami, que eu preferia.

Mais de cem vezes, entrei num avião de manhã cedo, em Nova York ou em Boston, no aperto da classe econômica ou (quando as milhas acumuladas permitiam um "upgrade") na executiva.
Graças ao cartão de fidelidade, entrava na cabine entre os primeiros, sentava e observava o desfile de meus companheiros de viagem: homens e mulheres de negócios, casais e famílias que saíam de férias para a Flórida, idosos que moravam na Flórida e voltavam para lá depois de visitar filhos e netos, e por aí vai.

Pálidos de sono, naquela hora cinzenta, parecíamos uma turma de fantasmas da madrugada, reunidos apenas pelo acaso. Mas tínhamos algo em comum: uma mesma disposição a viajar por mil razões, no fundo (salvo exceções), todas fúteis.

No fim do livro primeiro de "O Capital", Marx descreveu a "acumulação primitiva", espécie de pecado original do capitalismo. O processo se deu entre os séculos 14 e 15, com a extinção do servo feudal e a criação de um exército de homens e mulheres errantes que, para sobreviver, só podiam vender sua força de trabalho pelo mundo afora.

Transformamos aquela violência inicial numa virtude: acabamos gostando de nossa errância. Viajamos facilmente, a lazer, a negócios ou por amor: a dor do desterrado foi compensada pelo anseio de liberdade e por uma fome voraz de novas experiências.

Lembrei-me de minhas turmas matinais de viajantes assistindo a "Vôo United 93", o filme de Paul Greengrass que reconstrói a última viagem do UA 93, na manhã de 11 de setembro de 2001.

O vôo foi o único que não atingiu seu alvo (o Capitólio ou a Casa Branca, em Washington), mas caiu nas planícies da Pensilvânia. Pelos telefonemas que os passageiros conseguiram dar na última meia hora de vôo, sabe-se o seguinte: eles aprenderam que os outros aviões seqüestrados tinham sido lançados contra as torres do World Trade Center e contra o Pentágono e tentaram se reapropriar do avião. Agiram para salvar suas vidas, com um plano improvisado e sussurrado no fundo da cabine. Não agiram em nome de uma idéia ou de um princípio "superior". Foram heróis porque venceram a inércia e o medo que poderiam paralisá-los até o fim, na espera de um milagre improvável.

A confusão na cabine do UA 93 ecoava no despreparo dos controles de vôo e dos militares, surpreendidos pelos eventos e confrontados com decisões impossíveis.

Alguns suspeitam que o UA 93 tenha sido abatido antes que se transformasse numa bomba. E se fosse? A história da revolta de seus passageiros, comprovada por seus telefonemas finais, seria a mesma. Só deveríamos rever (para melhor) nossa opinião de Dick Cheney, o vice-presidente americano que teria dado a ordem: uma decisão desse porte transforma qualquer um numa personagem shakespeariana.

Seja como for, naquela manhã de 11 de setembro, no ar ou na terra, ninguém sabia o que fazer. Ou melhor, sim, alguém sabia o que fazer: os terroristas a bordo dos aviões seqüestrados. Esta seja talvez a oposição que dá uma dimensão exata do conflito com o qual começa este século. De um lado, homens quaisquer, com pequenos ou grandes sonhos e amores, viajantes, sem princípios fixos que os orientem, atormentados pela tarefa de decidir a cada dia e a cada instante, num compromisso, o que é certo e o que é errado. Do outro, homens totalmente dedicados a princípios fixos, ou, talvez, fosse melhor dizer: princípios fixos sem homens.

Os teólogos (muçulmanos, judeus e cristãos) que me perdoem, mas, desde a infância, sempre achei que Abraão, disposto a sacrificar o filho Isaac e incapaz de mandar Deus para aquele lugar, era um grande panaca. Claro, na infância, eu devia me identificar com Isaac. Mas não mudei de idéia.

Moral da história: homens ordinários são capazes de uma estupidez extraordinária quando acham que têm idéias extraordinárias. Em compensação, homens ordinários podem se revelar capazes de gestos extraordinários apesar de ter idéias absolutamente ordinárias.

Não sei por que razão o filme foi avaliado com duas estrelas, apesar dos elogios dos críticos da Ilustrada (Pedro Butcher) e do Guia da Folha (Ricardo Calil). Vou passar a dar notas: "Vôo United 93", quatro estrelas, imperdível.

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