A visão melancólica do país e de nós mesmos nos torna inertes e um pouco covardes
NA FOLHA de 16 de julho, Marcelo Beraba, ombudsman do jornal, observou que a imprensa não soube se servir da crise paulista das últimas semanas para comparar e questionar as propostas de segurança pública dos candidatos ao governo do Estado e à Presidência. Talvez, segundo ele, a imprensa não dispusesse de "quadros com bons conhecimentos" na área.
Nestes dias, o "Observatório da Imprensa", de Alberto Dines, propôs uma pergunta aos internautas: "O combate à violência pode entrar na disputa eleitoral? Sim ou não?". A grande maioria (80%) optou pelo sim. Faz sentido: afinal, a segurança pública é uma preocupação crucial dos cidadãos.
Ora, no domingo passado, a Folha publicou uma comparação das opiniões sobre segurança pública de Serra, Mercadante e Quércia. A reportagem, de Lilian Christofoletti, tentava diferenciar as propostas, mas, à vista das respostas dos candidatos, a conclusão era que, em matéria de segurança pública, os três pensam de maneira parecida.
É lógico que seja assim. Há 15 anos, participo de encontros e congressos sobre segurança urbana. Escutei enfoques diferentes e discordâncias quanto à ordem das prioridades. Mas, no conjunto, chega-se, de qualquer modo, a uma lista com a qual todos concordam e que é mais que conhecida. A ponto que talvez o silêncio dos "experts" (do qual se queixa Beraba) seja, sobretudo, sinal de cansaço.
Hoje, em matéria de segurança pública, o problema não é inventar o que fazer. O problema é fazer o que sabemos que deve ser feito. A segurança pública não é (ou não é mais) um problema político. Os secretários de Segurança, estaduais e federais, não precisam mudar segundo as fortunas dos partidos; eles poderiam ser escolhidos por sua competência e mantidos no cargo como "técnicos", encarregados de implementar as medidas com as quais todos concordam. Por isso, aliás, na pesquisa do "Observatório", optei pelo "não".
Pergunta: se sabemos o que fazer, por que não acontece quase nada? Proponho mais uma explicação. A lista das ações necessárias para melhorar a segurança pública no país é sempre encabeçada por uma declaração geral do tipo: "A sociedade brasileira deveria se tornar menos desigual e, com isso, não produzir nem reproduzir exclusão social".
Não há quem discorde. Mas essa recomendação inaugural, fundamental e justa, regularmente lembrada quando é proposta uma ação concreta qualquer, acarreta consigo a sensação de um destino nefasto: injustiça e desigualdade são a herança que nos constitui, o nosso DNA. De repente, as outras recomendações da lista parecem esparadrapos cosméticos sobre uma ferida que não sara.
É um tipo de armadilha freqüente na nossa vida cotidiana: "Tenho 40 anos, não completei o colégio e não tenho futuro", "Tenho 60, e meu casamento de 30 anos está sem graça, agora é tarde", "Nasci no lugar e no momento errados", "Com os pais que eu tive, não adianta". Qualquer terapeuta sabe que, diante desses autodiagnósticos radicais, "totais", a primeira tarefa é a de decompor a massa amorfa do desespero até encontrar seus elementos e organizá-los no tempo e no espaço.
Na vida política não é diferente: uma visão global negativa desqualifica os esforços para mudar, que parecem fúteis esparadrapos. Somos fascinados pelas autodefinições (sobretudo pejorativas: "O Brasil é assim mesmo") e, com isso, preguiçosos na análise dos detalhes e na ação para alterá-los. Essa atitude melancólica exerce um forte charme, pois ela dá sentido aos nossos males e nos dispensa de pensar e agir: nossa dificuldade é inevitável, ela é nossa essência. A autodepreciação nos revela quem somos; ela nos resume e nos define. Com isso, ela também nos apazigua: por que lutar contra nosso "ser"? Melhor fazer de nossa vida um longo lamento.
À primeira vista, a queixa radical contra a história e o "espírito do povo" parece mais séria do que o trabalho de formiga de quem tenta alterar o que pode ser alterado. Mas a eterna reclamação de que "o buraco é muito mais em baixo" acaba nos tornando inertes e um pouco covardes.
PS. Boa notícia: vários leitores da coluna da semana retrasada me comunicaram que há duas (ótimas) naturezas-mortas de Morandi no MAC da USP, doações de Francisco Matarazzo e Yolanda Penteado.
27 julho 2006
20 julho 2006
Cadê os cidadãos de São Paulo?
O crime conta com a falta de espírito cívico. Seria boa oportunidade para desmenti-lo
NESTES DIAS de violência (que continuam em surdina), houve e há um grande ausente: nós, o povo de São Paulo. Claro, pedimos políticas e intervenções públicas à altura; segundo nossa inclinação, insistimos nos direitos da população carcerária ou na necessidade de uma repressão severa, mas tanto faz: em ambos os casos (que, aliás, não são contraditórios), ficamos em casa esperando que Deus nos acuda. Você perguntará: "Fazer o quê?".
Pois é, espanta-me que as grandes organizações da sociedade civil, os sindicatos, as igrejas, os partidos (indistintamente), as associações corporativas etc. não tenham convocado (nem planejem convocar, aparentemente) uma manifestação de massa, silenciosa, sem palanques, só para afirmar que, seja qual for a convicção política de cada um, as ruas da cidade são nossas, não da barbárie.
Somos capazes de fechar bancos, repartições e comércios para assistir a um jogo da Copa ou por medo do crime. Será que não saberíamos parar a cidade para proclamar que ela nos pertence?
Não seria um gesto retórico, sem conseqüência efetiva. Pergunte-se: o que o crime organizado espera de nós?
Assassinaram policiais e agentes penitenciários. Destruíram ônibus, caminhões da coleta do lixo, uma ambulância, agências de banco, lojas. Mas evitaram produzir a morte indiscriminada de cidadãos quaisquer. Duvido que haja, atrás dessa estratégia, uma preocupação com nossas vidas. Mas talvez haja, isso sim, uma tentativa de ganhar ou de não perder nossa "cumplicidade". É uma palavra forte?
Na quinta-feira passada, alguns usuários, irritados pela ausência de ônibus nas ruas, tentaram queimar os poucos que circulavam ("Se não há transporte, não há para ninguém", diziam). É a reação esperada pelo crime, uma reação que confirmaria nossa incapacidade de entender o seguinte: o que é "público" é nosso, as ambulâncias e os caminhões do lixo são nossos, os ônibus são privados, mas seu serviço é nosso, e o mesmo vale para bancos e lojas.
Quanto aos policiais e aos agentes carcerários, eles são, literalmente, "os nossos". Na noite de quinta-feira passada, passei de carro na frente do posto da PM da rua Jesuíno Arruda, no Itaim Bibi. Sete ou oito cones de plástico forçavam os motoristas a se afastar um pouco (dois metros) da calçada.
Fora isso, tudo como sempre. O edifício não tinha sido transformado em bunker fortificado com policiais armadíssimos espreitando pelas frestas de portas e janelas fechadas: três homens fardados estavam de pé, perto da entrada, atentos, mas tranqüilos naquele momento, sorridentes. Apenas carregavam suas armas ordinárias e vestiam o habitual colete à prova de balas.
Imprudência? Pode ser, mas eu fui tocado pela declaração de força e coragem, implícita na decisão de assegurar o plantão de sempre. O posto estava normalmente aberto para o serviço dos cidadãos de São Paulo.
Teria gostado que crianças estivessem comigo naquele momento, para que pudesse lhes mostrar os gestos, grandes e pequenos, que tornam e mantêm "habitável" nossa cidade, para que sentissem orgulho de "sua" polícia.
Na minha São Paulo ideal, aliás, uma outra coisa já teria acontecido. Com a ajuda dos grandes cotidianos e da mídia do Estado, o governador teria lançado uma subscrição pública para constituir um fundo de indenização para as famílias de policiais e agentes assassinados ou feridos.
Ele teria convocado um conselho de probos para administrar o fundo e distribuir rapidamente as indenizações. A imprensa publicaria a cada dia, em destaque, o valor acumulado pelas doações dos paulistas. O governo federal quer ajudar? Que uma medida provisória torne imediatamente dedutíveis do imposto (não do imponível, do imposto) as doações a esse fundo.
Como você acha que o crime organizado se sentiria num Estado e numa cidade em que milhões de cidadãos desfilassem pelas ruas afirmando sua vontade de viver sem medo? E num Estado e numa cidade em que os próprios cidadãos mostrassem sua gratidão cuidando das famílias dos que morrem no serviço da comunidade?
Os momentos de crise podem ser ocasiões de mudanças decisivas. Não tanto de legislação, mas, sobretudo, de espírito. E muitos de nossos males têm sua origem numa falta endêmica de espírito cívico. O crime conta com essa falta. Seria uma boa oportunidade para desmenti-lo.
NESTES DIAS de violência (que continuam em surdina), houve e há um grande ausente: nós, o povo de São Paulo. Claro, pedimos políticas e intervenções públicas à altura; segundo nossa inclinação, insistimos nos direitos da população carcerária ou na necessidade de uma repressão severa, mas tanto faz: em ambos os casos (que, aliás, não são contraditórios), ficamos em casa esperando que Deus nos acuda. Você perguntará: "Fazer o quê?".
Pois é, espanta-me que as grandes organizações da sociedade civil, os sindicatos, as igrejas, os partidos (indistintamente), as associações corporativas etc. não tenham convocado (nem planejem convocar, aparentemente) uma manifestação de massa, silenciosa, sem palanques, só para afirmar que, seja qual for a convicção política de cada um, as ruas da cidade são nossas, não da barbárie.
Somos capazes de fechar bancos, repartições e comércios para assistir a um jogo da Copa ou por medo do crime. Será que não saberíamos parar a cidade para proclamar que ela nos pertence?
Não seria um gesto retórico, sem conseqüência efetiva. Pergunte-se: o que o crime organizado espera de nós?
Assassinaram policiais e agentes penitenciários. Destruíram ônibus, caminhões da coleta do lixo, uma ambulância, agências de banco, lojas. Mas evitaram produzir a morte indiscriminada de cidadãos quaisquer. Duvido que haja, atrás dessa estratégia, uma preocupação com nossas vidas. Mas talvez haja, isso sim, uma tentativa de ganhar ou de não perder nossa "cumplicidade". É uma palavra forte?
Na quinta-feira passada, alguns usuários, irritados pela ausência de ônibus nas ruas, tentaram queimar os poucos que circulavam ("Se não há transporte, não há para ninguém", diziam). É a reação esperada pelo crime, uma reação que confirmaria nossa incapacidade de entender o seguinte: o que é "público" é nosso, as ambulâncias e os caminhões do lixo são nossos, os ônibus são privados, mas seu serviço é nosso, e o mesmo vale para bancos e lojas.
Quanto aos policiais e aos agentes carcerários, eles são, literalmente, "os nossos". Na noite de quinta-feira passada, passei de carro na frente do posto da PM da rua Jesuíno Arruda, no Itaim Bibi. Sete ou oito cones de plástico forçavam os motoristas a se afastar um pouco (dois metros) da calçada.
Fora isso, tudo como sempre. O edifício não tinha sido transformado em bunker fortificado com policiais armadíssimos espreitando pelas frestas de portas e janelas fechadas: três homens fardados estavam de pé, perto da entrada, atentos, mas tranqüilos naquele momento, sorridentes. Apenas carregavam suas armas ordinárias e vestiam o habitual colete à prova de balas.
Imprudência? Pode ser, mas eu fui tocado pela declaração de força e coragem, implícita na decisão de assegurar o plantão de sempre. O posto estava normalmente aberto para o serviço dos cidadãos de São Paulo.
Teria gostado que crianças estivessem comigo naquele momento, para que pudesse lhes mostrar os gestos, grandes e pequenos, que tornam e mantêm "habitável" nossa cidade, para que sentissem orgulho de "sua" polícia.
Na minha São Paulo ideal, aliás, uma outra coisa já teria acontecido. Com a ajuda dos grandes cotidianos e da mídia do Estado, o governador teria lançado uma subscrição pública para constituir um fundo de indenização para as famílias de policiais e agentes assassinados ou feridos.
Ele teria convocado um conselho de probos para administrar o fundo e distribuir rapidamente as indenizações. A imprensa publicaria a cada dia, em destaque, o valor acumulado pelas doações dos paulistas. O governo federal quer ajudar? Que uma medida provisória torne imediatamente dedutíveis do imposto (não do imponível, do imposto) as doações a esse fundo.
Como você acha que o crime organizado se sentiria num Estado e numa cidade em que milhões de cidadãos desfilassem pelas ruas afirmando sua vontade de viver sem medo? E num Estado e numa cidade em que os próprios cidadãos mostrassem sua gratidão cuidando das famílias dos que morrem no serviço da comunidade?
Os momentos de crise podem ser ocasiões de mudanças decisivas. Não tanto de legislação, mas, sobretudo, de espírito. E muitos de nossos males têm sua origem numa falta endêmica de espírito cívico. O crime conta com essa falta. Seria uma boa oportunidade para desmenti-lo.
13 julho 2006
As garrafas de Morandi
Aqueles que enxergam mais que a realidade podem perder o trem da história
GIORGIO MORANDI (1890-1964) é um dos maiores pintores do século 20.
Que eu saiba, não há obras dele nas coleções públicas brasileiras, mas os paulistanos se lembram da exposição que o Masp lhe consagrou em 1997.
Morandi foi um excelente gravurista e pintou retratos e paisagens, mas a maior (de longe) parte sua produção é uma série infinita (e só aparentemente repetitiva) de naturezas-mortas, que "representam" (mas seria melhor dizer: revelam) caixas, vasos e, sobretudo, garrafas.
Ele passeava por Bolonha (onde viveu a vida toda), procurando objetos, que acumulava e pintava no seu quarto (um espaço exíguo, que lhe servia também de ateliê). As naturezas-mortas de Morandi são ideais para entender o ensaio de Martin Heidegger, "A Origem da Obra de Arte". O filósofo alemão, comentando um quadro de Van Gogh que representa um par de sapatos, descobria a função da obra de arte na sua capacidade de nos revelar a presença dos objetos além (ou aquém) de seu uso, que os torna, de alguma forma, invisíveis.
Um exemplo: depois do enterro de meu pai, fui para a sua casa, deserta. No banheiro, ao lado da pia, estavam, lado a lado, um barbeador, uma taça de zinco com um fundo de sabão sólido e um pincel, dilatado pelo uso. Eram objetos quaisquer, invisíveis até então, mas, naquele momento, sua presença se tornou avassaladora: a suspensão definitiva de seu uso fazia com que, para mim, eles estivessem presentes no mundo com uma densidade de história e de significação tão insondável quanto minha dor e minha lembrança.
Para Heidegger, a obra de arte produziria este mesmo efeito, de tornar o mundo "presente" aos nosso olhos. É difícil abordar nessa linha a pintura narrativa dos grandes ciclos de afrescos da Renascença, a arte sacra e por aí vai, sem contar a arte não-figurativa. Mas, para entender a pintura de Morandi, Heidegger é perfeito; ou, como disse, Morandi é perfeito para entender o ensaio de Heidegger.
Até recentemente, a imagem do pintor bolonhês era a de um eremita, que nunca casou, viveu com as irmãs, recluso em seu quartinho-ateliê, totalmente tomado pela tarefa de enxergar e mostrar, no cotidiano, o invisível. Como ele viveu uma boa parte de sua vida durante o fascismo e a guerra, acrescentava-se que seu isolamento era uma recusa da feiúra do mundo, uma atitude moral.
Um dos princípios éticos básicos, enunciado por Kant, diz que os homens podem ser fins de uma ação, mas nunca meios. Numa época de horror, Morandi parecia ter dedicado a vida a estender esse princípio até as coisas, transformando suas humildes garrafas em fins: objetos presentes e merecedores de nosso olhar, independentes de seu uso possível.
Ora, acabo de ler (saiu em 2004) "Giorgio Morandi: The Art of Silence" (a arte do silêncio), de Janet Abramowicz. Nessa excelente monografia, descobre-se que Morandi foi muito ativo na promoção de sua carreira (muito mais do que se imaginasse) e, sobretudo, que ele se envolveu seriamente com o fascismo. Continuo gostando de Morandi. Assim como continuei lendo Heidegger quando se soube que ele tinha sido francamente nazista. Mas é curioso que ambos, Morandi e Heidegger, tenham feito escolhas políticas barbaramente erradas.
Virgínia Figueiredo, num bonito artigo sobre a estética de Heidegger, ("Isto É um Cachimbo", em "Kriterion: Revista de Filosofia", vol. 46, nº 112, dezembro de 2005, ótima revista de filosofia publicada em Belo Horizonte), escreve em conclusão: "Certamente, em Heidegger, há uma espécie de glorificação e exaltação da arte, cuja contrapartida é um inevitável desprezo pela realidade". A observação é certeira. É como se (sempre, aliás) o esforço para enxergar o invisível (que seja a própria presença do mundo, o mistério de seu e de nosso estar aqui, os labirintos de nossos desejos, tanto faz) corresse o risco de nos fazer perder o trem da história ou de nos mandar escolher o trem errado.
Inversamente, é fácil subir no trem da história deixando de pensar. Ou seja, é fácil viver na ação e na técnica sem enxergar garrafas, sapatos e barbeadores. Falando em trem, um conselho: se você for para Bolonha, não deixe de visitar o museu Morandi, onde é reconstruído o quarto do pintor, mas, imperativamente, na viagem, passe também pela estação de trem da cidade e medite um pouco diante da lápide que lembra os 85 mortos de uma bomba fascista, em 1980.
GIORGIO MORANDI (1890-1964) é um dos maiores pintores do século 20.
Que eu saiba, não há obras dele nas coleções públicas brasileiras, mas os paulistanos se lembram da exposição que o Masp lhe consagrou em 1997.
Morandi foi um excelente gravurista e pintou retratos e paisagens, mas a maior (de longe) parte sua produção é uma série infinita (e só aparentemente repetitiva) de naturezas-mortas, que "representam" (mas seria melhor dizer: revelam) caixas, vasos e, sobretudo, garrafas.
Ele passeava por Bolonha (onde viveu a vida toda), procurando objetos, que acumulava e pintava no seu quarto (um espaço exíguo, que lhe servia também de ateliê). As naturezas-mortas de Morandi são ideais para entender o ensaio de Martin Heidegger, "A Origem da Obra de Arte". O filósofo alemão, comentando um quadro de Van Gogh que representa um par de sapatos, descobria a função da obra de arte na sua capacidade de nos revelar a presença dos objetos além (ou aquém) de seu uso, que os torna, de alguma forma, invisíveis.
Um exemplo: depois do enterro de meu pai, fui para a sua casa, deserta. No banheiro, ao lado da pia, estavam, lado a lado, um barbeador, uma taça de zinco com um fundo de sabão sólido e um pincel, dilatado pelo uso. Eram objetos quaisquer, invisíveis até então, mas, naquele momento, sua presença se tornou avassaladora: a suspensão definitiva de seu uso fazia com que, para mim, eles estivessem presentes no mundo com uma densidade de história e de significação tão insondável quanto minha dor e minha lembrança.
Para Heidegger, a obra de arte produziria este mesmo efeito, de tornar o mundo "presente" aos nosso olhos. É difícil abordar nessa linha a pintura narrativa dos grandes ciclos de afrescos da Renascença, a arte sacra e por aí vai, sem contar a arte não-figurativa. Mas, para entender a pintura de Morandi, Heidegger é perfeito; ou, como disse, Morandi é perfeito para entender o ensaio de Heidegger.
Até recentemente, a imagem do pintor bolonhês era a de um eremita, que nunca casou, viveu com as irmãs, recluso em seu quartinho-ateliê, totalmente tomado pela tarefa de enxergar e mostrar, no cotidiano, o invisível. Como ele viveu uma boa parte de sua vida durante o fascismo e a guerra, acrescentava-se que seu isolamento era uma recusa da feiúra do mundo, uma atitude moral.
Um dos princípios éticos básicos, enunciado por Kant, diz que os homens podem ser fins de uma ação, mas nunca meios. Numa época de horror, Morandi parecia ter dedicado a vida a estender esse princípio até as coisas, transformando suas humildes garrafas em fins: objetos presentes e merecedores de nosso olhar, independentes de seu uso possível.
Ora, acabo de ler (saiu em 2004) "Giorgio Morandi: The Art of Silence" (a arte do silêncio), de Janet Abramowicz. Nessa excelente monografia, descobre-se que Morandi foi muito ativo na promoção de sua carreira (muito mais do que se imaginasse) e, sobretudo, que ele se envolveu seriamente com o fascismo. Continuo gostando de Morandi. Assim como continuei lendo Heidegger quando se soube que ele tinha sido francamente nazista. Mas é curioso que ambos, Morandi e Heidegger, tenham feito escolhas políticas barbaramente erradas.
Virgínia Figueiredo, num bonito artigo sobre a estética de Heidegger, ("Isto É um Cachimbo", em "Kriterion: Revista de Filosofia", vol. 46, nº 112, dezembro de 2005, ótima revista de filosofia publicada em Belo Horizonte), escreve em conclusão: "Certamente, em Heidegger, há uma espécie de glorificação e exaltação da arte, cuja contrapartida é um inevitável desprezo pela realidade". A observação é certeira. É como se (sempre, aliás) o esforço para enxergar o invisível (que seja a própria presença do mundo, o mistério de seu e de nosso estar aqui, os labirintos de nossos desejos, tanto faz) corresse o risco de nos fazer perder o trem da história ou de nos mandar escolher o trem errado.
Inversamente, é fácil subir no trem da história deixando de pensar. Ou seja, é fácil viver na ação e na técnica sem enxergar garrafas, sapatos e barbeadores. Falando em trem, um conselho: se você for para Bolonha, não deixe de visitar o museu Morandi, onde é reconstruído o quarto do pintor, mas, imperativamente, na viagem, passe também pela estação de trem da cidade e medite um pouco diante da lápide que lembra os 85 mortos de uma bomba fascista, em 1980.
06 julho 2006
O que faz um casal?
Para existir, um par precisa inventar e compartilhar uma longa aventura
AS HISTÓRIAS protagonizadas por um casal (sejam elas literárias, cinematográficas, teatrais ou televisivas) podem ser divididas em duas categorias.
Há as histórias ditas "de amor", de "Cinderela" a "Romeu e Julieta". Na maioria dessas histórias, trata-se do primeiro encontro dos amantes e das dificuldades nas quais eles esbarram para se juntar. As coisas podem acabar mal ("Romeu e Julieta"), mas, quando acabam bem, a narração termina na hora em que os amantes começariam a "viver felizes para sempre" ("Cinderela"). Ou seja, quando o amor deveria ser o tema principal, o que é narrado são os transtornos iniciais (com mais ou menos meleca sentimental) ou, às vezes, o trágico desfecho. A prática cotidiana do amor é, em geral, apenas objeto de farsas e comédias: risível.
A segunda categoria é a das histórias em que um casal vive uma aventura que, aparentemente, não tem nada a ver com seu amor: procuram juntos desvendar um crime, assaltar um banco, roubar um quadro, ganhar uma guerra ou encontrar o Santo Graal. Ao longo dessas façanhas, eles se amam e têm ou não o tempo de se beijar e de transar (nos filmes, esse efeito colateral nos vale cinco minutos de rins, umbigos, pernas e lábios, que não têm nada a ver com a ação e permitem dar um pulo no saguão do cinema para renovar a pipoca). Ora, para mim, os verdadeiros filmes de amor são esses, os da segunda categoria, os filmes "de aventura". Por quê?
A maioria desses filmes parece afastada de nossa experiência cotidiana. Com ou sem minha companheira, é raro que eu assalte bancos, roube quadros ou solva enigmas policiais. Mas essas proezas valem como exemplos de um "fazer juntos", que, na prática do amor, é um ideal mais útil do que os meandros dos primeiros encontros, propostos pelos "filmes de amor".
Ou seja, os filmes de amor me dizem que, do amor, vale a pena ser narrado apenas o momento do apaixonamento (supõe-se, imagino, que, depois disso, aos poucos, a coisa vire uma lástima). Os filmes de aventura me dizem que existe a possibilidade de uma experiência comum, de uma aventura dos dois (que, claro, não precisa ser tão mirabolante quanto o que acontece na tela). Em suma, concordo com a citação proverbial de Antoine de Saint-Exupéry (o autor de "O Pequeno Príncipe"): "Amar não significa se olhar um ao outro, mas olhar juntos na mesma direção" (se me lembro direito, a frase está em "Terra dos Homens", livro de memórias e reflexões que acaba de ser publicado em português pela Nova Fronteira).
Fica a pergunta: o que é "olhar juntos na mesma direção"? Na falta de fortalezas para expugnar, fazer o quê? A forma clássica de olhar juntos na mesma direção é criar filhos. Isso não significa que um casal deva agüentar um inferno conjugal para que pai e mãe fiquem com seus rebentos até eles crescerem. Significa apenas que a tarefa comum de criar os filhos é uma prática possível do amor. Já foi a mais comum, aliás. Num artigo publicado no caderno Mais!, da Folha de domingo passado, Gianni Vattimo nota que a reprodução sexual implica, de uma maneira ou de outra, a vontade de manter e reproduzir o mesmo.
O homem do antigo regime previa que seus filhos teriam seu mesmo status num mundo que se manteria igual; nós, homens modernos, sonhamos que nossos filhos nos ultrapassem, mas dentro de um quadro que tendemos a reproduzir (muitos desejam um filho médico, mas poucos gostariam que esse médico fosse Che Guevara). Talvez por essa razão, criar filhos deixe de ser, hoje, a experiência comum dominante na qual prospera o amor de um casal. Há traços da subjetividade moderna que exigem dos casais outras escolhas: a sede de renovação constante (reproduzir e se reproduzir não é mais suficiente para preencher nossa vida) e, sobretudo, a vontade de capitalizar experiência por conta própria (sonhar, por procuração, com a experiência futura dos filhos não nos basta mais).
Essa é, portanto, a dificuldade: fora criar filhos, o que é, hoje, para um casal, "olhar na mesma direção"? Alguns praticam o amor lendo poesia em voz alta, outros estudam juntos, outros exercem a mesma profissão ou adotam ambos uma nova religião, outros ainda se dedicam a práticas sexuais "diferentes". Tanto faz. O que importa é que, para existir, um casal precisa inventar e compartilhar uma (longa) aventura.
AS HISTÓRIAS protagonizadas por um casal (sejam elas literárias, cinematográficas, teatrais ou televisivas) podem ser divididas em duas categorias.
Há as histórias ditas "de amor", de "Cinderela" a "Romeu e Julieta". Na maioria dessas histórias, trata-se do primeiro encontro dos amantes e das dificuldades nas quais eles esbarram para se juntar. As coisas podem acabar mal ("Romeu e Julieta"), mas, quando acabam bem, a narração termina na hora em que os amantes começariam a "viver felizes para sempre" ("Cinderela"). Ou seja, quando o amor deveria ser o tema principal, o que é narrado são os transtornos iniciais (com mais ou menos meleca sentimental) ou, às vezes, o trágico desfecho. A prática cotidiana do amor é, em geral, apenas objeto de farsas e comédias: risível.
A segunda categoria é a das histórias em que um casal vive uma aventura que, aparentemente, não tem nada a ver com seu amor: procuram juntos desvendar um crime, assaltar um banco, roubar um quadro, ganhar uma guerra ou encontrar o Santo Graal. Ao longo dessas façanhas, eles se amam e têm ou não o tempo de se beijar e de transar (nos filmes, esse efeito colateral nos vale cinco minutos de rins, umbigos, pernas e lábios, que não têm nada a ver com a ação e permitem dar um pulo no saguão do cinema para renovar a pipoca). Ora, para mim, os verdadeiros filmes de amor são esses, os da segunda categoria, os filmes "de aventura". Por quê?
A maioria desses filmes parece afastada de nossa experiência cotidiana. Com ou sem minha companheira, é raro que eu assalte bancos, roube quadros ou solva enigmas policiais. Mas essas proezas valem como exemplos de um "fazer juntos", que, na prática do amor, é um ideal mais útil do que os meandros dos primeiros encontros, propostos pelos "filmes de amor".
Ou seja, os filmes de amor me dizem que, do amor, vale a pena ser narrado apenas o momento do apaixonamento (supõe-se, imagino, que, depois disso, aos poucos, a coisa vire uma lástima). Os filmes de aventura me dizem que existe a possibilidade de uma experiência comum, de uma aventura dos dois (que, claro, não precisa ser tão mirabolante quanto o que acontece na tela). Em suma, concordo com a citação proverbial de Antoine de Saint-Exupéry (o autor de "O Pequeno Príncipe"): "Amar não significa se olhar um ao outro, mas olhar juntos na mesma direção" (se me lembro direito, a frase está em "Terra dos Homens", livro de memórias e reflexões que acaba de ser publicado em português pela Nova Fronteira).
Fica a pergunta: o que é "olhar juntos na mesma direção"? Na falta de fortalezas para expugnar, fazer o quê? A forma clássica de olhar juntos na mesma direção é criar filhos. Isso não significa que um casal deva agüentar um inferno conjugal para que pai e mãe fiquem com seus rebentos até eles crescerem. Significa apenas que a tarefa comum de criar os filhos é uma prática possível do amor. Já foi a mais comum, aliás. Num artigo publicado no caderno Mais!, da Folha de domingo passado, Gianni Vattimo nota que a reprodução sexual implica, de uma maneira ou de outra, a vontade de manter e reproduzir o mesmo.
O homem do antigo regime previa que seus filhos teriam seu mesmo status num mundo que se manteria igual; nós, homens modernos, sonhamos que nossos filhos nos ultrapassem, mas dentro de um quadro que tendemos a reproduzir (muitos desejam um filho médico, mas poucos gostariam que esse médico fosse Che Guevara). Talvez por essa razão, criar filhos deixe de ser, hoje, a experiência comum dominante na qual prospera o amor de um casal. Há traços da subjetividade moderna que exigem dos casais outras escolhas: a sede de renovação constante (reproduzir e se reproduzir não é mais suficiente para preencher nossa vida) e, sobretudo, a vontade de capitalizar experiência por conta própria (sonhar, por procuração, com a experiência futura dos filhos não nos basta mais).
Essa é, portanto, a dificuldade: fora criar filhos, o que é, hoje, para um casal, "olhar na mesma direção"? Alguns praticam o amor lendo poesia em voz alta, outros estudam juntos, outros exercem a mesma profissão ou adotam ambos uma nova religião, outros ainda se dedicam a práticas sexuais "diferentes". Tanto faz. O que importa é que, para existir, um casal precisa inventar e compartilhar uma (longa) aventura.
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