A truculência do poder serve para confirmar nossa submissão e nossa dependência
APESAR DAS numerosas exceções, o conjunto de nossos governantes e representantes eleitos parece encenar teimosamente uma farsa grotesca de corrupções baratas (ou caras), de poltronices, de ignorâncias arrogantes e, enfim, de desprezo convicto pelo bem público (ou seja, pelo nosso bem).
Aparentemente, os que escolhemos para nos governar e nos representar não são os melhores entre nós. Será que, por alguma razão misteriosa, elegemos quase sistematicamente os piores? Não compro a tese segundo a qual governantes e representantes seriam o retrato de seus eleitores (portanto, teríamos o governo e o congresso que correspondem ao nosso feitio). Ou seja, não acho que a farsa em questão seja a versão pública da debilidade moral dos cidadãos em sua vida privada.
Não acredito que "os brasileiros" (por alguma herança infeliz) sejam adequadamente representados por trapaceiros que vendem e compram ambulâncias. Prefiro me perguntar: de onde vem a necessidade (ou a vontade) de instituir e manter um poder propriamente grotesco? Na primeira aula de seu seminário de 1974-75, "Os Anormais" (Martins Fontes, 2005), Michel Foucault afirma que a eventual infâmia dos governantes não é um contratempo do poder, mas um mecanismo essencial ao seu funcionamento.
Foucault nota que, desde a antigüidade (o Império Romano é uma mina de exemplos), é freqüente que os governantes sejam teatralmente desqualificados. Ora, o antropólogo Pierre Clastres ("A Sociedade contra o Estado", Cosacnaify, 2003) entendia que, nas sociedades ditas primitivas, a demonstração da indignidade do governante era um ritual necessário para limitar os efeitos do poder: que o soberano seja (ou apareça como) um idiota ou um pilantra, eis que nos daria, a nós governados, uma certa independência. Seríamos mais livres porque obedeceríamos, no mínimo, com cautela. Foucault pensa, ao contrário, que a indignidade do poder serve para demonstrar que ele é incontestado.
Segundo Foucault, o governante e o poderoso grotescos (desde o burocrata caspento assinando ordens de deportação até o imperador tocando música enquanto contempla o incêndio de sua cidade), justamente por serem indignos, confirmam nossa inércia diante do poder, seja qual for a caricatura que o encarna. Tendo a concordar com a hipótese de Foucault. Tanto faz que o lado grotesco do poder seja alimentado por nossas escolhas eleitorais ou revelado por nossa capacidade crítica. De qualquer forma, a infâmia de quem governa nos serve, sobretudo, para celebrar o caráter inelutável de nossa submissão, para afirmar que, mesmo assim, continuamos súditos. Como entender essa estranha vontade de sermos governados por mediocridades truculentas? Freud talvez possa ajudar.
É freqüente que os pré-adolescentes passem por um longo momento em que o pai (ou outro homem supostamente desejado pela mãe) parece-lhes grotesco, nojento. De repente, os jovens descobrem que ele cheira mal ou come de boca aberta com barulhos repugnantes: sua presença se torna vulgar e abusiva. Esse momento da pré-adolescência (que, muitas vezes, prolonga-se na vida adulta) pode ser entendido e vivido como uma declaração de independência: na direção otimista apontada por Clastres, os meninos afirmariam assim que o pai não é seu único modelo, e as meninas afirmariam que há outros homens, diferentes do pai, que elas podem amar.
Mas essa declaração de independência esconde um ato de submissão: ambos, meninas e meninos, preferem abandonar o corpo materno nas mãos de um "gorila", porque é mais fácil e seguro reconhecer uma potência paterna que seja irresistível e truculenta. Os sujeitos que, de uma maneira ou de outra, permanecem presos nessa experiência pré-adolescente pagam um preço: no melhor dos casos, eternizam esse momento numa fantasia erótica de submissão a estupradores brutais.
Mais freqüentemente, sem prazer nenhum, eles engrossam as fileiras dos que passam a vida baixando a cabeça (das vítimas de violência doméstica que não saem de casa até aos funcionários exemplares que dizem sempre sim). Em outras palavras, se, como propõe Foucault, não sabemos nem queremos nos livrar da face grotesca do poder, se fazemos o necessário para perpetuá-la, talvez seja porque um pai abusivo nos parece melhor que um pai fraco e, sobretudo, melhor que pai nenhum.
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