28 setembro 2006

Um filme de amor

O interesse pelo vídeo de Cicarelli revela que somos sobretudo frustrados no amor

À FORÇA de receber links para o vídeo de Daniella Cicarelli, acabei dando o clique e assisti ao filme.

São quatro minutos e meio, editados a partir de duas horas de gravação e entrecortados por subtítulos, que introduzem diferentes momentos do convívio do casal. Os subtítulos são em castelhano.

Normal, visto que os fatos aconteceram na Espanha, e o "paparazzo" era espanhol. Mas as frases, numa língua estrangeira e próxima, facilitam, para o espectador brasileiro, uma atitude irônica e zombadora, como se pertencessem a um português macarrônico.

De fato, nas conversas destes dias, o vídeo é sempre evocado com um tom maroto e, sobretudo, burlesco.

À primeira vista, o cômico parece servir para que o espectador esqueça a posição (incômoda e envergonhada) que ocupa: a de uma criança com o olho colado no buraco da fechadura ou, pior, a de um adulto salivando à vista de frutos proibidos.

Digo logo: suspeito que o cômico, neste caso, proteja o espectador de um outro incômodo, maior e, de certa forma, mais triste.

Falando em frutos proibidos, é importante salientar que o vídeo não é nada "ousado". Um sujeito que estivesse procurando por pornografia na internet certamente o descartaria sem hesitação e encontraria, com facilidade, imagens bem mais explícitas.

Alguém dirá que o interesse pelo vídeo depende unicamente do fato de que uma "celebrity" seria assim "exposta". Os títulos (infames) que acompanhavam os e-mails com o link iam nesse sentido. Algo assim: olhe só, Fulana está "dando" na praia... Ou seja, os brasileiros seriam fascinados pela "descoberta" de que uma "celebrity" e um lindo moço se desejam, beijam-se, acariciam-se etc. Essa cena nos ofereceria a certeza confortante de que os deuses do Olimpo não são muito diferentes da gente. Seria um pouco como uma foto de Lula ou de Alckmin mordendo um sanduíche cheio de mostarda e ketchup ou entrando com urgência num banheiro. "Te peguei!".

Pois é, não acredito em nada disso.

Por duas razões.

Primeiro, o vídeo nos mostra um casal que não tem nada de "jet-set". Eles não estão num iate na Sardenha nem numa enseada de sua ilha privada. Estão numa praia qualquer.

Tomam um refresco, comem um sorvete, tiram aquela foto que todos já tiramos, esticando o braço e recuando as cabeças para pegar o sorriso dos dois. Há um momento em que a moça puxa os cotovelos do moço para que ele a abrace; o gesto é comovedor de tão familiar.
Segundo, o distanciamento (facilitado pelos subtítulos irrisórios) mostra o seguinte: o espectador se arma de uma boa pitada de cômico para encarar uma visão que, sem isso, poderia magoá-lo (em geral, rir é um jeito de afastar de nós algo que preferimos ignorar). E acontece que, neste caso, o que queremos afastar certamente não é uma extravagância sexual, explícita ou implícita, pois o vídeo não é de sexo; é um vídeo de amor, um excelente vídeo de amor. Ele poderia ou deveria ser proposto como exemplo nas escolas de cinema, não por suas qualidades técnicas, mas porque é raro que os cineastas consigam mostrar tão bem os gestos do desejo entre duas pessoas que se gostam muito e que se amam (que seja por uma semana, um ano ou uma vida, tanto faz).
A delicadeza dos beijos, dos toques, dos abraços do casal falam de um momento de felicidade amorosa que é o verdadeiro "escândalo" do vídeo. É contra essas imagens de amor que o título chulo e os subtítulos irônicos protegem o espectador, guiando-o para que se convença de que ele está assistindo a alguma devassidão ou se divertindo ao constatar que uma "celebrity" fez "aquilo" que nem a gente.

Sem esse desvio da atenção, o vídeo seria, para quase todos os espectadores, tocante e talvez intoleravelmente triste. Por quê? Simples: alguns podem ser frustrados no sexo, outros podem ser invejosos e estar a fim de dar um pontapé nos pedestais que eles mesmos erigem, mas muitos sentem a falta da delicada intimidade do desejo sexual quando ele acontece entre dois que se gostam e se amam -muitos são frustrados no amor.

Com a ajuda de título e subtítulos, em suma, o tom burlesco dos comentários destes dias serve para que a gente não perceba o que, de fato, o "paparazzo" filmou: uma cena que, ao ser enxergada, produziria em nós a descoberta dolorosa de nossa carência. Pois não se trata de um momento de sexo, mas de uma tarde de amor.

21 setembro 2006

Confusões morais perigosas


O que importa é saber se houve crime; tanto faz que o criminoso seja ou não parecido conosco
PAULO BETTI declarou que não se faz política sem pôr "as mãos na merda". Pode ser, mas há várias maneiras de manipular excrementos: por exemplo, podemos espalhá-los pelas paredes ou enfiar as mãos na massa para desentupir privadas. Não é a mesma coisa.

Seja como for, a declaração de Paulo Betti teve sucesso a tal ponto que um leitor, Lauro Freire, comentou: "A Rose Marie Muraro escreveu um artigo na Folha em que, entre outras barbaridades, escreveu: "Ser moral dentro de um sistema imoral é legitimar a imoralidade". Hoje, o Zé Celso justifica o voto no Lula com coisas como "somos todos mensaleiros e sanguessugas". [...]

Enfim, acho o Zé Celso um cara legal, e Rose Marie também. Como o Boal e outros. Minha pergunta e tema: por que diabos esses caras estão falando essas coisas?". A finalidade das declarações citadas é, obviamente, política, ou seja, elas servem para minimizar os crimes cometidos por membros do governo e do Congresso. Mas me preocupa uma implicação do pensamento que elas expressam.

A lógica implícita é evangélica, numa extensão que inverte os termos habituais: como é que nos autorizaríamos a procurar a trava no olho do outro, se não vemos a palha que está no nosso? É verdade: se você roubou marmelada na infância, essa experiência deve lhe permitir "entender" um deputado sanguessuga ou um ministro corrupto. Ou seja, a "mente" criminosa não é totalmente estrangeira à nossa: podemos compreendê-la.

A partir do século 19, a psiquiatria e a psicologia invadiram os tribunais para mostrar a juízes e jurados que, por trás dos crimes, havia "o criminoso", que era, apesar de tudo, um semelhante. Compreendê-lo significava reconhecer uma circunstância "atenuante": "em situações análogas, eu talvez não tivesse agido de maneira diferente". Até aqui, tudo bem.

Acontece que (descoberta de Michel Foucault) essa atitude generosa também respondia à vontade de policiar o comportamento humano num mundo em que a norma religiosa não tinha mais valor de lei. Como assim?

A novidade da lei moderna é a seguinte: criminosos são os atos, nunca os sujeitos. Na hora de julgar, no tribunal ou no foro íntimo, o que importa é saber se o ato de Fulano é um crime; a pessoa Fulano é sem interesse. Essa mudança coloca um problema para quem gosta de ordem e controle (nada a ver com "ordem e progresso"), pois nossa lei proíbe uma série de atos, mas, quanto ao resto, deixa cada um livre para se comportar como ele bem entende.

É aqui que se revela a "utilidade" da consideração da pessoa do criminoso, que foi trazida, simpaticamente, para desculpá-lo (ao menos, em parte). Funciona assim: se, na hora de julgar, considero o criminoso (sua pessoa), e não seus atos, não vejo por que, na hora de reprimir, eu consideraria apenas os atos criminosos (como manda a lei), e não as pessoas.

Eis um bom exemplo. O presidente Lula saiu em defesa do senador Suassuna afirmando que ele é "leal" e tem comportamento "decente". José Alencar defendeu Freud Godoy por ele ser "uma pessoa correta". Esses comentários amigáveis não nos dizem se foram cometidos ou não atos ilegais. Se essas declarações valessem como defesas, sua implicação seria a seguinte: a culpa não é a de "sanguessugar" dinheiro público, mas a de ser desleal, incorreto ou indecente.

De repente, o que está em jogo é nossa liberdade, nada menos. Pois, se declarações como a de Lula e de Alencar constituíssem uma defesa, criminosos seriam não os atos (desconsiderados nas declarações), mas os comportamentos de quem não é "decente" - por exemplo, de quem se masturba, coleciona pornô, come sem garfo, é gay etc.

"Entender" o sujeito que cometeu um crime (porque todos teríamos uma disposição a cometer atos análogos) é uma operação cognitiva e afetiva simpática, que ameniza nossa severidade. Mas essa atitude tem pouco a ver com o funcionamento da lei ou da moral, a não ser que a gente queira viver um pesadelo repressivo em que os objetos do julgamento legal ou moral não seriam os atos, mas as pessoas.

Em suma, a aparente clemência de quem invoca que somos todos "pecadores" tem, como avesso, uma Justiça e um pensamento moral que, em vez de perseguir crimes e pecados, preferiria vigiar o comportamento de todos nós, supostamente criminosos e pecadores.