21 setembro 2006

Confusões morais perigosas


O que importa é saber se houve crime; tanto faz que o criminoso seja ou não parecido conosco
PAULO BETTI declarou que não se faz política sem pôr "as mãos na merda". Pode ser, mas há várias maneiras de manipular excrementos: por exemplo, podemos espalhá-los pelas paredes ou enfiar as mãos na massa para desentupir privadas. Não é a mesma coisa.

Seja como for, a declaração de Paulo Betti teve sucesso a tal ponto que um leitor, Lauro Freire, comentou: "A Rose Marie Muraro escreveu um artigo na Folha em que, entre outras barbaridades, escreveu: "Ser moral dentro de um sistema imoral é legitimar a imoralidade". Hoje, o Zé Celso justifica o voto no Lula com coisas como "somos todos mensaleiros e sanguessugas". [...]

Enfim, acho o Zé Celso um cara legal, e Rose Marie também. Como o Boal e outros. Minha pergunta e tema: por que diabos esses caras estão falando essas coisas?". A finalidade das declarações citadas é, obviamente, política, ou seja, elas servem para minimizar os crimes cometidos por membros do governo e do Congresso. Mas me preocupa uma implicação do pensamento que elas expressam.

A lógica implícita é evangélica, numa extensão que inverte os termos habituais: como é que nos autorizaríamos a procurar a trava no olho do outro, se não vemos a palha que está no nosso? É verdade: se você roubou marmelada na infância, essa experiência deve lhe permitir "entender" um deputado sanguessuga ou um ministro corrupto. Ou seja, a "mente" criminosa não é totalmente estrangeira à nossa: podemos compreendê-la.

A partir do século 19, a psiquiatria e a psicologia invadiram os tribunais para mostrar a juízes e jurados que, por trás dos crimes, havia "o criminoso", que era, apesar de tudo, um semelhante. Compreendê-lo significava reconhecer uma circunstância "atenuante": "em situações análogas, eu talvez não tivesse agido de maneira diferente". Até aqui, tudo bem.

Acontece que (descoberta de Michel Foucault) essa atitude generosa também respondia à vontade de policiar o comportamento humano num mundo em que a norma religiosa não tinha mais valor de lei. Como assim?

A novidade da lei moderna é a seguinte: criminosos são os atos, nunca os sujeitos. Na hora de julgar, no tribunal ou no foro íntimo, o que importa é saber se o ato de Fulano é um crime; a pessoa Fulano é sem interesse. Essa mudança coloca um problema para quem gosta de ordem e controle (nada a ver com "ordem e progresso"), pois nossa lei proíbe uma série de atos, mas, quanto ao resto, deixa cada um livre para se comportar como ele bem entende.

É aqui que se revela a "utilidade" da consideração da pessoa do criminoso, que foi trazida, simpaticamente, para desculpá-lo (ao menos, em parte). Funciona assim: se, na hora de julgar, considero o criminoso (sua pessoa), e não seus atos, não vejo por que, na hora de reprimir, eu consideraria apenas os atos criminosos (como manda a lei), e não as pessoas.

Eis um bom exemplo. O presidente Lula saiu em defesa do senador Suassuna afirmando que ele é "leal" e tem comportamento "decente". José Alencar defendeu Freud Godoy por ele ser "uma pessoa correta". Esses comentários amigáveis não nos dizem se foram cometidos ou não atos ilegais. Se essas declarações valessem como defesas, sua implicação seria a seguinte: a culpa não é a de "sanguessugar" dinheiro público, mas a de ser desleal, incorreto ou indecente.

De repente, o que está em jogo é nossa liberdade, nada menos. Pois, se declarações como a de Lula e de Alencar constituíssem uma defesa, criminosos seriam não os atos (desconsiderados nas declarações), mas os comportamentos de quem não é "decente" - por exemplo, de quem se masturba, coleciona pornô, come sem garfo, é gay etc.

"Entender" o sujeito que cometeu um crime (porque todos teríamos uma disposição a cometer atos análogos) é uma operação cognitiva e afetiva simpática, que ameniza nossa severidade. Mas essa atitude tem pouco a ver com o funcionamento da lei ou da moral, a não ser que a gente queira viver um pesadelo repressivo em que os objetos do julgamento legal ou moral não seriam os atos, mas as pessoas.

Em suma, a aparente clemência de quem invoca que somos todos "pecadores" tem, como avesso, uma Justiça e um pensamento moral que, em vez de perseguir crimes e pecados, preferiria vigiar o comportamento de todos nós, supostamente criminosos e pecadores.

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