25 outubro 2007

"Infiel'



A tolerância não impede de reconhecer e recusar a diferença quando ela é inimiga de nossos valores

A COMPANHIA das Letras acaba de publicar a autobiografia de Ayaan Hirsi Ali, "Infiel - A História de Uma Mulher que Desafiou o Islã".

Hirsi Ali nasceu na Somália (país muçulmano) em 1969, viveu o horror da guerra civil e da luta entre clãs que levaram o país da pobreza à miséria, passou partes da infância e da adolescência na Arábia Saudita e no Quênia e, enfim, adulta, fugiu para o Ocidente. Na Holanda, ela se tornou cidadã e, logo depois, foi eleita deputada. Pela sua história e pela coragem de suas palavras, ela continua sendo alvo de um fanatismo assassino.

O livro, além de tocante, é imprescindível para quem queira, hoje, perguntar: "Vigia, como está a noite?".

As primeiras 300 páginas tratam da progressiva metamorfose de Ali: uma menina definida pela sua ascendência e pela obediência aos homens e ao Alcorão se transforma numa jovem pessoa atormentada por dúvidas sobre sua fé e pela vontade de escutar seus sentimentos e de escolher livremente seus objetos de amor.

Essas páginas deveriam estar nas bibliografias de introdução à antropologia cultural: elas explicam perfeitamente quem somos nós, ocidentais. Na história da jovem somali, a oposição à autoridade tradicional do clã e do texto sagrado não está nos grandes textos do Ocidente -está nos romances.

Fragilidade e grandeza de nossa cultura: a liberdade do indivíduo moderno é, antes de mais nada, liberdade de amar e de romancear o amor. "Romeu e Julieta" e Barbara Cartland nos definem melhor do que "O Contrato Social".

Li as últimas 200 páginas do livro na noite de sábado, sem parar, madrugada adentro. Nelas, Ali, ao contar as peripécias de sua vida na Holanda, expõe sua crítica do Islã.

Depois de 11 de setembro de 2001, talvez você tenha lido "Choque de Civilizações?", de Samuel Huntington, e, como eu, tenha resistido à idéia de que o terceiro milênio seja destinado a encenar um conflito cultural sangrento entre o Ocidente e o Islã. Talvez você, como eu, sem examinar de perto os textos e os fatos, tenha se juntado ao coro da tolerância e à visão otimista do Islã paz-e-amor, convencido de que aceitar a diferença seja (como é, de fato) uma prerrogativa crucial e gloriosa de nossa cultura.

Só a tolerância -você pode ter pensado, como eu- permitirá a integração que confirmará a humanidade comum de todos, realizando o sonho ocidental moderno. Pois bem, Ali pensa diferente.

Para ela, o fundamentalismo e o terrorismo islâmicos de hoje não se fundam numa distorção do Islã, eles estão inscritos na letra do Alcorão e do Hadith.

Só será possível evitar um embate frontal se o mundo islâmico passar por uma revolução interna comparável com a que sacudiu o cristianismo no começo da modernidade, quando o indivíduo (com sua liberdade e seu foro íntimo) se tornou um valor bem mais importante do que a instituição e o texto religiosos.

Portanto, para Ali, sobretudo nos lugares de maior fricção entre o Islã e o Ocidente, como na Europa, a estratégia de uma convivência possível não passa pela simples tolerância, mas pela exigência ativa de uma integração dos imigrantes na cultura para onde se mudaram ou fugiram. Essa exigência inclui a capacidade de recusar a diferença quando ela for inimiga de nossos valores.

Não há espaço, no Ocidente, para a submissão das mulheres, o ostracismo das minorias sexuais, o poder patriarcal indiscriminado e, sobretudo, não há espaço para a confusão entre religião e Estado de direito.

Theo Van Gogh, holandês, dirigiu um documentário, escrito por Ali, sobre a submissão da mulher no Islã. Ele foi assassinado e degolado por um fundamentalista islâmico, que cravou no peito de sua vítima uma mensagem para Ali, perguntando se ela estava disposta a morrer por suas idéias como ele, o assassino, estava pronto a se sacrificar pelas suas.

É um argumento freqüente nos comunicados exaltados dos terroristas: o Ocidente estaria fadado a desaparecer porque preza a vida do indivíduo.

Ora, Van Gogh, diante de seu assassino, antes de ser morto, perguntou: "Será que a gente não pode conversar?". O assassino deve ter pensado que se tratava de mais uma demonstração da fraqueza e da covardia ocidentais. Ele se enganou. Era a maior demonstração de fé nos valores do Ocidente e, portanto, de força.

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