02 julho 2008

O risco de se perder



Renegar seus próprios princípios para se proteger é uma boa maneira de se destruir


NA QUINTA PASSADA , manifestei meu desgosto ao aprender que o governo italiano decretou um censo sistemático da população cigana nômade que vive ao redor dos grandes centros urbanos.

Alguns leitores me lembraram que, na Itália, a percentagem de ciganos envolvidos em crimes é bem mais significativa do que a percentagem dessa etnia na população geral.

Respondo que qualquer sociedade tem o direito e o dever de perseguir os INDIVÍDUOS criminosos, mas nenhuma estatística pode autorizar uma democracia moderna a discriminar a ETNIA dos mesmos.

Outros leitores evocaram a necessidade de proteger a cultura italiana.

Poderia responder que a "pureza" italiana, que se trataria de preservar, é o fruto de uma incrível mistura: as invasões bárbaras, a dos normandos na Sicília, o domínio austríaco no Norte do país e espanhol no Sul etc.

Mas me interessa mais a questão seguinte: mesmo supondo que uma onda imigratória possa corromper e destruir uma civilização, será que essa civilização, para se proteger e se preservar, pode se engajar em práticas que desmentem seus próprios valores fundamentais?

Um leitor afirmou que pode ser necessário "sacrificar princípios para preservar a cultura (européia) que é a base do apogeu da civilização humana, seja nas artes, na filosofia, literatura, psicologia etc.".

Em regra, penso que renegar seus próprios princípios para se preservar é uma boa maneira de se destruir. Mas não é uma questão simples.

Por exemplo, as democracias, depois da Segunda Guerra Mundial, tiveram que decidir se elas admitiriam ou não a existência, em seus parlamentos, de partidos totalitários (herdeiros do fascismo ou porta-estandartes da ditadura soviética). Admiti-la significava correr o risco de desaparecer como democracia caso um desses partidos chegasse ao poder. Não admiti-la significava silenciar a vontade política de alguns cidadãos, privando-os de representantes eleitos -o que seria negar o próprio princípio de uma democracia.

Outro exemplo, mais próximo. Aceitemos como uma hipótese, sem discutir, a idéia de que o terrorismo islamista seja uma ameaça fatal para a civilização ocidental e que o governo Bush queira proteger o que nossa civilização tem de melhor. Agora, o governo Bush autorizou detenções e métodos de interrogatório contrários aos princípios da mesma civilização que ele tenta preservar. Pergunta: se, defendendo-nos, cometemos os mesmos abusos que praticam nossos inimigos, o que nos sobra que valha a pena ser preservado?

Mais próximo ainda. Uma democracia que quer se proteger contra uma corrupção endêmica e onipresente pode ou não recorrer, por exemplo, ao uso indiscriminado de escutas e grampos, negando o direito de seus cidadãos à privacidade (que é uma das razões pelas quais é bom que uma democracia exista)?

Essas questões surgem em contextos específicos, que deveriam ser avaliados caso a caso. Mas há uma questão de fundo, que também vale na nossa vida de cada dia: as "medidas excepcionais" que tomamos para nos preservar podem comprometer e perder nossa diferença, ou seja, aquilo mesmo que se tratava de amparar.

Quantas vezes, para nos protegermos, sacrificamos um princípio que é para nós essencial, algo sem o qual, no fundo, não somos mais aquele "nós" que queríamos proteger?

Quantas vezes os atos com os quais pensamos nos preservar destroem nosso âmago talvez mais do que o perigo contra o qual reagimos?

Os exemplos estão na história de cada um. São as covardias das quais somos capazes em nome de uma necessidade de defesa ou de preservação.

É melhor sermos derrotados, perdermos um emprego, perdermos um amor ou, então, "ganharmos a parada" com um gesto que nos extravia, que nos torna, aos nossos próprios olhos, indignos do amor que queríamos resguardar e conservar ou do poder que queríamos manter ou conquistar?

Aviso urgente. "Nome Próprio", de Murilo Salles, estreou na sexta passada em poucas (mas boas) salas de várias capitais do país. Com a extraordinária interpretação de Leandra Leal, o filme leva para a tela o mundo impetuoso, fragmentado e tocante do blog e dos romances de Clarah Averbuck. É imperdível para quem vive amores inquietos (ou seja, para quase todos) e, óbvio, para quem é atormentado pela paixão de escrever.

Participo assim da campanha para que o filme permaneça em cartaz o (longo) tempo que ele merece.

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